O Congresso busca o foco

 

Parlamentares começam seu trabalho com a casa cheia. Muitos têm problemas com
a Justiça, outros são folclóricos e grande parte é assistencialista.
Eles saberão fazer as reformas que o Brasil precisa?

A segunda-feira 12 foi um dia de chuva forte em Brasília. Diz uma crença popular que temporais muitas vezes ocorrem porque algo de inédito ou inusitado aconteceu. Pois naquela segunda o plenário da Câmara reuniu 426 deputados numa sessão deliberativa. Numa Casa que se acostumou a trabalhar apenas de terça a quinta-feira, projetos foram discutidos, apreciados e aprovados. Comentou-se que é apenas entusiasmo de início de mandato, mas não é bem assim. Em 2003, na primeira segunda-feira após a posse dos novos deputados daquela que foi considerada a pior legislatura de todos os tempos, apenas 91 deputados pisaram no Congresso. Nada se votou. No ano passado, a coisa foi ainda pior: a sessão caiu por falta de quórum. Terá sido um sinal de que o Congresso, combalido e desgastado pelos escândalos e denúncias que se abateram sobre ele nos últimos anos, afinal começa a mudar? “É preciso ter cautela”, recomenda o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), símbolo da luta de alguns parlamentares pela moralização do Legislativo. “A Casa está trabalhando, as primeiras semanas têm sido de acerto, mas a verdade é que boa parte dos vícios e atitudes que desgastaram o Congresso continua acontecendo.” Esse é o dilema: sem que os problemas que geraram os recentes escândalos tenham sido corrigidos, o Congresso que entra é capaz de superar a crise moral que se abateu sobre o Congresso que se foi?

Se a atividade política continuar definida por padrões condenáveis, a alta produtividade talvez de pouco adiante. Enquanto o plenário discutia e votava na semana passada, esses padrões continuaram acontecendo. Na terça-feira 13, por exemplo, um grupo de dez deputados do PMDB, a maior parte do Rio de Janeiro, apresentava a sua fatura ao novo líder do partido, Henrique Eduardo Alves (RN). “Te apoiamos, agora você não pode negar o que queremos”, disseram a ele. O que eles queriam, e conseguiram, era colocar na presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) o deputado Leonardo Piciani (PMDB-RJ). Trata-se da comissão mais importante da Câmara. Todos os projetos têm que passar por ela. Ali se determina se as propostas ferem ou não os preceitos da Constituição. Por isso, geralmente é presidida por juristas renomados, com reputação ilibada. Piciani, no entanto, tem apenas 27 anos e é somente bacharel em direito. Não é advogado. Quanto à reputação, ele é sócio do pai, o presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Jorge Piciani, em negócios que estão sendo investigados pela Receita Federal por suspeita de sonegação, fraude fiscal e lavagem de dinheiro. O mesmo tipo de acerto partidário que o levou à presidência da CCJ alçou o deputado Wellington Fagundes (PR-MT) ao comando da Comissão de Desenvolvimento Econômico. Fagundes foi um dos deputados investigados por envolvimento com o esquema dos sanguessugas. No total, estão reeleitos 12 parlamentares apontados como mensaleiros ou sanguessugas.

Não é por mera coincidência que boa parte dos deputados tenha se abrigado exatamente nas comissões da Câmara cujos temas estão mais relacionados com os interesses dos seus principais financiadores de campanha. Roberto Balestra (PP-GO), que está na Comissão de Agricultura, recebeu R$ 1,2 milhão de sete usinas de álcool e açúcar. O ex-ministro da Saúde Saraiva Felipe obteve R$ 448 mil de três laboratórios de medicamentos – e está na Comissão de Seguridade Social e Família. O deputado Arnaldo Madeira (PSDB-SP), financiado por três bancos e pela Bolsa Mercantil & Futuros de São Paulo, está na Comissão de Finanças e Tributação. O ex-ministro dos Transportes Eliseu Padilha (PMDB-RS), na Comissão de Viação e Transportes, recebeu R$ 215 mil de quatro empreiteiras.

De acordo com levantamento do portal G1, um em cada sete novos deputados federais responde a processos ou investigações criminais. São 74 parlamentares que respondem a 133 processos. Há casos famosos. Em 1993, o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PR) disparou dois tiros contra um adversário político, Tarcísio Buriti, dentro de um restaurante em João Pessoa. Jamais foi punido. O deputado Aníbal Gomes (PMDB-CE) é investigado pela suspeita de ter arquitetado a morte de um primo. O deputado Armando Abílio (PTB-PB) é acusado pelo Ministério Público por tentativa de fraude no vestibular de medicina da Universidade Federal da Paraíba. No Congresso, os parlamentares desfrutam de imunidade e condições especiais para responder aos processos que faltam aos cidadãos comuns.

Outro dado preocupante é tema de um levantamento feito pela assessoria técnica do PSB, em conjunto com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Segundo o levantamento, 68% dos deputados têm o que os técnicos batizaram de “perfil assistencialista”. “É pelo valor da gratidão que os assistidos se vinculam ao titular das ações de caráter assistencialista”, explica o trabalho. Ou seja: esses deputados se elegem trocando favores materiais com seus eleitores. Prometem obras ou benefícios sociais e, em contrapartida, conseguem seus votos. São, em bom português, deputados fisiológicos. No Congresso, também trocarão seus votos pela aprovação de emendas orçamentárias e outras benesses. Soa ainda no mínimo estranho que Aline Correia (PP-SP), filha do ex-deputado Pedro Correia, cassado por envolvimento no escândalo do mensalão, tenha sido eleita deputada federal com apenas 11,1 mil votos. É menos do que recebeu o deputado federal eleito menos votado do bem menor Estado do Acre, Henrique Afonso, do PT, que ganhou 14,8 mil votos. Aline virou deputada em conseqüência do sistema de voto proporcional. Ela foi puxada pelos 739,8 mil votos dados a Paulo Maluf (PP-SP). Maluf, de resto, ocupou a tribuna na quarta-feira 14 para um discurso, no mínimo, inusitado. Ele, que responde a processos por sonegação fiscal, pediu penalidades “mais severas” aos sonegadores. Reconheceu que, “no Brasil, dificilmente um sonegador cumpre pena”. Com a palavra, Maluf prometeu apresentar um projeto de lei aumentando as penas para quem burla o Fisco, mas, ao mesmo tempo, afirmou que esse projeto será acompanhado de “um Refis definitivo” – referindo-se ao programa oficial de parcelamento de dívidas fiscais.

Na semana passada, o PMDB resolveu eleger como prioridade este ano a aprovação da reforma política. Se for cumprida, tal determinação é importante porque os peemedebistas formam as principais bancadas tanto na Câmara como no Senado. A reforma que já tramita no Congresso ataca a maioria dos problemas identificados. Define mudanças no financiamento das campanhas, no sistema proporcional de eleição dos deputados e estabelece a fidelidade partidária. Aprovado pelo Senado no ano passado, está parada na Câmara. “Há alguns pontos menores dependendo de aprovação do Senado, mas o principal agora é tarefa da Câmara”, diz o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). Entre as coisas que Renan gostaria de modificar no Senado está a forma de escolha dos suplentes. Hoje, eles não passam de alguém que o próprio senador nomeia. Se o senador deixa o cargo, o suplente assume sem ter recebido um voto sequer. Renan defende que o suplente passe a ser o segundo candidato a senador mais votado. Outro ponto é a limitação da tramitação das medidas provisórias (MPs). No ano passado, nada menos que 65% das sessões do Senado foram prejudicadas porque estavam trancadas por necessidade de aprovação das MPs.

No processo de desgaste que atingiu o Legislativo, o Senado, formado por pessoas mais experientes, conseguiu se preservar mais do que a Câmara. É algo que não deixa de gerar ciúmes e disputas. “Há seis anos, o Senado se sobrepõe à Câmara. No momento em que eles resolverem os seus problemas, vão querer diminuir os nossos poderes. Temos de estar prontos para reagir a isso”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), numa reunião de líderes na terça-feira 13. É esse o quadro que o novo presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), busca mudar. O alto quórum nessas sessões iniciais é fruto do seu estilo mais duro. Chinaglia ameaçou cortar o ponto dos deputados. Os deputados já reagem, acusando-o de estar isolado em seu gabinete e não recebê-los. Que tem tomado as suas decisões sem ouvir o colégio de líderes. Procurado por ISTOÉ, Chinaglia nada quis dizer sobre as suas primeiras semanas no comando da Câmara. Entre os novos deputados, circula discreto pelo Congresso o gaúcho Ibsen Pinheiro, do PMDB. Ele retorna depois de ter sido cassado como um dos integrantes da máfia do Orçamento. Hoje, é opinião corrente no Congresso que Ibsen foi afastado muito mais pelas inimizades que gerou ao ser duro no comando da Câmara do que por conta de acusações concretas. “Eu era um parlamentar com boa imagem pública, mas sem grande poder político interno; hoje, sei que quem não tem grande poder político interno tem mais é que ficar no baixo clero”, comenta agora Ibsen, humildemente.

 

 

Fonte: Rev. IstoÉ, Rudolfo Lago e Hugo Marques, 21/2/2007.


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