A casa e a cara
Flávio Aguiar*

 

Estou entre aqueles que acreditam não haver propriamente uma “conspiração” na imprensa contra o governo Lula. Seria demais para ela. Conspiração era coisa para Assis Chateaubriand, Júlio de Mesquita Filho e Neto, Roberto Marinho, gente que queria pautar ideologicamente a sociedade brasileira.

Neste 28 de junho há um interessante artigo da jornalista Eliana Catanhede na página 2 da Folha de S. Paulo. O título é: “Cadê a mentira?”. O tema da jornalista é que a sucessão de depoimentos e contra-depoimentos vão confirmando tudo o que o deputado Roberto Jefferson denunciou. Não importa, diz ela, quais as condições morais do denunciante, nem suas intenções. O que importa é “sua excelência, o fato”.

A pergunta é pertinente, e o rumo do artigo também: mesmo que não houvesse outras corroborações, as denúncias, vindas de quem vem, com tal currículo e conhecimento dos bastidores da política, teriam de ser apuradas. Mas a resposta não está longe. Ainda não se pode dizer, nas denúncias do deputado, o que é verdade e o que é mentira. Pode-se especular que, no mínimo, algo deve ser verdade. A construção da mentira, no entanto, é o próprio depoimento, e seus efeitos colaterais.

Iago mostra o lenço de Desdêmona, que Otelo lhe havia dado, nas mãos do suspeito Cássio, e depois nas mãos de Bianca, a quem ele (Cássio) o deu. É o lenço de Desdêmona? É. Cássio o tem nas mãos? Tem. Bianca o recebeu? Recebeu. Desdêmona foi leviana? Foi. As semelhanças superficiais param por aí. Na peça há um artifício: Foi Iago, ele mesmo, que tomou o lenço que Desdêmona levianamente perdeu e o pôs nos aposentos de Cássio. Emília, mulher de Iago, denunciará o artifício mais tarde e por isso será morta pelo marido.

Mas há uma semelhança profunda que não se extingue. Formulada por quem é, pelo homem de fino trato que é Iago, conhecedor dos meandros e das palavras do poder, a denúncia fascina Otelo, tanto quanto o amedronta. Quanto mais ele entra em pânico, mais a denúncia e a “persona” - a máscara - do denunciante o obsedam. Fascinado, Otelo não consegue ver mais nada. Para ele a verdade, toda a verdade, se resume nas palavras e na máscara do denunciante. Ele mata Desdêmona e se suicida no final.

Esta é a mentira que se vai construindo em torno do caldeirão (agora me vêm à mente as bruxas de Macbeth) aberto de denúncias: perde-se a capacidade de olhar para os lados, de analisar, de fazer as clássicas perguntas sobre “para onde estão se mexendo os personagens”, “cui prodest”, quem lucra, como se dispõem e se redispõem as peças no tabuleiro político, como chegamos a esta situação, vamos sair dela para onde, e outras mais.

Este fascínio do mal, do tumor, da chaga aberta, vai se impondo e é irreversível, a começar pela própria imprensa. Estou entre aqueles que acreditam não haver propriamente uma “conspiração” na imprensa contra o governo. Por quê? Porque uma conspiração seria demais para ela. Conspiração era coisa para Assis Chateaubriand, Júlio de Mesquita Filho e Neto, Roberto Marinho, gente que queria pautar ideologicamente a sociedade brasileira.

A grande imprensa de hoje se apresenta incomparavelmente mais débil ideologicamente. É incomparavelmente mais repetitiva, pois limita-se a comprar pacotes ideológicos prontos para vendê-los publicitariamente, como o patrocinado pelo Consenso de Washington na última década e meia. Depois ela se aperta: nada do que defendeu a partir deste Consenso deu certo em nenhum lugar do mundo, muito pelo contrário.

Falar de conspiração em relação à imprensa de hoje é o equivalente a querer dar a Medalha da Ordem do Corvo (saudoso apelido de Carlos Lacerda) para quem até agora, neste momento, apenas deu ressonância à rataria do porão que faz água. Pode-se dizer, é certo, que há uma campanha renovada contra o governo petista, promovida por jornalistas ou editores de capas e manchetes (Para não haver confusão quero deixar claro que não penso ser este o caso da jornalista que citei), assim como há uma campanha movida por tucanos e pefelistas. 

Todos eles se aproveitam das circunstâncias. É até mesmo diferente (até agora) do que aconteceu na campanha de 1989, quando houve edições de debates, manchetes criminosas juntando o seqüestro de Abilio Diniz ao PT, etc. O que há? Primeiro, uma maré de denúncias, cuja apuração vai ser demorada e lenta devido à falta até o momento de provas irrefutáveis quanto à maioria delas, e os grandes indícios em favor delas advém no mais das vezes dos currículos dos próprios acusadores. Segundo, a paralisia em que os principais acusados, o governo e o PT, entraram depois das denúncias, em que pesem algumas respostas.

Pois entre os fascinados pela maré de denúncias posta à solta pelo nosso Iago, alguns há, entretanto, que me fascinam mais do que os outros. Refiro-me a correligionários petistas, dentro e fora do governo. Paralisados, como Otelo, não conseguem agir nem aparentemente pensar em outra coisa. O governo em algumas ocasiões dá respostas publicitárias à situação de crise: trata hemorragia com band-aid! E agora se meteu neste tremedal de oferecer ministérios ao PMDB sem ao menos dar um prazo para a resposta, que em tempo de internet deveria ser exigida em vinte-e-quatro horas, não mais, se é que o tal convite deveria mesmo ter sido feito.

É claro que não foi o PT que inventou a oferta de cargos como moeda de troca para apoios, nem mesmo os 19 mil cargos de confiança no governo federal, e se mensalão houver, muito provavelmente ele também não é de hoje. Mas é óbvio que, se o PT encontrou uma situação “de fato” em Brasília, pelo menos no que se refere à distribuição de cargos (aguardemos provas cabais sobre a existência do suposto mensalão), ele (e não só o governo) a ela se acomodou, sem tugir nem mugir, como se dizia nos antigamentes. E se envolveu com gente da pior laia, subitamente guindados a serem os verdadeiros e ínclitos amigos da casa, em lugar das alianças de antanho nos movimentos sociais e dos velhos companheiros e companheiras de guerra. Ou seja: partido e governo parecem paralisados pela própria mentira que ajudaram a construir, essa de dar força e verossimilhança a esses “novos amigos”.

Há quem pense até que governo e partido podem ter entrado nessa na base de que “os fins justificam os meios”. Mas não penso assim. Penso que o problema é que tanto governo quanto partido parecem padecer de súbita amnésia quanto aos fins históricos que os levaram aonde chegaram. O problema é que “não há mais fins, só meios”. E quando se perde de vista o horizonte, pode-se ficar mais atrapalhado do que cusco (cachorro, em gauchês) em procissão e mais atarantado do que gato em dia de faxina.

Resultado: a própria cúpula do partido também está paralisada. Parece cavalo quando o galpão pega fogo: corre pra dentro. Não só a cúpula: reina no restante do partido um clima de “tempo de murici, cada um cuida de si”, citando frase do Coronel Tamarindo dita na célebre retirada da terceira expedição contra Canudos. As conclamações à união e à defesa só têm como eco a dissonância e o silêncio dos ingênuos: “não é comigo”. Parece que diante do incêndio cada um só quer saber de salvar a própria palha eleitoral.

Revi recentemente a adaptação de “O Sobrado” para o cinema, episódio do romance “O Continente”, de Erico Verissimo, lançada em 1956 pela Vera Cruz (direção de Cassiano Gabus Mendes e Walter George Durst). Nela há uma passagem em que Licurgo Cambará, o patriarca do Sobrado, conta para os filhos Rodrigo e Toríbio uma “história da guerra entre pica-paus e maragatos”. Licurgo, cujo nome já é um programa ideológico, conta então a história do próprio Sobrado, a casa onde resiste à bala o assédio dos maragatos, sem se entregar até o final. Perguntam os meninos sobre qual ser a lição desta história, ao que Licurgo responde mais ou menos assim:

– Tem duas coisas que um homem deve fazer respeitar: a cara e a casa. O resto não têm importância.

Licurgo exagera: há outras coisas que têm importância. Mas que ele tem razão quanto à cara e à casa, ah isso tem. Dá vontade de citar outra frase do filme, a do velho Fandango quando vai fazer uma sortida para a rua. Ao cruzar pela porta, debaixo do tiroteio, ele, o veterano de quase todas as guerras do século XIX em território gaúcho, grita:

– Não se assustemo, moçada!

Isso é para quem quer e tem pelo que brigar.

 

* Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.  

Fonte: Ag. Carta Maior, 28/06/2005.


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