O ANDES-SN E A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA: UM OLHAR PARA A HISTÓRIA
Alexandre Antônio Gíli Náder
(1) – Professor do Centro de Educação da UFPB/Diretor da Regional Nordeste 2 do Andes-SN.

 

A instauração da modernidade ocidental(2)– que, aliás, tem como um de seus primeiros  momentos (ou indícios) o surgimento das universidades – trouxe, entre outros tantos  elementos importantes demarcadores de sua ruptura com o medievo, a atribuição de  um novo papel social para o conhecimento.

Se, no período histórico da Idade Média, o valor do conhecimento, incorporado como dádiva divina, consistia em possibilitar a contemplação – tão mais estática quanto maior esse valor fosse – da perfeição da obra de Deus (lembremo-nos de Santo  Agostinho e de sua “Doutrina da Iluminação”(3)), na modernidade, o valor é transposto para a esfera da intervenção, sendo construído/produzido pelos homens para tornar-se  o principal suporte das suas ações sobre o mundo na diversidade possível de suas  naturezas. Num breve intervalo de tempo, essa concepção de conhecimento vai  assumindo o lugar da que prevalecia anteriormente. Maquiavel, por exemplo, já no  início do século XVI, em 1513, explicita essa nova percepção em sua dedicatória de “O  Príncipe” para Lourenço (o Magnífico) de Médici(4).

Nessa nova perspectiva de construção social e humana, torna-se necessário conferir ao  conhecimento o reconhecimento de sua historicidade e visualizá-lo, por sua  secularidade agora evidenciada, como produção dotada de partido (não neutra), de  intencionalidade.

Com relação à historicidade do conhecimento, cabe, de antemão, registrar que ela é  condicionada pelo entorno sócio-espaço-temporal no qual o conhecimento se situa. Mas, e este é um dos elementos centrais nesta argumentação, a especificidade da qual  o conhecimento é portador no processo de sua produção e socialização abre a  possibilidade de que o condicionamento anteriormente mencionado não se aprofunde  em determinação, o que teria como conseqüência a transformação do conhecimento  num puro reflexo das demais práticas e relações sociais em presença. Desse modo, o  conhecimento é potencialmente detentor de uma historicidade que, embora fortemente  balizada pelo seu contexto, poderá ser própria, peculiar, singular, mesmo. Esta é uma  das formas possíveis de se caracterizar o conceito de autonomia relativa do  conhecimento, autonomia essa que pode permanecer como virtualidade, mas pode,  também, efetivar-se, com maior ou menor intensidade, a depender do partido assumido pelo conhecimento, já referido acima. A abordagem dessa questão será  retomada mais adiante.

Das considerações apresentadas acima, penso ser possível caracterizar dois  desdobramentos desse novo modo de visualizar o conhecimento.

Em primeiro lugar, o alçamento, na modernidade, das ações educativas, aquelas  práticas sociais que realizam a produção e socialização do conhecimento em um novo   e mais elevado patamar, sob diversos pontos de vista, inclusive o epistemológico.

Articulado ao anterior, a nova importância adquirida pelos espaços sociais específicos  (as instituições), nos quais se processam as práticas educativas, que vão gradativamente assumindo o posto de principal instância de socialização,  anteriormente (na medievalidade) ocupado pela Igreja. As escolas, com destaque para  as universidades, são por excelência o paradigma das instituições na modernidade.

Outro elemento a ser destacado no processo de estabelecimento da modernidade é o  surgimento e a consolidação do modo capitalista de produção, que de fato reorganizou  radicalmente, em todas as suas vertentes, a existência da espécie, ao tornar-se hegemônico ao longo do período. Na contemporaneidade, dentro da qual se deu o  esgotamento praticamente absoluto das formas concretas alternativas ao capitalismo  instaladas nos países do leste europeu, usualmente designadas por Socialismo real),  essa hegemonia torna-se, efetivamente homogenia, por intermédio do fenômeno conhecido por globalização (capitalista). No entanto, tão marcante quanto essa predominância registrada acima, cabe assinalar a persistência da busca, teórica ou  empírica, de outras formas de organização da produção material distintasou mesmo  antagônicas – do(ao) capitalismo. Nesse contexto, incluíram-se aquelas buscas  historicamente superadas, como as acima citadas; também se incluem outras, mais  atuais, em processo de aglutinação de forças, e, ainda, aquelas que, mesmo  formuladas no passado, não tiveram a oportunidade de, por assim dizer, receber um  veredicto da história. Ou seja, acompanhando o que propõe o historiador catalão Josep  Fontana(5), essa busca condensa um conjunto de experiências, muitas nem falidas nem  exitosamente realizadas, que podem nos subsidiar, sem passadismos, no presente,  para a construção/reforço de possibilidades para o futuro.

A partir desse último registro feito acima e tendo em mente que referenciais de análise  aplicados a longas durações necessitam deter dinâmica histórica própria suficientemente ágil para impedir que elas se tornem anacrônicas, considero estar de  posse de todas as ferramentas necessárias para, doravante, focalizar essas reflexões  no sentido do eixo apontado pelo título do texto. Assim, vejamos.

Na perspectiva colocada pela não neutralidade do conhecimento, julgo ser necessário  que se perceba a possibilidade de projetos distintos a ele direcionados

Na perspectiva colocada pela não neutralidade do conhecimento, julgo ser necessário  que se perceba a possibilidade de projetos distintos a ele direcionados. Esses projetos terão, inquestionavelmente, desdobramentos sobre a autonomia do conhecimento e,  sem dúvida, sobre o status a ser atribuído às instituições educacionais,  especificamente às universidades. A apresentação subseqüente, ainda que sem um nuançamento mais minucioso(6), caracteriza, em grandes linhas, as possibilidades  aventadas.

Numa primeira vertente, de caráter conservador, o projeto vinculado à continuidade da  hegemonia do modo de produção capitalista, em sua configuração atual, visa a  assegurar a apropriação privada do instrumento de intervenção conformado pelo  conhecimento, obtendo, dessa apropriação, lucro. Ou seja, nessa vertente o conhecimento é, pura e simplesmente, uma mercadoria a mais, dotada de alguma peculiaridade, mas sem nenhuma autonomia em relação à instância econômica da  sociedade, já que plenamente inserido na circulação planetária em vigência, como as  demais mercadorias. Nela, ainda, educação é negócio, processo de produção e distribuição do conhecimento-mercadoria, no qual se extrai, buscando ampliá-la ao  máximo (afinal de contas, a acumulação abstrata é, por definição, um processo sem limites(9)), mais-valia absoluta e relativa. Para essa abordagem, a instituição universitária, uma das principais plantas produtoras/distribuidoras da mercadoria em  focono caso do Brasil quase que exclusivamente a únicadeveria configurar-se  plenamente subordinada aos ditames da reprodução ampliada do capital, isto é, sem qualquer veleidade de autonomia. No caso dos docentes das instituições de ensino  superior (IES), a adesão a esse projeto, além de patrocinada por um forte componente  inercial, é enganosamente sedutora. Se, num primeiro momento, ela se apresenta  como a possibilidade de gestão de seu próprio trabalho, em pouco tempo, tornar-se-á  evidente que essa alternativa estará restrita a muito poucos e aos demais restará nada  além de uma subordinação alienante e, portanto, desqualificadora de sua atuação  profissional.

Outra compreensão, que se confronta com a anterior, comprometida com uma ação  transformadora, de caráter democratizante e emancipatório dos subalternos, percebe no potencial de intervenção do conhecimento uma mediação necessária, quase mesmo  indispensável, para essa transformação democratizante. A condição de materialização  dessa potencialidade exige que o conhecimento venha a ser objeto de um processo  social que estabeleça e reforce sua condição de patrimônio do gênero humano, por  intermédio de sua socialização e apropriação irrestrita. Isso significa tentar  estabelecer, a partir de um olhar minucioso para cada conjuntura e para os processos  dinâmico-históricos de transição entre elas, a maior autonomia possível para o  conhecimento, não deixando que prevaleça na sua produção e disseminação, no caso  do presente, por exemplo, a mesma lógica que preside o conjunto das relações sociais  em vigor, com destaque para aquelas de poder. Nessa linha, a educação, identificada  com o processo social acima descrito, é um direito universal, a ser assegurado pelo Estado. E, por fim, nessa abordagem, para as universidades, instância capital para a  concretização desse direito, faz-se necessário o máximo grau de autonomia possível.  Isso significa reconhecer que, no espaço interno da instituição, estará resguardada, na  medida do possível, a prioridade da construção plural, coletiva e solidária do conhecimento e de suas articulações com as demandas, das mais variadas ordens,  emanadas por toda a sociedade, e não apenas com as oriundas dos segmentos sociais privilegiados. Para os professores das IES, a proposição de autonomia da universidade  aqui apresentada, pelo seu próprio caráter contraditório em relação àquilo que vige  predominantemente na sociedade nos dias de hoje, é, acima de tudo, uma perspectiva  de luta, muita luta. Mas, por outro lado, não há razão para rejeitá-la liminarmente; ao  contrário: o fim da História pressuporia, antes de mais nada, o fim dos conflitos –antagonismos, sobretudo – entre os diferentes sujeitos históricos (ainda que  seja pela aniquilação física de um dos contendores). Nesse sentido, o tempo, embora  exigindo doses maciças de paciência e subjetividade históricas, joga a favor dela – este   é o momento de resgatar a prescrição, já assinalada, de Josep Fontana, em nossa atuação  ao longo desse processo, que poderá desdobrar-se na (re)construção efetiva da  identidade profissional docente, em seus atributos e relações.

Não é difícil perceber a qual dos partidos a concepção de autonomia defendida pelo  ANDES-SN está vinculada. Por sua natureza de entidade sindical representativa da  categoria de trabalhadores docentes das IES, autônoma em relação ao Estado, ao patronato e às entidades político-partidárias, ele só poderia, no cumprimento de seu  compromisso de classe, vincular-se ao último projeto para o conhecimento aqui apresentado. Em suas elaborações e nos diversificados embates que tem travado, as primeiras sistematicamente aperfeiçoadas8 , e os segundos deliberados9 em suas instâncias, o que ele tem feito, na verdade, é desenvolver, dentro dos limites e  possibilidades estabelecidos, o exercício dessa opção. Se os resultados não têm sido plenamente satisfatórios à luz das suas aspirações e de seus parceiros, eles são, sem  dúvida, relevantes. Por um lado, é preciso identificar a aspereza da conjuntura contemporânea, em suas configurações micro e macroscópica, para as postulações  oriundas da racionalidade dos subalternos, e reconhecer que os efeitos sobre essa  conjuntura das ações do ANDES-SN, por menores que sejam, sempre são no sentido  do favorecimento das postulações mencionadas. Por outro, sua presença atuante na  cena histórica é, inegavelmente, fator de acionamento de virtualidades modificadoras, numa perspectiva de ruptura, do status quo.

Para concluir a apresentação das reflexões aqui explicitadas, gostaria ainda de  destacar, mesmo que brevemente, algumas questões.

as  representações sociais dos dois projetos para o conhecimento aqui caracterizados são as classes sociais fundamentais, reciprocamente antagônicas

Inicialmente, considero estar acima de qualquer dúvida o fato de que as  representações sociais dos dois projetos para o conhecimento aqui caracterizados são as classes sociais fundamentais, reciprocamente antagônicas. Não me incluo entre  aqueles que decretaram a obsolescência da classe como base para a análise da sociedade. Ao contrário, penso que das alterações introduzidas pelo recente avanço tecnológico no processo capitalista de trabalho - a agregação de valor feita pelos seres  humanos com o concurso da ciência e da técnica (e não o oposto(10)), em termos de  sua realização e gestão- decorrem uma complexificação e uma heterogeneização interna das classes fundamentais, notadamente da subalterna, mas, em hipótese  alguma, sua diluição, descaracterização ou desnaturação. E aqui, na perspectiva de atender ao alerta anteriormente feito sobre a necessidade de caráter dinâmico para os referenciais analíticos, cabe recuperar a concepção de classe defendida por  Thompson(11), na qual destaca sua natureza de ente histórico concreto, sua dupla  dimensão materialista-idealista, abrangendo, portanto, simultaneamente experiência e  consciência, e seu teor relacional-dinâmico. Finalmente, a partir dessas considerações  acima, julgo ser este o espaço adequado para justificar o tratamento utilizado na  enunciação dos projetos para o conhecimento (Ver nota 6). A intenção colocada neste  texto é de um contato de caráter inicial com a temática, sendo, a meu ver, adequado o realce de sua dimensão interclasses. Uma outra leitura, mais aprofundada, que busque  uma maior completeza na abordagem do tema do que aquela aqui desenvolvida terá,  necessariamente, que se debruçar sobre o nuançamento referido, o qual, ao meu ver, é, marcantemente, intraclasses.

Ainda que seja uma ligeira menção, gostaria de apresentar, à guisa de exemplos,  outras áreas para as quais a questão do projeto de conhecimento e, conseqüentemente, da concepção de autonomia universitária poderão trazer  implicações. Para não me alongar demasiadamente, citarei apenas duas: o campo das  relações entre público e privado que contém, em seu âmbito, com destaque, o financiamento da educação e o espaço das condições de realização do trabalho  docente.

Por fim, ainda que considerando já haver evidenciado esse aspecto, gostaria de  encerrar este artigo, ressaltando, uma vez mais, uma advertência fulcral: a adoção e a  defesa efetiva de uma concepção de autonomia universitária não devem ser jamais  visualizadas como um componente estratégico e, menos ainda, tático. Pelo contrário,  elas são elementos fundantes, instituintes do projeto para o conhecimento e, desse  modo, dos projetos de universidade e de sociedade. Eis o porquê do confronto que se estabelece em seu entorno(12).
 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, César Q. “Atualidade de Marx”, In: –. Caros Amigos, 90. São Paulo: Casa  Amarela, 2004.

BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II.  Lisboa: Martins Fontes, 1983, 2v

EAGLETON, Terry. “De onde vêm os pós-modernistas?”. In: WOOD, Ellen M. &  FOSTER, John B (org). Em defesa da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999.

FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru/SP: EDUSC,  1998.

HABERMAS, Jürgen. Towards a rational society. Londres: Heinemann, 1972.

THOMPSON, Edward P. Prefácio. In: –. A formação da classe operária inglesa.  Petrópolis/RJ: Vozes, 1987, 3v.

Santo Agostinho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, Coleção “Os Pensadores”.  Maquiavel. São Paulo: Nova Cultural, 1996, Coleção “Os Pensadores”.

 

NOTAS

(1) 2º Vice-presidente da Secretaria Regional Nordeste 2 do ANDES-SN, integrante da  Coordenação do Grupo de Trabalho de Política Educacional (GTPE/ ANDES-SN), professor do Departamento de Habilitações Pedagógicas do Centro de Educação da  Universidade Federal da Paraíba, doutor em História (UFPE, 2004).

(2) Ao falar aqui de modernidade, compreendo uma longa duração, uma estrutura à  Braudel, que se estabelece ao final do período de predomínio do modo de produção  feudal e perdura até os dias atuais. (BRAUDEL, 1983) e não o que é usualmente  abrangido pela História Moderna, quando se faz uma partição didática (?) da  temporalidade histórica. Do mesmo modo, quando mais adiante falar da contemporaneidade, estou pensando numa média duração, a conjuntura atual, contida  na estrutura da modernidade ocidental, e não no período estudado pela chamada  História Contemporânea. Ainda que sem maiores explicações, gostaria de registrar que  tomo como marcos temporais iniciais da conjuntura destacada diversos  acontecimentos ocorridos em 1968 (EAGLETON, In: WOOD, 1999, pp. 23-32).

(3) SANTO AGOSTINHO, 1996.

(4) MAQUIAVEL, 1996.

(5) FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru, SP: EDUSC,  1998.

(6) A ausência desse nuançamento será justificada a posteriori, no próprio texto.

(7) Cf BENJAMIN, César Q. “Atualidade de Marx”. In Caros Amigos, 90. São Paulo:  Casa Amarela, 2004, p.18.

(8) Cf, por exemplo, o Caderno 2, em sua edição inicial e nas sucessivas revisões e  atualizações. Vale, ainda, salientar que uma nova revisão desse documento estará na  pauta do próximo (26º) Congresso do ANDES-SN.

(9) Cf, por exemplo, os Planos de Luta formulados (Congressos) e atualizados (CONADs)  pelo sindicato.

(10) Cf HABERMAS, 1972.

(11) THOMPSON, 1987.

(12) Este texto busca ser, no limite de minhas possibilidades, uma síntese atualizada de minha Tese de Doutorado (NÁDER, Alexandre A. G. Tempo e conhecimento: dialética da duração e fundamentos da narrativa para uma História de tempo presente/recente  (1968-2002) da Educação Superior Brasileira. Recife, PE: Mimeo, 2004), na qual são  priorizadas as interfaces por ela detidas com o tema em questão.

 

 

Fonte: Revista Advir nº 20, páginas 36-39.


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