A reforma do ensino superior
Lafaiete Neves*
 

O documento II do MEC "Reafirmando princípios e consolidando diretrizes da reforma da educação superior", de 2 de agosto de 2004, sistematiza todas as medidas da reforma universitária pretendida pelo governo federal. São princípios e diretrizes para orientar a reforma do ensino superior.

É mais uma investida para alterar a Constituição de 1988, no artigo 207, que garante autonomia didática, científica, administrativa e financeira das instituições de ensino superior com garantia de financiamento pelo governo federal, inclusive definindo os percentuais orçamentários da União, estados e municípios destinados aos três níveis de ensino. Investida esta que teve início em 1990 com o governo Collor de Mello e seu sucessor por 8 anos, o governo Fernando Henrique Cardoso e o ministro da Educação Paulo Renato de Souza.

O Objetivo do MEC é aprovar uma lei orgânica da educação superior, que significa regulamentar o artigo 207 da Constituição Federal, que para o Andes (Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior) não cabe regulamentação por ser auto-aplicável.

Essa lei orgânica pretende dividir os vários níveis de ensino que hoje são indissociáveis na concepção de um Sistema Nacional de Educação (SNE). Dessa forma se desvinculará a educação superior da educação básica e da educação profissional.

Outro aspecto preocupante é quando o documento II do MEC reconhece as instituições privadas não-estatais ou instituições privadas com fins lucrativos, o que legitima a concepção de Reforma do Estado implementada no governo Fernando Henrique Cardoso e do seu ministro Bresser Pereira. Neste aspecto legitima o financiamento público para as instituições privadas, que o governo federal já executa com a medida provisória do ProUni, abrindo mão de arrecadar R$ 3,5 milhões de impostos em troca de vagas nas instituições privadas de ensino superior, montante esse que se fosse aplicado nas instituições públicas dobraria de imediato o número de vagas.

A medida do ProUni, foi criada para salvar as instituições privadas da crise que vivem em decorrência da política neoliberal de abertura do mercado para a expansão descontrolada do ensino privado, gerando uma concorrência absurda e tendo como conseqüência imediata a ociosidade de 30% de vagas e a inadimplência de mais 30%, em decorrência do achatamento salarial da classe média.

Quando trata da autonomia, o Documento II do MEC amarra a autonomia à burocracia do MEC, exigindo para o financiamento um plano de gestão de curto, médio e longo prazos (Plano de Desenvolvimento e Gestão), sendo os recursos liberados quando o MEC realizar a análise e o acompanhamento do plano acordado. Outro ponto a ser destacado é que o MEC não faz nenhuma distinção quanto à autonomia das instituições confessionais e privadas de ensino superior, o que é grave, pois o ensino privado no país é uma concessão do Estado, logo o Estado deveria primar pelo padrão único de qualidade entre as universidades públicas e privadas.

A autonomia já foi profundamente desrespeitada com a lei 10.861, de 14/04/2004, que instituiu o Sinaes/Conaes, à medida que regulamenta e centraliza a avaliação escolar em todos os níveis.

Quanto ao financiamento, o documento coloca que a autonomia demanda financiamento público que estará vinculado aos impostos federais conforme o artigo 212 da CF e com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Superior que não deverá sofrer contingenciamento, sendo liberados por duocécimos mensais, com fiscalização e controle. Essa garantia de não-contingenciamento não tem qualquer sustentação à medida que os cortes orçamentários são feitos pelo tesouro nacional para garantir o pagamento dos juros e serviços da dívida interna e externa, que hoje consomem 4,75% do superávit primário (receita superior à despesa), que representou em 2003 R$ 145 bilhões e em 2004 será de R$ 183 bilhões e para 2005 será ampliado para 5,80% do PIB. Logo, com a atual política econômica é impraticável qualquer garantia de financiamento para as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), basta ver que as mesmas tiveram uma redução de 50% das verbas de custeio, nos últimos anos, segundo a Andifes (Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), agravando mais ainda a situação de funcionamento com o déficit de pessoal docente e técnico administrativo.

Com a atual escassez de financiamento por parte do governo federal para as Ifes, fica entendido que os Planos de Gestão das Ifes poderão contar com recursos do setor privado, comprometendo a autonomia didático-científica das mesmas. Do ponto de vista jurídico esta questão já foi resolvida com o decreto editado pelo governo Lula, que legitimou as fundações privadas no interior das universidades públicas. Logo, não há qualquer impedimento legal para a captação de recursos privados e subordinação do ensino e das pesquisas aos interesses das empresas privadas nacionais e multinacionais. Foi devido à existência dessas fundações privadas no interior das universidades públicas que avançou o ensino pago nos cursos de pós-graduação em nível de especialização, onde muitos professores acabam tendo renda maior do que seus salários e se dedicando com maior afinco a esses cursos em detrimento dos cursos de graduação, utilizando os recursos públicos, tais como prédios, equipamentos, funcionários para fins privados e destinando uma pequena parte desses ganhos para a instituição. Esta realidade tornou muito difícil definir hoje se as Ifes são efetivamente públicas e gratuitas e abriu caminho para a imposição do ensino pago nestas instituições.

Está também contida no Documento II do MEC a proposta de uma nova carreira docente, capítulo que merece uma tratamento à parte, sendo muito interessante para o governo misturar autonomia, financiamento, avaliação e carreira docente no mesmo documento, na sua lógica de vincular a carreira aos parâmetros da produtividade acadêmica para fins de reajuste salarial por rubricas de incentivos, destruindo assim a concepção de vencimentos para fins de direitos de aposentadoria.

Diante do que apresenta o governo Lula para a reforma do ensino superior, não resta à comunidade universitária outra saída a não ser barrar essa reforma para preservar direitos de toda a sociedade.
 

* Lafaiete Neves é doutor em Economia pela UFPR, mestre em História pela PUC/SP e professor aposentado da UFPR.

Fonte: Gazeta do Povo (Opinião do Dia), 16/11/2004.


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