Novamente, autonomia para desregulamentar a universidade como organização social
Roberto Leher*
 

As propostas do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) - relatório de 15 de dezembro de 2003 - para enfrentar a crise atual das universidades federais estão inscritas em um escopo estratégico mais amplo, objetivando criar uma plataforma para a "grande" reforma universitária que o governo Lula pretende apresentar ao Congresso, "após amplo debate", ainda no primeiro semestre de 2004. O GT foi coordenado pelo núcleo do governo, em especial a Casa Civil e a Secretaria Geral da Presidência. Embora com a participação do Ministro da Educação, sabe-se que o MEC ocupa um lugar secundário no processo decisório do Governo, assim como os representantes dos órgãos de fomento. O documento aborda uma série de questões, como ampliação da oferta de ensino; metas de contratação docente; bolsas para jovens doutores e aposentados; autonomia; fundações e financiamento. É preciso, portanto, separar o que são "atrativos" e o que são as orientações políticas mais profundas, para não se perder no mundo das aparências.

Autonomia e financiamento - Considerando as grandes orientações do Banco Mundial, que recentemente co-patrocinou o Seminário Internacional do Ensino Superior do MEC – Universidade XXI - e as medidas concretamente encaminhadas nas universidades pelos governos neoliberais da América Latina, é possível formular a hipótese de que o eixo estruturador da proposta é a autonomia universitária conjugada com financiamento, a exemplo do Projeto de Emenda Constitucional 370/96 e dos diversos projetos encaminhados por Cardoso e Paulo Renato Souza. São os mesmos pressupostos dos documentos mencionados: é preciso liberalizar a universidade em função de uma nunca definida "revolução tecnológica" e, quanto mais próxima ao mercado, mais coetânea seria a universidade. O documento crê que estaria "outorgando autonomia" às IFES, como se a autonomia não fosse um preceito auto-aplicável da Constituição Federal. Em contrapartida, a universidade deverá "incorporar representações da sociedade em seus órgãos colegiados". Pierre Bourdieu, criticando o Relatório Attali, nos diria: "Quando falam em representações da sociedade estão querendo dizer, na verdade, do mercado"! A importância da autonomia é instrumental e pragmática, pois é compreendida como uma prerrogativa para captar recursos no mercado: "a crise decorre também das amarras legais que impedem cada universidade de captar e administrar recursos" (página 15). Por isso, a institucionalização definitiva das fundações privadas faz parte do eixo das propostas. Estas cumpririam o papel das "Organizações Sociais e com esses dois instrumentos (SIC!) – autonomia e fundações de apoio – as universidades federais certamente disporiam de condições para aumentar a captação de recursos …". Com esta proposição, o governo Lula estaria viabilizando as organizações sociais de Bresser Pereira e Cardoso. As fundações de apoio privadas, robustecidas e melhor amparadas legalmente, estabeleceriam "contratos de gestão", agora eufemisticamente denominados de "Pacto da Educação para o Desenvolvimento Inclusivo". Na mesma linha das reformas educacionais, implementadas nos anos 90 na América Latina, a avaliação segue como eixo axial da política educacional. Após tecer elogios à GED, considera a avaliação de desempenho produtivista um dos fatores que evitou o desmoronamento das universidades, propugna que a forma de relação da universidade com o Governo e o Estado se daria no momento de sua avaliação. O futuro da universidade passa a depender da avaliação definida por uma "Comissão Nacional de Avaliação", constituída de sete membros, todos escolhidos pelo governo (MP 147). Na autonomia didático-científica, o GTI propõe que o referido sistema de avaliação dará "reconhecimento às universidades comprometidas em realizar pesquisas voltadas para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional" e aqui teríamos a indicação do ministro J. Dirceu, de que o modelo coreano é o mais adequado para o país. O Documento indica, ainda, que o sistema de avaliação irá promover a "classificação das instituições e cursos" A autonomia administrativa é tida como capaz de assegurar "a administração de seus serviços" e, nos marcos da LDB, a contratação e a exoneração de pessoal e "decidir o seu plano de carreira", indicando que as considerações do ministro da Educação, de que a carreira única é um obstáculo à autonomia, compõem uma tese incorporada pelo núcleo dirigente do governo. Expansão da oferta: educação a distância como estratégia. Um dos mais evidentes "atrativos" do documento é a afirmação de que as universidades públicas deverão alcançar 40% do total das matrículas do ensino superior em 2007, conforme meta do Plano Nacional de Educação. Examinando mais de perto, verifica-se, contudo, que essa diretriz não está em contradição com o conteúdo privatista operacionalizado pela autonomia. A expansão dar-se-ia pela tríplice combinação de aumento da carga didática dos docentes, aumento do número de estudantes por classe e, principalmente, pela educação a distância (EAD). Em homenagem ao senador Darcy Ribeiro, que subscreveu a LDB do PSDB/PFL/Banco Mundial, propõe criar o "Centro Darcy Ribeiro de EAD" para superar os "conhecidos limites da educação presencial" (página 20). A meta para 2007 é de 500 mil estudantes a distância! É uma ampliação da oferta por meio de ensino massificado e minimalista, uma estratégia que tem como pressuposto graus diferenciados de cidadania e que descaracteriza a docência e, portanto, o cerne do fazer universitário.

O GTI propõe a criação de um "Pacto da Educação para o Desenvolvimento Inclusivo", pacto que, a rigor, é um mecanismo "indutivo" de diretrizes para a massificação da oferta. Aos que aderirem, o MEC se propõe a ampliar os fluxos de recursos, pagando um determinado per capta (semelhante ao Fundef). As metas específicas serão objeto de edital público detalhado (número de vagas a serem criadas, áreas e carreiras prioritárias para a abertura das vagas etc.) Em tempo: e a tão defendida autonomia?!. Cumpre observar que o mencionado edital será aberto à saudável concorrência entre as instituições públicas e privadas que estão no Sistema Nacional de Avaliação (página 19)! A melhor forma de combater essa perniciosa reforma neoliberal das universidades federais é promover amplo debate sobre os projetos de universidade em confronto. É indispensável a afirmação por parte das universidades, sindicatos e entidades democráticas de um projeto de universidade pública, gratuita, universal e autônoma, capaz de contribuir para o rompimento da heteronomia cultural, imposta pelo capitalismo dependente, por meio da produção de conhecimento novo. Empunhando esta consigna, será possível organizar as lutas vindouras e ampliar, qualitativamente, o ensino público superior.

 

* Professor da UFRJ e pesquisador do CLACSO no Laboratório de Pesquisas Públicas da UERJ

Fonte: Folha Dirigida, 17/02/2004 – RJ.


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