Com quantos genes se faz uma canoa
Fernando Reinach* 

  

É este o estado atual da genômica, dispomos de toda a seqüência
do genoma, mas não somos capazes de interpretá-la

 

O seqüenciamento do genoma humano permitiu que conhecêssemos o número de genes que compõe o nosso genoma e a seqüência de cada um deles.

Mas isso não quer dizer que sabemos como o genoma determina nosso funcionamento. É como se os geneticistas tivessem entregado para a humanidade o livro que descreve os segredos da felicidade e da riqueza.

Mas, de posse do livro, abrimos na primeira página ansiosos para descobrir seus segredos e descobrimos que a língua em que o livro está escrito é totalmente incompreensível.

É este o estado atual da genômica, dispomos de toda a seqüência do genoma, mas não somos capazes de interpretá-la. Olhamos a seqüência de DNA do mesmo modo que durante anos a humanidade observou a pedra Roseta, incapaz de compreender seu significado.

Em 1822, quase 25 anos depois de sua descoberta, Jean-François Champollion finalmente decifrou o significado dos hieróglifos. A era pós-genômica será dedicada a decifrar o genoma e os primeiros resultados que vão nos ajudar nessa tarefa já estão saindo do forno.

O primeiro é uma enorme tabela na qual em cada linha está um dos milhares de genes. Nas colunas estão cada um dos processos que ocorrem nos seres vivos.

Assim a primeira coluna poderia ser ‘fazer cabelo’, a segunda, ‘produzir saliva’ e assim por diante. A primeira linha seria gene 1, a segunda, gene 2. Se, por exemplo, o gene 32 está envolvido no processo ‘fazer cabelo’ na interseção da linha 32 com a coluna ‘fazer cabelo’ colocamos um sim.

Um grupo de cientistas preencheu as duas primeiras colunas dessa tabela para cada um dos 19.075 genes do verme C. elegans. Na primeira linha estava escrito ‘necessário para a primeira divisão do ovo após a fecundação’ e na segunda, ‘necessário para a segunda divisão celular’. As quase 40 mil interseções foram preenchidas com um sim ou um não.

Para obter o resultado os cientistas usaram um truque genético e criaram mais de 40 mil casais de vermes no laboratório, sendo que em cada casal um, e só um, dos 19.075 genes estava inativado.

Cada casal produziu ovos e cada ovo foi filmado durante o desenvolvimento embriológico. Os filmes foram analisados e o efeito da inativação de cada gene, determinado.

Foram descobertos 1.668 genes (8,5% do total) que quando inativados produzem efeitos deletérios durante o desenvolvimento. Destes, 661 genes afetavam as duas primeiras divisões celulares. Os efeitos dos 661 genes foram classificados em 23 diferentes grupos, cada grupo com um defeito diferente.

Alguns genes, quando inativados, faziam os ovos explodir; outros simplesmente faziam que o processo de divisão fosse mais lento que o normal.

O resultado é um mapa de todos os genes envolvidos nas primeiras divisões celulares e o efeito de cada um desses genes. É só o começo.

Esse trabalho enorme não cobre sequer 1% de todos os processos que ocorrem no verme C. elegans, que é muito mais simples que um ser humano.

Além disso, mesmo quando essa tabela estiver completa, ela será só uma das diversas ‘pistas’ que serão usadas para tentar decifrar o significado dos hieróglifos presentes nas seqüências do DNA genômico. Algum de nós ainda estará vivo quando esse trabalho terminar?

Mais informações: Full-genome RNAi profiling of early embryogenesis in 'Caenorhabditis elegans', vol. 434, pág. 462, 2005.
 

* Fernando Reinach  é biólogo e professor da USP. 

Fonte: O Estado de S. Paulo, 18/5/2005


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