PAZ E AMOR
O Brasil foi salvo pelo rock
 

Gosto não se discute: 1 milhão de pessoas podem se acotovelar em Copacabana para ver um quarteto de velhotes fingindo de adolescentes. Outro tanto se mortifica para assistir às exibições do U2 em São Paulo.

Em matéria musical há uma enorme distância entre o filme Blackboard Jungle (1955, com Glenn Ford), sua explosiva trilha sonora e o tipo de espetáculo que Mick Jagger e Bono Vox ofereceram às multidões que os assistiram no Rio e São Paulo.

A diferença não está apenas no tempo entre as duas manifestações. Está nas respectivas naturezas. O filme de Richard Brooks captou os rebeldes sem causa dos anos 1950, a marginalidade gerada pela prosperidade do pós-guerra, a revolta contra aquele tipo de paz. Aquela música – na verdade aquele ritmo – alucinante era um protesto contra o bem-estar bem comportado.

Meio século depois, os espetáculos brasileiros revelam o deslumbramento extático (e estático) das multidões, a empolgação de uma classe média oca e sem objetos nem projetos, pronta para adular e adorar qualquer coisa – uma língua de fora (que nada tem a ver com a de Einstein), um bezerro de bosta, um par de óculos escuros e uma letra que em geral não entende – ou quando entende não lhe serve para buscar outras coisas.

Liberou geral

Gosto não se discute, viva o rock. Mas o comportamento extasiado, basbaque e babaquara da mídia diante dos dois shows merece reparos. Ficou patente a submissão da nossa imprensa a este show business globalizado e arrebatador que ela se prontifica a servir. Nada foi criticado, nenhum defeito podia ser registrado, tudo aceito para não empanar os feitos da civilização midiática brasileira. Salvo os evangélicos da Rede Record, que têm contas a acertar com prefeito César Maia, do Rio, mostrando ser capazes de mobilizar mais gente que os Stones, pela glória do Senhor.

Viva nós, os maiores em tudo. O importante é esta noção de grandeza ainda que apenas numérica.

A guerra do narcotráfico dias antes na favela da Rocinha, no Rio, nada significou, foi varrida da memória. Não foram as autoridades policiais do Rio, mas foi a sua entusiasmada imprensa que se entusiasmou com a ausência de episódios violentos.

Ninguém se deu conta de que o narcotráfico a-do-ra este tipo de evento. Com mais meia dúzia de megashows de rock por ano – e a santificada trégua do Carnaval – os traficantes não precisam recorrer a assaltos, seqüestros, arrastões ou combate às gangues rivais. O consumo está garantido com a liberação de facto do uso de drogas. Ao som do rock pauleira acabam-se as balas perdidas.

Mais shows

"Stones mostram ao mundo um Rio em paz" foi a eufórica manchete do Globo na segunda-feira (20/2). Perfeita, irretocável. Faltou apenas dizer : "Abaixo os Garotinhos, Mick Jagger para governador!"

O roqueiro, entre outros méritos, tornou-se o santo padroeiro da imprensa dominical no eixo Rio-São Paulo e, por extensão, do resto do país. No domingo (19/2), produziu um milagre jornalístico: tanto a Folha de S.Paulo como o Estado de S.Paulo conseguiram mostrar com destaque e riqueza de detalhes um evento que começou às 21h45 da véspera – isso não acontece há décadas! Num passe de mágica foi tapado o tradicional buraco informativo semanal com edições de domingo fechadas na noite anterior. Mesmo O Globo conseguiu chegar aos leitores paulistas com informações das 19h15 do sábado.

Com uma imprensa tão sensível à vocação tiete dos leitores o país está salvo, pronto para impor-se ao mundo como modelo de ordem e progresso.

Na segunda-feira, os segundos cadernos dos três jornalões eram vertigem pura. O jornalão carioca inebriado com o show de sábado, os paulistões preparando o clima para o delírio de segunda e terça, micaremes e micaretas antecipadas.

As emissoras de rádio deram show à parte. Na manhã de segunda-feira (20), num esforço investigativo ímpar, a CBN conseguiu identificar o dono de um braço que apareceu na foto de Bono na Folha e o entrevistou ao longo de exatos 15 minutos. Aqueles 15 minutos que fazem a diferença entre idiotas obscuros e idiotas famosos. Inesquecível.

O prefeito do Rio promete mais shows, o presidente Lula considera-se reeleito com o lançamento mundial do programa brasileiro do biodiesel pelo vocalista do U2 .

Paz e Amor, o país foi salvo pelo rock.
 

Fonte: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br>, Alberto Dines, 21/02/2006


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