Os buracos nas Universidades federais
Carlos Lessa*

  

O governo federal vem asfixiando a universidade pública: optou por considerar o
ensino superior mercadoria para o investimento privado

Foi lugar comum, na última campanha presidencial, a ênfase na importância estratégica da educação. É equívoco transferir o vício do "economicismo" para a educação.

O "economicismo" sugere que, pela educação, se gera empregos para o conjunto dos indivíduos. Isto não é verdade. Certamente, o indivíduo melhor instruído amplia suas chances para postos existentes no mercado de trabalho.

Emprego depende do crescimento da economia e do progresso técnico, consubstanciados pelo investimento produtivo. Por exemplo, um emprego no setor petroquímico exige US$ 300 mil de investimentos.

Sem o emprego, o qualificado passa por um processo de "desalfabetização", por não exercitar nem estar estimulado em sua área de formação profissional.

Têm crescido os anos de escolaridade média da população brasileira: a média passou de 5,1 anos em 1993 para 6,6 anos em 2004; porém, entre 1995 e 2004 o número de desempregados com mais de 11 anos de estudo cresceu 291% - muito acima, portanto, da média geral de 83,2% de desempregados.

O professor Pochmann estima que entre 140 a 160 mil brasileiros com curso superior completo ou incompleto têm emigrado do Brasil.

Obviamente, nossa população jovem e qualificada está emigrando para o exterior. O paupérrimo Haiti remete 80% de seus universitários para o primeiro mundo.

Nosso crescimento econômico nas duas últimas décadas foi apenas levemente superior ao haitiano. Estamos "contribuindo" ao primeiro mundo.

Educação, virtude republicana por excelência, é fundamental para o futuro da sociedade nacional. É sua tarefa formar a geração de reposição de novos cidadãos.

Espera-se que a futura geração supere a atual em conhecimento, civilidade, prosperidade etc. A educação sempre tem seu olhar e justificativa no futuro.

O sonho do mestre é que seu discípulo o supere; cada geração deve se esforçar para que suas sucessoras sejam mais civilizadas e tenham melhor qualidade de vida.

A educação não pode ser prisioneira do mercado, porém a estagnação da economia é fonte de frustração para os jovens. O salário médio da população com 11 anos ou mais de escolaridade vem declinando no Brasil.

Brasileiros com maior escolaridade estão desalojando os mais idosos com menor escolaridade, pois não tem crescido o número de postos de trabalho.

É criminoso imaginar que cortes no ensino superior priorizem o ensino básico. Com isto, debilita-se todo o edifício educacional. O processo educacional depende dos mestres. Estes devem receber a melhor e mais completa formação possível. O ensino universitário é o andar superior e alicerce de todo sistema educacional.

Fui reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a mais antiga universidade federal do Brasil: instituição de vanguarda do processo educacional brasileiro, quer pelo ângulo civilizatório, quer pelo científico, quer pela qualidade dos profissionais graduados e apoio aos desenvolvimento empresarial.

Desde os meus primórdios como professor, convivi com péssima qualidade dos banheiros. Fora a cruel desatenção com os portadores de deficiência, nada mais humilhante que expor um visitante a um banheiro sujo.

A falta de material faz com que quem trabalhe em jornada integral leve o próprio papel higiênico. Infelizmente, convivi com a vulnerabilidade das bibliotecas e arquivos - sujeitos a goteiras, fungos e furtos. Prevalece, nos antigos prédios históricos, a insegurança das instalações quanto a risco de incêndios.

É alarmante a insalubre exposição do pessoal docente, discente e de apoio às contaminações biológicas, químicas e até radiativas. Não falarei da vulnerabilidade dos campi à violência, pois não é específica da universidade.

Permaneci um semestre, em 2002, como reitor, pois logo em seguida, convidado, assumi o BNDES. A extensão das insuficiências da UFRJ exigia um programa emergencial. 

O último ministro de educação de FHC prometera liberar recursos. O professor Aloísio Teixeira, reitor que me sucedeu, não obteve ainda a totalidade deles.

É inquestionável a qualidade do ensino público que, apesar do corte de verbas e redução do número de docentes efetivos, compensado pelo aumento dos substitutos, aumentou em 100% o número de alunos e vagas, entre 1990 e 2002.

Não é verdade que a universidade pública seja elitista. Nas públicas 38% dos alunos vêm de famílias com renda inferior a 2 salários mínimos e 5,4% de famílias de 10 ou mais salários mínimos.

Nas privadas, são 24% de famílias mais pobres e 9,5% das mais ricas. Hoje, mais de 70% dos alunos estão em universidades privadas. O governo federal, com sua política de cortes brutais, vem asfixiando a universidade pública; optou por considerar o ensino superior mercadoria para o investimento privado.

Com 2,5% dos juros que o país paga ao ano, seria possível duplicar a população discente das universidades federais. Contudo, o governo federal prefere receber impostos da Universidades privadas, trocados por bolsas do ProUni.

Aumenta a sedução do negócio universitário; recentemente, os jornais noticiaram que um grupo estrangeiro estaria adquirindo uma "empresa nacional de ensino superior".

É antiga a grita pela volta dos bandejões que, há 15 anos, foram banidos de universidades públicas. Em princípio, a população universitária cumpre jornada integral.

O campus do Fundão é extremamente isolado. Na ausência de refeições de qualidade a preço em conta, restam os trailers. Para a imensa maioria dos estudantes, gastar entre 5 a 7 reais por uma refeição precária é excessivo.

Além deste aspecto absolutamente prático, numa universidade com poucas bolsas, há, na comensalidade, o convívio. Creio que se condena a população universitária a adicionais, segmentação e isolamento, que impedem o espaço social de convivência do bandejão.

Pessoalmente, priorizaria a higiene, a proteção das bibliotecas e das pessoas - porém lembro que, no programa emergencial, tudo isto e mais o bandejão já estavam incluídos.

 

* Carlos Lessa é ex-reitor e professor titular de economia brasileira da UFRJ.

 

Fonte: Valor Econômico, 22/11/2006.


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