As armadilhas da sintaxe
Thaís Nicoleti de Camargo*

 

A leitura de jornais fornece farto material para a análise da estruturação do pensamento. Às vezes, aquilo que tem um sentido para quem escreveu chega ao leitor com outro. E parte da habilidade de escrever reside na previsão das leituras possíveis, afinal, o texto, depois de instalado na página escrita, ganha independência e tem de valer por si, independentemente das intenções que não conseguiram realizar-se.

 

Que achará o leitor do seguinte subtítulo: "Comprimidos estavam em festa"? O fato noticiado foi a descoberta de 500 pílulas de ecstasy em poder de um rapaz que estava em uma festa. Por mais que o nosso bom senso nos conduza à correta interpretação da frase, dificilmente vamos deixar de perceber um sentido algo jocoso nesse texto. E isso ocorre porque "estar em festa" é uma expressão da língua portuguesa que significa "estar muito feliz" ("Seu coração estava em festa"). E essa percepção de uma segunda possibilidade de leitura tira o foco do assunto que está sendo informado, daí a insistência em ajustar a construção da frase.

Em muitas situações, o bom senso ou o próprio contexto da informação desfazem a ambigüidade. Mas não se pode contar com isso. O ideal é aprender a usar corretamente as estruturas da língua para não depender de circunstâncias esclarecedoras esporádicas. Observe o seguinte parágrafo: "O juiz quis entrar na loja, que já estava fechada, mas foi impedido pelo vigia. Após bradar que era uma autoridade, o gerente liberou a sua entrada".

O fato, recentemente divulgado pela imprensa, é de conhecimento público. Isso contribui para que a leitura não provoque uma interpretação indesejada. Em outras palavras, quando já conhecemos de antemão o que estamos lendo, não percebemos os defeitos de estrutura do texto.

Do modo como o trecho acima está composto, quem "bradou que era uma autoridade" foi o gerente, não o juiz (mas sabemos que a tal autoridade era o juiz, não o gerente do supermercado). O redator associou o verbo "bradar" ao sujeito da oração anterior ("juiz"), porém o verbo de um novo período tem como ponto de referência o sujeito da oração principal desse novo período, ou seja, quando um período começa com a oração subordinada ("após bradar..."), seu sujeito é o mesmo da principal posposta. Caso não seja, deverá ser explicitado. Assim: "Após o juiz bradar que era uma autoridade, o gerente liberou a sua entrada".

Por vezes, a estrutura defeituosa torna complicado o que poderia ser dito de maneira simples. Veja este trecho: "Se, há quatro anos, todas as escolas públicas do país tivessem aulas de orientação sexual para alunos de dez a 15 anos, Isabel (nome fictício) acredita que sua história poderia ter sido outra".

Ora, a hipótese de as escolas públicas terem oferecido aulas de orientação sexual, há quatro anos, a jovens é condição não para que Isabel acredite em alguma coisa, mas para que sua vida pudesse ter sido outra. O objeto da crença de Isabel, por sua vez, é essa relação de condição.

Assim, a correta construção do período seria a seguinte: "Isabel (nome fictício) acredita que, se, há quatro anos, todas as escolas públicas do país tivessem aulas de orientação sexual para alunos de dez a 15 anos, sua história poderia ter sido outra".

Um período bem organizado torna a leitura muito mais simples. Vale a pena ficar atento a isso.


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Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole). 

Fonte: Folha Online, 18/03/2005.


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