AUMENTO DO FUNCIONALISMO
Quando a Justiça é parte interessada

 

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie, envolveu-se na semana passada, ou deixou-se envolver, numa situação pelo menos estranha. Discutiu com o Executivo um plano de cargos e salários para servidores do Judiciário. Isso poderia parecer normal noutra circunstância. Mas parece no mínimo inconveniente, quando há um desacordo entre o governo e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre aumento salarial para o funcionalismo público. Se o assunto fosse levado ao Supremo, como se especulava naquele momento, a corte estaria em condições de apresentar à opinião pública um julgamento livre de suspeição?

A maior parte da imprensa foi notavelmente discreta no tratamento do assunto. No sábado (24/6), só o Globo, entre os maiores jornais, foi direto ao ponto na primeira página: sob o título "Judiciário também terá reajuste" aparecia o pequeno texto:

"O presidente Lula anunciou reajuste para servidores do Judiciário – o que pode vencer resistência da Justiça a outros aumentos considerados irregulares pelo TSE".

O Estado de S.Paulo deixou o detalhe mais picante para uma página interna, mencionando na chamada apenas a disposição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ir ao STF, se necessário, para resolver o conflito com o TSE. Na página 3, os detalhes mais apimentados, com resumo de informações divulgadas no dia anterior pelo Supremo. Fora fechado um acordo sobre o plano para os servidores do Judiciário. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, havia telefonado à presidente do tribunal, Elen Gracie, para informar que o governo havia aprovado a proposta apresentada pela instituição.

No finalzinho da notícia, um pormenor interessante: as negociações haviam começado em abril. Não teriam, portanto, relação com o quadro atual? Talvez não, mas não se pode simplesmente menosprezar a coincidência. Só na semana passada o Executivo manifestou sua concordância – depois de iniciada a encrenca com o TSE.  

Bônus de direito 

No mesmo dia a Folha de S.Paulo publicou a matéria sem chamada e foi discreta ao apontar o alcance dos aumentos anunciados. O governo, segundo informação do primeiro parágrafo, pretendia concluir na semana seguinte a rodada de reajustes e garantiria "benefícios também para os servidores do Judiciário".

No quinto parágrafo houve uma referência à expectativa do governo em relação à "boa vontade do Judiciário", interessado num "novo plano de carreira" com o custo de 600 milhões de reais neste ano. A matéria apontou, além disso, um provável apoio da maioria dos juízes do TSE e do STF à tese do governo. Não houve referência a conversas entre figuras da cúpula do Executivo e do STF.

O leitor dessa matéria teve pelo menos um bônus. Pôde entender melhor o nó do conflito entre o presidente do TSE e o Executivo. "Pela Lei Eleitoral", explicaram os autores da reportagem, "o agente público não pode ‘fazer revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição".

Última palavra

Na maior parte da informação publicada desde o início da encrenca, os jornais têm mencionado sem maior explicação um grande plano de reajustes. Mas a lei não proíbe o mero reajuste, ou seja, a mera recomposição do poder de compra dos salários. Veda o aumento real generalizado, mas esse detalhe raramente ficou claro no material divulgado. O argumento do governo, mencionado na matéria, não desmente o aumento real. Nega seu caráter generalizado. Diferentes carreiras, segundo o Executivo, terão diferentes benefícios.

O assunto é importante economicamente porque o plano do governo afeta as finanças e a administração pública. Sua importância é ainda mais evidente depois de uma longa série de bondades tributárias e financeiras com alto custo para o Tesouro.

É politicamente relevante por dois motivos. Primeiro, porque se trata de saber se o governo está violando as normas eleitorais. Segundo, porque o Judiciário aparece como parte interessada nos aumentos, embora tenha a prerrogativa de pronunciar a última palavra sobre a questão.

Um pouco mais de barulho teria sido inteiramente justificável.
 

Fonte: Observatório da Imprensa, Rolf Kuntz, 27/6/2006.


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