A chantagem

De como Valério deixa o governo em pânico e sai com a intenção de
ganhar  200 milhões de reais. Nesta e nas páginas seguintes,
dramáticos detalhes (ameaça, pânico, choro) da crise
que subiu a rampa do Planalto
 

Na manhã do dia 9 de julho, um sábado, Marcos Valério, o publicitário-lobista-laranja do men-salão, estava uma pilha de nervos. Em Belo Horizonte, sentia-se pressionado por todos os lados e, desesperado, telefonou para o ex-presidente da Câmara, o petista João Paulo Cunha, que estava em Osasco. Falaram-se por celular. "Eu vou estourar tudo", ameaçou Valério, descontrolado. Disse que não agüentava mais a situação e contou que faria a delação premiada – mecanismo pelo qual um réu diz o que sabe em troca de um alívio na pena. "Vocês vão se ferrar. Avisa ao barbudo que tenho bala contra ele", disse Valério, numa chantagista referência ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. João Paulo, que àquela altura se preparava para ir à reunião da cúpula do PT que acabaria chancelando o afastamento de José Genoíno da presidência do partido, entrou em estado de pânico.

  foto: Ed Ferreira/AE
"VOU ESTOURAR"
Marcos Valério, com medo de ser preso e perder tudo, chantageia o governo: "Vou estourar tudo"

Até aquele sábado, Valério tinha garantias de que nem a quebra de seu sigilo no Banco Rural revelaria suas operações. Tudo o que viria a público seriam os altos saques feitos numa agência do Rural em Belo Horizonte, e não se ficaria sabendo que o dinheiro fora efetivamente entregue na agência do Rural em Brasília. A identidade dos verdadeiros favorecidos pelo dinheiro, portanto, ficaria eternamente sob o manto do anonimato. Ele soube, no entanto, que tudo ia aparecer – e ficou desesperado com a idéia de que poderia ser preso. Na ligação para João Paulo, fez exigências abertas para poupar o governo. Queria duas coisas: a garantia de que não seria enjaulado e a chance de obter um dinheiro graúdo, e lícito, para assegurar seu futuro e o da família. Uma maneira de ganhar esse dinheiro seria intermediando o fim da interminável liquidação do Banco Econômico, instituição que fechou as portas há dez anos. Como corretor da operação junto ao ainda dono do banco, o baiano Ângelo Calmon de Sá, Valério calcula que poderia amealhar uns 200 milhões de reais – soma equivalente à comissão de 20% sobre uma operação que, dependendo da forma como for encaminhada, poderá totalizar até 1 bilhão de reais. Nesse ambiente em que se fala de milhões como se dinheiro caísse do céu, é bom parar e pensar no que significam 200 milhões de reais. Dariam, por exemplo, para comprar, via mensalão, o apoio de uma centena de deputados por quase seis anos.  

Apavorado, o ex-presidente da Câmara avisou o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro Delúbio Soares das ameaças de Valério, ainda na manhã de sábado. "O cara ficou louco, vai explodir tudo", disse. Em seu rol de chantagens, Valério ameaçou, inclusive, citar o nome de empresas que segundo ele teriam doado dinheiro não contabilizado, para ficarmos no jargão oficial, ao PT (veja reportagem). Como prova de sua disposição em contar tudo caso não fosse atendido em seus pleitos, Valério ainda disse que tinha munição contra dois ministros recém-empossados: Saraiva Felipe, da Saúde, e Hélio Costa, das Comunicações, ambos do PMDB mineiro. Segundo Valério, os dois teriam usado sua lavanderia de dinheiro em campanhas eleitorais. Consultados por VEJA, os dois ministros negam veementemente a irregularidade.  

O empresário Marcos Valério tinha motivos de sobra para seu desespero. A semana que se encerrava naquele sábado tinha sido particularmente difícil. No fim de semana anterior, a reportagem de capa de VEJA revelara que Valério avalizara e até pagara uma parcela de um empréstimo de 2,4 milhões de reais feito pelo PT no BMG. Pela primeira vez, aparecia uma prova material de sua ligação umbilical com o partido, derrubando sua versão de que era apenas amigo de Delúbio Soares. Em Brasília, o presidente Lula passou a defender o afastamento de toda a cúpula do PT. Silvio Pereira, o secretário-geral, foi o primeiro a cair. No dia seguinte, caiu Delúbio. Valério começou a se preocupar com sua falta de interlocução dentro do PT. Para piorar, o deputado José Borba, então líder do PMDB na Câmara, afirmara que negociava cargos no governo com ele, Valério. O publicitário passou a temer que houvesse um movimento para jogar toda a responsabilidade sobre seus ombros.

  foto: Bruno Veiga/Strana
DINHEIRO LEGAL  Uma agência do Econômico, que fechou as portas em 1995: com sua liquidação, Valério acha que pode ganhar uns 200 milhões

Seu mundo estava desabando. Na quarta-feira, depois de depor na CPI, sua imagem tão característica, com sua calva absoluta, aparecia em todos os cantos do país. A CPI quebrara seu sigilo bancário e o de dez de suas empresas, levando seus sócios a culpá-lo fortemente pela falência iminente de seus negócios. Na sexta-feira, os acontecimentos se precipitam ainda mais, o homem da cueca é flagrado com 100.000 dólares, fica patente que José Genoíno deixará a presidência do PT no dia seguinte e que a disposição da nova cúpula do partido seria fazer uma devassa nas contas. Com os nervos à flor da pele, Valério fica atônito. Sua vida pessoal também estava despedaçada. Sua mulher, Renilda, fora duplamente surpreendida – com a profundidade da corrupção e as insinuações de um romance dele com uma ex-secretária. Sua filha adolescente se recusava a vê-lo. Em desespero, Valério procura João Paulo – e a reação do governo à chantagem está na reportagem que se segue.  

Fonte: Rev. Veja, Otávio Cabral, ed. n. 1915, 27/07/2005.


A reação
 

De como o Ministro da Justiça volta a ser advogado criminalista

foto: Dida Sampaio/AE foto: Ailton Freitas/Ag. O Globo UMA VERSÃO SÓ
O ministro da Justiça (à esq.), e Delúbio e Malheiros, em sessão da CPI: em todos os lados, e de repente, só se falou em crime eleitoral

"O cara ficou louco, vai explodir tudo", disse o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, ao alertar o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro Delúbio Soares sobre a chantagem de Marcos Valério. José Dirceu, que desde sua demissão tem tido contatos esporádicos com o presidente Lula, fez a notícia chegar ao Palácio do Planalto. E ainda era manhã do sábado 9 de julho. A dupla que virou o centro de gravidade do poder no governo tomou então conhecimento da história: os ministros Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, que se encontrava em São Paulo, e Antonio Palocci, da Fazenda, que permanecia em Brasília. Naquele momento, era preciso ter calma e, sobretudo, acalmar Marcos Valério. Seu advogado, Marcelo Leonardo, sócio de um dos grandes escritórios de advocacia de Minas, recebe sinais da disposição do governo em atender aos pleitos de seu cliente e consegue, enfim, dar-lhe um pouco de tranqüilidade.  

Consolida-se então um quadro dramático: o de um governo que, para manter-se de pé, precisa socorrer-se permanentemente de um criminalista. Já desde o início da crise, o ministro vinha exercendo seus conhecimentos penais. Logo depois da primeira entrevista de Roberto Jefferson ao jornal Folha de S.Paulo, o governo ficou atônito com uma acusação. Jefferson dissera ter avisado o presidente Lula do mensalão "em duas conversas" – uma em janeiro, outra em março. Lula fez uma reunião com quatro ministros: Antonio Palocci e Thomaz Bastos, além de Aldo Rebelo e Luiz Gushiken, que já deixaram de ser ministros. Nessa reunião, Thomaz Bastos sutilmente elaborou o raciocínio de que seria prudente assumir apenas uma das conversas, caso ambas tivessem ocorrido. E, sutilmente, advertiu que o mais seguro era assumir a conversa com mais testemunhas. Na conversa de janeiro, além de Lula e Jefferson, havia uma testemunha. Na de março, além dos dois, havia mais seis pessoas. Lula admitiu a conversa de março.  

Com sua sólida carreira de 47 anos como criminalista, Thomaz Bastos passou a exercer um papel fundamental na crise particularmente depois da chantagem de Marcos Valério. Amigo há décadas de Arnaldo Malheiros, o advogado contratado para orientar e defender Delúbio Soares, o ministro ganhou uma interlocução direta com os personagens centrais da crise. Na semana que se seguiu ao dia 9 de julho, o ministro conversou duas vezes com Arnaldo Malheiros – uma vez por telefone e a outra pessoalmente. Só os dois sabem o que tanto conversam, e eles dizem que apenas jogavam conversa fora como dois velhos amigos, mas o certo é que logo surgiu uma tese jurídica para a defesa de Valério e Delúbio – uma tese imediatamente classificada de farsa, como se lê na reportagem que começa na página seguinte.


A farsa 

De como Delúbio e Valério caem na tese do crime eleitoral e o marqueteiro-mor ensaia o discurso do presidente Lula

  foto: Fotos reprodução de TV/Ag. O Globo e Monica Zarattini/AE
UM ESPANTO
Duda Mendonça, o publicitário oficial, e Lula, em imagem da entrevista que concedeu em Paris: coisa espantosa
 

A tese do crime eleitoral surgiu logo depois do telefonema em que Marcos Valério começou a chantagear o governo. O telefonema aconteceu na manhã do dia 9 de julho, um sábado. Já na segunda-feira seguinte, o advogado Arnaldo Malheiros, contratado para defender o ex-tesoureiro Delúbio Soares, conversou por telefone com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. No mesmo dia, Malheiros e seu cliente embarcaram para Belo Horizonte. Ali, encontraram-se com a outra dupla – Marcos Valério e seu advogado Marcelo Leonardo. A conversa girou em torno da tal tese do crime eleitoral. A idéia é simples: Delúbio pediu que Valério contraísse empréstimos junto aos bancos BMG e Rural e destinasse o dinheiro a amigos do PT às voltas com dívidas de campanha. Valério, generoso e prestativo com o amigo, atendeu ao pedido e, pela versão combinada, tomou emprestados 39 milhões de reais – e repassou o dinheiro, a conta-gotas, aos nomes que Delúbio lhe apresentava.  

É uma linha de defesa ideal, pois, em sua estrutura, não há corrupção, suborno, propina ou mensalão – só um crime eleitoral, dado o fato de que Delúbio, ao confessar que não contabilizara os 39 milhões de reais nas contas do PT, revelou que seu partido tinha um caixa dois. A punição, prevista no artigo 350 do Código Eleitoral, é de no máximo três anos de prisão, mas nem advogados com longa militância na área do direito eleitoral têm notícia de que alguém tenha ido para a cadeia por isso. Em geral, o crime prescreve antes do julgamento e, além disso, como os réus são primários, a prisão é substituída pela prestação de um serviço qualquer.  

Enquanto se acertava uma versão em Belo Horizonte, a mesmíssima versão era apresentada em Brasília, numa longa reunião no gabinete presidencial, no Planalto. Na reunião com Lula, quem mais falou foi Thomaz Bastos. Os outros dois ministros presentes, Antonio Palocci e o novo coordenador político Jaques Wagner, ouviram mais do que se pronunciaram. Thomaz Bastos contou que, em sua visão, a situação estava delicada para o PT, ponderou sobre os perigos de que a crise chegue ao governo e, sutilmente, falou sobre o crime eleitoral, que tinha a tremenda vantagem de circunscrever o problema ao Congresso e ao PT, deixando o governo de fora. Lula não foi orientado a endossar a tese do crime eleitoral, nem foi incentivado a dar entrevista sobre o assunto.  

Mas, ainda na segunda-feira, estava em cena o marqueteiro Duda Mendonça, publicitário oficial do petismo. Naquele dia, Duda Mendonça, chamado a Brasília por Lula, submeteu o presidente à última de duas sessões de treinamento sobre como tratar do assunto diante dos jornalistas. Nessas sessões, Duda aconselhou Lula a falar dirigindo-se sempre às classes mais baixas, C, D e E, que ainda lhe depositam alta confiança, desprezando os segmentos A e B, que, segundo o publicitário, já estariam decepcionados com o presidente. Os ecos dessa orientação de Duda seriam ouvidos, dias depois, na espantosa entrevista de Lula em Paris.  

Encerrada a reunião em Belo Horizonte na segunda-feira, os advogados e a dupla Valério e Delúbio trataram de evitar que se descobrisse a combinação. Para despistar a imprensa, vazaram até que o encontro fora muito tenso e que Delúbio e Valério por um triz não se atracaram fisicamente. Tudo lorota. A cronologia do que se passou depois disso é eloqüente por si só. Três dias depois, na quinta-feira, Valério desembarcou em Brasília e prestou depoimento ao procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, que durou oito horas. Contou a história do crime eleitoral.  

Na mesma quinta-feira, Malheiros encontrou-se com Thomaz Bastos em São Paulo. Falaram-se pessoalmente. Malheiros disse que Delúbio Soares queria prestar um novo depoimento. O ministro sugeriu que, para agilizar as investigações, o depoimento fosse prestado diretamente ao procurador Antonio Fernando de Souza, a quem chegou a telefonar pedindo que recebesse o cliente de Malheiros. No dia seguinte, sexta-feira, Delúbio prestou um depoimento de três horas. Contou a mesma história do crime eleitoral. Na noite de sexta-feira, Valério apareceu numa entrevista ao Jornal Nacional "confessando" o crime eleitoral. No dia seguinte, a confissão em entrevista foi feita por Delúbio. Em seguida, foi a vez do presidente. Em entrevista concedida em Paris dois dias antes, e reproduzida no Fantástico no domingo, Lula admitiu candidamente que "o que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente". Com isso, num de seus movimentos mais desastrosos desde o início da crise, Lula endossou a tese do crime eleitoral que, como se lerá na reportagem da página seguinte, não ficou de pé mais do que dois dias.  


Tempos sombrios

Negar-se a enxergar a espessura do problema que envolveu o governo não é uma saída para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como as dívidas não podem ser pagas contraindo-se outros débitos, também as crises não podem ser diluídas com a produção de mais sobressaltos. Lula, infelizmente, fez isso na semana passada. Ele teve o que se poderia chamar de um "momento Chávez", uma recaída populista em um presidente que é popular mas nunca teve um ato público de namoro com o abismo. Durante a cerimônia de posse do novo presidente da Petrobras, Lula deixou-se enlevar pela imagem de grandeza impoluta que cultiva de si mesmo e lançou aos brasileiros um estranho desafio: "Entre os 180 milhões de brasileiros, não há homem ou mulher que tenha moral para me dar lições de ética". Mais adiante

  foto: Eraldo Peres/AP
acrescentou outro repto, dessa vez dirigido apenas à parcela da população brasileira a que ele julga não pertencer: "Sou filho de pai e mãe analfabetos. O único legado que me deixaram é andar de cabeça erguida. Não vai ser a elite brasileira que vai me fazer baixar a cabeça".

A verdade é que parte da elite brasileira está mesmo querendo obrigar Lula a baixar a cabeça. Essa parte da elite é formada por pessoas que ganham peruas Land Rover, presentes de grandes empresas com negócios com o governo (caso de Silvio Pereira, ex-secretário do PT); por pessoas que obtêm empréstimos milionários em transações subterrâneas com empresários suspeitos (caso de Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT); e por pessoas que saem para ir a uma clínica neurológica mas no caminho passam em um banco e saem de lá com centenas de milhares de reais (caso da assessora de Paulo Rocha, ex-líder do PT na Câmara dos Deputados). Bem, foi-se o tempo da elite que acendia charutos com notas de 100 dólares e que, caprichosamente, fazia e desfazia governos. Para tristeza de Lula, a parte da elite brasileira que está tirando o brilho da sua biografia e a força do seu governo é formada por pessoas que forram a cueca com 100.000 dólares – um troféu de vergonha pública do PT que talvez nunca mais seja superado em grafismo e escárnio.  

As reportagens que se seguem dão conta deste momento sombrio no Planalto. A primeira delas é um espantoso retrato da fragilidade do governo, que deu ao notório empresário Marcos Valério espaço para fazer uma chantagem. Ele exigiu 200 milhões de reais em troca do seu silêncio sobre desmandos que, como mostra a reportagem, ele acredita serem suficientemente fortes para derrubar o que resta do governo Lula. Outra reportagem explica de modo didático como funcionava a máquina de lavagem e esquentamento de dinheiro comandada por Valério e colocada à disposição da ávida cúpula do PT. Uma outra desmonta a tentativa de circunscrever o lamaçal petista a um único delito, o crime eleitoral – que prescreve em três anos e pelo qual ninguém cumpre pena atualmente no Brasil. Finalmente, há uma reportagem leve sobre os parlamentares que estão tocando as CPIs no Congresso. Destaque para a deputada Denise Frossard (PPS-RJ), autora do melhor resumo do drama político que se desenrola em Brasília: "O problema é que o PT é o partido que quis calar a imprensa, amarrar as mãos do Ministério Público e controlar o Judiciário". Dá calafrios pensar que poderia ter conseguido.  

A ESPANTOSA HISTÓRIA DE COMO VALÉRIO TENTOU CHANTAGEAR O GOVERNO  

A IDÉIA DE SALVAÇÃO QUE FOI ABATIDA EM VÔO: COLOCAR TODA A CULPA EM DELÚBIO SOARES  

UMA AULA SOBRE OS SUBTERRÂNEOS DOS CAIXAS DOIS E DA LAVAGEM DE DINHEIRO  

LULA NÃO PODE NEM DEVE SOFRER IMPEACHMENT: ATÉ AGORA NÃO EXISTE DESLIZE LEGAL DO PRESIDENTE E ELE MANTÉM RAZOÁVEL APOIO POLÍTICO E POPULAR  

O BRASIL ESTA MADURO. A CRISE SE DESENROLA SEM IMPACTO NEGATIVO NAS INSTITUIÇÕES


O resultado 

De como a farsa do crime eleitoral é desmontada e a perplexidade
com a entrevista de Lula em Paris
 

Na terça-feira passada, chegaram à CPI dos Correios caixas de documentos sobre a movimentação bancária de Marcos Valério no Banco Rural, a instituição que esteve no centro do esquema financeiro do PT. No momento em que as caixas foram abertas e os documentos passaram a ser analisados, a tese do crime eleitoral começou a desabar – e a suspeita de que havia mensalão começou a se comprovar. Até a sexta-feira, a CPI já descobrira que pelo menos sessenta pessoas, todas ligadas a políticos, haviam sacado cerca de 60 milhões de reais na agência do Rural e nas agências do Banco do Brasil. O número, por si só, derruba a tese de crime eleitoral. Delúbio diz que Valério tomou 39 milhões de reais emprestados para dar a petistas e aliados, mas a conta já chegou a 60 milhões.
Entre os casos descobertos está justamente o do ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha.  Sua  mulher,  Márcia,  esteve  no  Rural  em

  foto: Celso Junior/AE
O DEPUTADO-BOMBA
Jefferson, que esteve com a cúpula do PFL: vinho, queijo e, numa mudança de rumo, ataques contra Lula
foto: Eptacio Pessoa/AE
PROVA DOCUMENTAL
João Paulo Cunha e sua mulher, Márcia: confirmado o saque de
50 000 reais
 

Brasília em setembro de 2003 e sacou 50.000 reais. Antes, o deputado dissera que ela fora ali tratar da conta de sua TV a cabo.
A revelação foi tão devastadora que até petistas se renderam às evidências. "O mensalão existiu", afirmou o presidente da CPI dos Correios, senador Delcidio Amaral, do PT de Mato Grosso do Sul. "Houve remu-neração a deputados", concordou Ricardo Berzoini, que deixou o Ministério do Trabalho para assumir a secretaria-geral do PT. A prova do mensalão veio associar-se a outros dois dados incômodos para o governo. Um foi a reportagem de capa da edição passada de VEJA, na qual se mostrava que Lula foi alertado cinco vezes sobre o mensalão, entre fevereiro do ano passado e março deste ano.

O outro fator foi a entrevista do presidente em Paris, que causou perplexidade entre os políticos. De início, suspeitou-se que Lula estivesse participando diretamente da divulgação de uma versão previamente combinada, colocando-se, nesse caso, no mesmo patamar de um Delúbio Soares ou um Marcos Valério. O Planalto apressou-se em desmentir qualquer combinação. 

O desmentido, porém, não resolve. Se Lula não embarcou na combinação, como descobriu que o PT tem caixa dois e faz o que se faz sistematicamente no país? Isso significa que o presidente, sem ser avisado nem orientado por ninguém, revelou um quadro criminoso que conhecia havia tempo? Juntando os três fatores – a prova do mensalão, as cinco vezes em que Lula foi alertado e sua entrevista em Paris –, criou-se em Brasília uma atmosfera francamente desfavorável ao próprio presidente, cuja figura vinha sendo cuidadosamente preservada até pela maior parte da oposição. Na terça-feira, depois de uma reunião com os senadores tucanos Tasso Jereissati e Arthur Virgílio, além do pefelista José Agripino, o senador Jorge Bornhausen, do PFL de Santa Catarina, assim resumiu o clima entre pefelistas e tucanos: "Está encurtando o limite legal da presunção da inocência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva".  

No dia seguinte, Bornhausen recebeu o deputado Roberto Jefferson em sua casa. Os dois tomaram vinho, beliscaram cubos de queijo e conversaram por pouco mais de uma hora. Na conversa, Jefferson, pela primeira vez desde que apresentou suas denúncias, mostrou inclinação em não mais preservar o presidente Lula. Para Bornhausen, Jefferson reafirmou que avisara Lula duas vezes sobre o mensalão. Com receio de que a crise evolua para seu pior desfecho, com um eventual impedimento do presidente, a oposição iniciou conversas com o empresariado. No primeiro compromisso dessa natureza, Bornhausen almoçou com João Roberto Marinho, dono das Organizações Globo, no Rio de Janeiro. A idéia é evitar que a crise, aconteça o que for, provoque um impasse de caráter institucional e acabe por contaminar o bom momento da economia do país.  

Apesar da notável piora da situação geral na semana passada, a oposição não parece motivada para promover o impeachment de Lula. Na última semana, o senador petista Delcidio Amaral sondou colegas da oposição, como os tucanos Tasso Jereissati e o governador Aécio Neves, de Minas Gerais, e não encontrou disposição para tirar Lula do cargo. Nos bastidores, há um movimento explícito para tentar limitar o alcance da crise, evitando que chegue ao presidente e, também, que se espraie excessivamente dentro do próprio Congresso. A crise, na semana passada, subiu definitivamente a rampa do Planalto, mas há muito já abalou o espírito do presidente. Lula está tenso, nervoso e irritado, principalmente com o PT. Por duas vezes, ele chorou durante um desabafo com aliados. Uma vez, ao receber um velho aliado no gabinete presidencial, começou a falar do assunto e acabou em lágrimas. Em outra, durante o vôo que fez na última semana para Recife, também não conseguiu se conter. VEJA ouviu seis personagens centrais do enredo contado da página 58 até aqui (João Paulo Cunha, Marcos Valério, Márcio Thomaz Bastos, Antonio Palocci, Marcelo Leonardo e Arnaldo Malheiros). Uns não deram resposta à revista. Os outros preferiram negar que tenham sabido ou participado da chantagem ou da farsa. Pela qualidade de suas fontes e pela proximidade delas com os fatos, VEJA decidiu narrar o que se leu aqui.  

Com reportagem de Antonio Ribeiro, em Paris,
e Leandra Peres e Julia Duailibi, em Brasília
 


Está na cara

Não é preciso nem mais ouvir o que dizem; basta olhar para concluir: mentirosos seriais submetem o país a um festival de indignidades

 

foto: Fotos Celso Junior/AE; Dida Sampaio/AE; Joedson Alves/AE
DÁ PARA ACREDITAR?
Valério da testa franzida, Delúbio pisca-pisca e Silvio mão-na-boca: sinais exteriores de mentira são a manifestação não-verbal do que todo mundo já suspeitava

 

Qual o maior mentiroso de todos nesse aluvião de imposturas que estarrece o país? As desculpas esfarrapadas, as lorotas, as cascatas, as patranhas, as patacoadas, os engodos são tantos que o embusteiro de ontem é rapidamente eclipsado por novos e mais vigorosos concorrentes. Vale a pena lembrar, por exemplares, alguns temporariamente fora do ar. Não se fala muito, no momento, de José "Não me lembro que assinei" Genoíno nem de seu irmão, José Nobre "Isso parece armação" Guimarães. Aliás, também anda em baixa o suposto objeto da armação, José Adalberto Vieira da Silva, aquele dos 100.000 dólares escondidos todo mundo sabe onde – esse com tantas desculpas, cada uma mais patética que a outra, que não faz jus sequer a um apodo. E João Paulo "Minha mulher foi acertar uma conta da TV a cabo" Cunha (50.000 reais sacados pela patroa no mais movimentado point de Brasília, a notória agência do Banco Rural)? E o deputado peelista Bispo Carlos "Discutimos alianças com Delúbio pelo país" Rodrigues (150.000 reais)? E José "Eu conheço Marcos Valério en passant" Borba (200.000 reais)? E o mais importante de todos os paroleiros desaparecidos, José "O governo do PT não rouba nem deixa roubar" Dirceu? Alguns estão condenados a voltar ao centro dos acontecimentos, outros serão sugados pelo buraco negro da crise sem deixar vestígios.  

Pelo papel seminal que desempenharam no esquema geral da corrupção e pelo destaque que tiveram na última semana, os três mosqueteiros da dinheirama ilícita ocuparam o centro do grande teatro da mentira. Marcos Valério, Delúbio Soares, Silvio Pereira. Só de ouvir esses nomes, e se lembrar de seu desempenho diante das câmeras, em CPIs ou entrevistas, pessoas normais tendem a ter reações semelhantes: reviram os olhos, fazem uma expressão de repugnância, dão um risinho nervoso. São respostas emitidas na mesma linguagem não-verbal que, inconscientemente, registram nos, digamos, depoentes. O vocabulário corporal dos mentirosos é amplamente conhecido pelos estudiosos do comportamento humano: são pálpebras que disparam a piscar, cenhos franzidos que se fixam num roteiro preestabelecido de embuste, mãos que cobrem a boca ou mexem no nariz, olhares enviesados, tronco rígido, membros contraídos.  

Tome-se o exemplo de Marcos Valério da última vez que apareceu em público, na entrevista em que tentou vender o engodo batizado de Operação Paraguai: o dinheiro que irrigava contas de petistas e aliados vinha, alegou, de empréstimos bancários contraídos a pedido de Delúbio Soares para saldar dívidas de campanha. Não era preciso nem ouvir os detalhes da versão cambaia para uivar de incredulidade. Dotado de razoável autocontrole, Valério denunciou-se na testa reiteradamente franzida, na teimosa orla de suor sobre os lábios, nos movimentos rígidos da mão. Ao dizer que não nomearia os beneficiários dos "empréstimos" devido a um acordo com a procuradoria, franziu a testa durante 33 segundos. Por que omitiu os supostos empréstimos no depoimento à CPI (os grandes saques em dinheiro, recorde-se, destinavam-se a "pagar fornecedores", de acordo com a segunda e esfarrapada versão – na primeira, ele disse a VEJA: "Lido com gado. Há fazendeiros que não aceitam cheque")? A resposta propiciou quarenta segundos de testa enrugada.  

Já em matéria de piscadelas, o campeão é Delúbio Soares. Na segunda dose da Operação Paraguai ele bateu recordes. Em condições normais, uma pessoa pisca em média vinte vezes por minuto. Ao responder à primeira pergunta do repórter da Rede Globo – se confirmava a versão de Marcos Valério –, piscou 52 vezes em cinqüenta segundos. Achava crível que tudo isso fosse feito sem conhecimento da direção do PT? Foram 21 piscadas em oito segundos. E era apenas coincidência que estivesse falando um dia depois de Marcos Valério? Vinte e três vezes em nove segundos. Quatro dias depois, no longo depoimento à CPI, a situação mudou: as pálpebras delubianas estavam quase estáticas, tomadas por tamanha morosidade que se cogitou, com a liberdade propiciada por crise dessas dimensões, sobre um efeito químico.  

As manifestações não-verbais de mentirosos seriais evidentemente são apenas indícios. É possível que quem se põe a piscar aceleradamente, com o rosto contorcido e gestos crispados, esteja expressando sinais de nervosismo e tensão. É possível, por exemplo, que quando Silvio Pereira leva repetidamente a mão ao rosto, cobrindo a boca e tocando o nariz, esteja apenas se protegendo do canhoneio da CPI (e pensando em coisas mais amenas, como uma casa na praia, quem sabe um passeio de Land Rover). Os desmentidos que valem são os que vêm na forma de provas documentadas – e não têm faltado. Os comentários sobre os sinais exteriores de mentira são uma reação ao festival de indignidades a que o país tem sido submetido. Identificá-los, e até rir deles, é uma forma de autopreservação num momento de forte stress emocional. Para combatê-los, o remédio ideal é conhecido. "A verdade é avassaladora", avisou o deputado Roberto Jefferson quando pôs fogo na crise. Mesmo já superado pelo ritmo vertiginoso das revelações desencadeadas desde então, ele ocupa uma estranha posição: quase tudo o que falou até agora foi confirmado.
 

Com reportagem de Laura Ming

Fonte: Rev. Veja, Vilma Gryzinski, ed. n. 1915, 27/07/2005.


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