Se cortar, vai fracassar

 

O fato de sermos ineficientes, na comparação com outros países,não significa
que devamos reduzir os gastos com saúde e educação

No jargão do mercado, 2006 já está contratado. Será o ano em que a taxa de crescimento do PIB e a taxa de inflação ficarão no entorno de 3%: a primeira medíocre, a segunda, brilhante! Agora é preciso: 1. Resolver como, lenta mas seguramente, dar mais espaço para o crescimento econômico, com a diminuição da carga tributária (38% do PIB) e respeito ao equilíbrio fiscal. 2. Apresentar um programa que leve o mercado a aceitar a idéia que a relação Dívida Líquida/PIB seguirá em queda, o que acelerará a diminuição do juro real.

Trata-se, obviamente, de uma tarefa difícil, mesmo para quem já não depende de favores eleitorais menores. Que tem estatura e credibilidade para enfrentar, ao mesmo tempo, os exageros reivindicatórios dos velhos “companheiros” e a pequenez da política franciscana do “é dando que se recebe”.

Talvez seja essa a única vantagem do mais cruel legado da octaetéride fernandista: a possibilidade de reeleição sem desincompatibilização. Reeleito, o cidadão recebe uma espécie de alforria política. Pode escolher livremente o seu destino: sair como um estadista (pessoa que exerce liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias, como define o novo Houaiss), ou perder-se na mediocridade do tricô partidário de governadores, cuja maior ambição é assumir a oportunidade de serem estadistas em 2014 (quando se reelegerem).

Sem limitações partidárias não significa acima e fora dos partidos, mas sim a cooptação partidária para um programa completo, claro, factível, transparente e exeqüível, com justiça social, que tenha como objetivo além dos dois já mencionados.

Também são necessários a continuidade e o aprofundamento dos programas que aumentam a igualdade de oportunidade para todos os cidadãos. Essa é a única forma de dar moralidade ao mais poderoso instrumento de aumento da produtividade da mão-de-obra, que é a competição em um regime de economia do mercado.

É evidente que, qualquer que seja esse programa, ele envolverá uma redução do tamanho relativo do Estado (carga tributária) e uma redução relativa do tamanho da sua apropriação do crédito (Dívida Líquida/PIB). A insistência no “relativo” é fundamental: deve ser um programa para o quadriênio 2007/2010, com objetivos temporais bem datados, que permitam à sociedade aceitá-lo, controlá-lo, o que aumentará a sua credibilidade à medida que se processar a sua execução.

Uma das condições mais fundamentais para a credibilidade e a cooptação política para o programa é que ele não pode ser objeto da falácia da composição tão conhecida dos economistas: o que as empresas podem fazer individualmente (ajustarem seus custos instantaneamente), o Estado não pode, sem que acumulem forças de oposição moral, social e política que levam à destruição do programa.

Todos sabemos que o Brasil não despende muito menos do que outros países, com o mesmo nível de renda, em saúde ou educação. E todos sabemos, também, que as comparações internacionais que levam em conta o nível desses gastos com relação ao PIB e sua eficácia nos colocam em situação constrangedora: somos, em geral, muito ineficientes. As corporações apoiadas em vinculações constitucionais acomodaram-se, ao longo de muitos anos, em um baixo nível de produtividade.

O maior equívoco de qualquer programa é sugerir uma redução dos gastos em tais setores, onde a ineficiência (freqüentemente escondida como falta de recursos) é gravemente sentida pela sociedade. O que se deve propor, portanto, não é o corte de despesas. Pelo contrário, é assegurar o mesmo nível de despesa real, isto é, medida em termos físicos, corrigida plenamente pela taxa de inflação durante alguns anos, combinada com um aperfeiçoamento na qualidade da administração, capaz de produzir um pequeno aumento da produtividade para compensar o aumento da população (1,5% ao ano).

O mesmo deveria ocorrer com a Previdência Social. Aqui sim, nossos gastos são mesmo superiores aos dos outros países, quando comparamos com a porcentagem de população com mais de 65 anos. Não há, entretanto, proposta de corte de gastos, mas de sua manutenção no mesmo nível real, compensando o aumento da população com um pequeno esforço de fiscalização.

Em quatro anos, isso permitiria, simultaneamente: 1. Uma pequena redução da carga tributária. 2. Uma redução da Dívida Líquida. 3. Um aumento do investimento público, que melhorará a produtividade do investimento privado. 4. Uma redução segura da taxa de juro real que, virtuosamente, estimulará os outros três efeitos, o que facilitará o crescimento.

 

Fonte: CartaCapital, Delfim Netto, 22/11/2006.


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