Constituição e reforma universitária
Eros Roberto Grau*

 

O debate a respeito de qualquer reforma, em qualquer subsistema jurídico, se não é reforma constitucional – como a recente reforma do Poder Judiciário, por exemplo -,  porém operada no quadro infraconstitucional, deve ser encaminhado desde a perspectiva constitucional. Essas reformas devem ser arquitetadas sob a tutela da Constituição.

A Constituição do Brasil traça programas a serem empreendidos pelo Executivo e pelo Legislativo e a serem rigorosamente observados pelo Judiciário. Mais do que simples instrumento de governo, ela enuncia diretrizes a serem cumpridas e fins a serem alcançados pelo Estado e pela sociedade. Basta lermos o seu artigo 3º. Ao Estado incumbe a implementação de políticas, políticas públicas, voltadas à realização dos objetivos ali fixados, sem deles se afastar.

De mais a mais, para sabermos o que determina a Constituição, é necessário que ela seja interpretada – isto é, compreendida – no seu todo, não aos pedaços. Não se os pode ler, este ou aquele preceito, como se existisse destacado, isolado do sistema normativo que a Constituição compõe. Daí por que, ao cogitarmos da reforma universitária, hoje em larga discussão na imprensa – o que é salutar para a democracia -, a primeira pergunta a fazermos diz com a definição de como o ensino é tomado pela Constituição do Brasil. Trata-se de um serviço público? Ou, ao contrário, tratar-se-ia de uma mercadoria?

Os serviços públicos podem ser privativos ou não-privativos. Encontramos, entre os primeiros, aqueles cuja prestação é privativa do Estado (União, Estado-membro ou município), ainda que a Constituição admita a possibilidade de entidades do setor privado desenvolvê-los, apenas e tão-somente, contudo, em regime de concessão ou permissão (art. 175 da Constituição de 1988). Entre os restantes – serviços públicos não-privativos - encontram-se aqueles que podem ser prestados livremente pelo setor privado, isto é, independentemente de concessão ou permissão. Há atividades que são serviços públicos, estando ou não sendo empreendidas pelo Estado. Pois é certo que a mesma atividade não pode, concomitantemente, ser e deixar de ser serviço público, conforme esteja sendo empreendida pelo Estado ou pelo setor privado. Isso é inteiramente insustentável.

Repito: o que torna os chamados serviços públicos não-privativos distintos dos privativos é a circunstância de os primeiros poderem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão ou permissão, ao passo que os últimos apenas poderão ser prestados, pelo setor privado, sob um desses regimes.

Há, portanto, serviço público mesmo na prestação, pelo setor privado, dos serviços de educação. Por isso mesmo é que o art. 209 da Constituição declara expressamente ser livre à iniciativa privada o ensino. Se o ensino não fosse serviço público, não haveria razão para a afirmação do preceito constitucional. Não importa quem preste tais serviços - União, Estados-membros e municípios ou particulares. Em qualquer hipótese, haverá serviço público. No caso da educação, diz ainda a Constituição, no artigo 209, que ela pode ser exercida pela iniciativa privada, desde que atendidas duas condições: o cumprimento das normas gerais da educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo poder público.

A reforma universitária de que dão notícia os jornais, ensaiada em um anteprojeto de lei, há de ser plenamente adequada à Constituição, aos programas, diretrizes e fins por ela enunciados.

Assim, não resta dúvida quanto à necessidade de as universidades públicas e privadas estarem voltadas ao desenvolvimento regional, segundo os interesses nacionais, atendendo às políticas e aos planejamentos públicos definidos pelo governo. A liberdade de ensino conferida pela Constituição à iniciativa privada há de ser exercida, por outro lado, em razão e nos limites da função social da educação superior. Incumbe ao Estado o dever de fazer com que assim seja.

Logo, o ensino universitário, qual o básico, não se o pode tomar como objeto de mercancia. O Estado é responsável pela sua prestação à sociedade. Ele, não o mercado, deve orientar essa provisão, observadas as diretrizes definidas constitucionais aplicáveis ao setor e, em especial, os objetivos enunciados no artigo 3º da Constituição, entre os quais o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o da garantia do desenvolvimento nacional; o da redução das desigualdades sociais e regionais.

O planejamento educacional, que -como toda atividade de planejamento- funciona como um redutor de incertezas, este também é um dever do Estado. Aliás, no nosso tempo são atribuídas responsabilidades cada vez mais amplas ao Estado. Inclusive no sentido de preservar o mercado, instituição jurídica que, para funcionar regularmente, depende fundamentalmente de segurança e certeza jurídicas e da garantia de que os contratos serão respeitados.

A ordem que o mercado pretende ser apenas se realiza como tal na medida em que assegurada pelo Estado. Não somente como regulador de condutas, coibindo abusos que o colocariam em risco, mas também como prestador de atividades indispensáveis à fluência das relações sociais.



*
Eros Roberto Grau, 64, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é ministro do Supremo Tribunal Federal.



Fonte: Folha de S. Paulo, 24/01/2005


Opiniões sobre os artigos ...


Coletânea de artigos


Home