Cotas estimulam discriminação reversa,
diz procuradora


Roberta Kaufmann*, cota impõe ônus para parcela da população que não é culpada e afronta a Constituição com reserva de vagas
 

Procuradora de Justiça no Distrito Federal, Roberta diz que o modelo em discussão não resolve o problema, é inconstitucional e pode deflagrar no país uma “discriminação reversa”.  

“A adoção de cotas estimula uma discriminação reversa, em que um grupo de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas universidades públicas, sofre o ônus. Vivemos em uma sociedade onde o preconceito não é escancarado. As pessoas que são racistas têm vergonha de dizer que o são. Conseguimos superar a escravidão sem ter uma sociedade com ódio racial. Implementar raça como fator de segregação pode acabar com esse frágil equilíbrio”, considera.  

Segundo ela, a adoção do sistema de cotas sob a perspectiva de reparação histórica é um equívoco. “Por que os brancos pobres de hoje devem pagar pela escravidão que foi aplicada no Brasil?” Como alternativa, ela sugere a distribuição de bolsas de estudos em cursinhos pré-vestibulares ou em faculdades para os estudantes mais pobres.  

Para a procuradora, falta um recorte social ao projeto de lei que estabelece a adoção de cotas nas universidades. “Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade.” 

Veja a íntegra da entrevista concedida por Roberta Fragoso Kaufmann ao Congresso em Foco: 

Congresso em Foco – O percentual de 50% das vagas nas universidades reservadas no PL 73/1993 para alunos da rede pública de ensino é justo?

Roberta Fragoso Kaufmann – Não. O modelo de cotas brasileiro é uma cópia do modelo norte-americano. Nem nos Estados Unidos, país onde todo esse debate de cotas raciais surgiu, as leis de reserva de vagas foram estendidas à educação. Estamos importando um modelo para uma questão que jamais foi aplicada. E o Brasil faz cópias sem as alterações necessárias. A reserva de vagas em seleções públicas é inconstitucional, pois fere os princípios da igualdade e da proporcionalidade. 

Em sua opinião, que malefícios as cotas trazem para a sociedade?

A adoção de cotas estimula uma discriminação reversa, em que um grupo de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas universidades públicas, sofre o ônus. Vivemos em uma sociedade onde o preconceito não é escancarado. As pessoas que são racistas têm vergonha de dizer que o são. Conseguimos superar a escravidão sem ter uma sociedade com ódio racial. Implementar raça como fator de segregação pode acabar com esse frágil equilíbrio. 

Mas a cota não seria uma possível solução para resolver a histórica dívida social e racial que o Brasil tem com os negros e indígenas?

A idéia básica das ações afirmativas não é buscar a reparação histórica. O principio elementar da responsabilidade civil diz que só pode pagar pelo dano quem cometeu o dano. Essa questão de dizer que vamos impor cotas porque é uma reparação histórica é falsa. Por que os brancos pobres de hoje devem pagar pela escravidão que foi aplicada no Brasil? O argumento da política compensatória agride a responsabilidade civil. Como alguém que é contra a escravidão deve pagar por isso? Pode-se até fazer ações afirmativas, mas não por cotas. Elas impõem o ônus para parcela da população que não é culpada. 

Mas, com mais remanescentes de escolas públicas nas universidades, o quadro de exclusão social e racial não mudaria?

A política afirmativa de cotas no Brasil é muito simbólica. É feita para passar a imagem de que o Poder Legislativo está preocupado com a questão. Mas essa política não resolve o problema. Ela é uma política a custo zero, não há aumento de vagas nas instituições públicas de ensino superior ou oferta de bolsas de estudo. 

O ingresso de estudantes cotistas pode diminuir o nível acadêmico das universidades? 

O problema não é esse. O nível acadêmico termina se equivalendo, pois os professores acabam exigindo, e os alunos têm que correr atrás. O problema não é a universidade ter que lidar com alunos sem base. O problema é a inconstitucionalidade que se instaura no processo seletivo, no acesso à universidade. O sistema de cotas é excessivo. 

Qual a avaliação da senhora a respeito do critério da autodenominação para definir a raça?

O fato de ser negro no Brasil é muito amplo, pois somos o país mais miscigenado do mundo. Nos Estados Unidos, as ações afirmativas para negros conseguem ser aplicadas porque há a regra de uma gota de sangue. No Brasil, é muito complicada essa definição. Se fosse pelo critério norte-americano, seríamos 90% de negros. Ainda assim, a autodenominação é muito falha. Leva a casos como o dos irmãos gêmeos da Universidade de Brasília em que um foi escolhido para concorrer às cotas e outro não. Instituir comissões para dizer se a pessoa é afrodescendente é um retrocesso. Que legitimidade tem comissões como essas? Querer que uma terceira pessoa diga a que raça eu pertenço é uma política nazista. Isso é um absurdo num sistema que tenta dar uma identificação objetiva para um critério que nunca foi objetivo.

Ainda que seja contra as cotas, a senhora acredita que se deve adotar o critério de limite de renda em um sistema de reserva de vagas para escolas públicas?

No Brasil, a idéia de raça e classe social tem que ser relacionada. Dar preferência a negros de classe média em detrimento do branco pobre não justifica. Esses projetos de lei de cotas não estipulam o recorte social, não especificam a renda. As escolas militares, por exemplo, são escolas públicas. Tem muita gente rica que estuda em colégio militar. Em Recife, Pernambuco, há vários colégios de aplicação, que são escolas federais públicas, que funcionam dentro das universidades. Esses colégios são excelentes. Aí lhe pergunto: o fato de ser 50% das vagas para alunos de escolas públicas reflete o recorte social do país? Não. Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade. Além disse, deve-se considerar que cursos como Matemática, Música e Letras têm presença maciça de estudantes afrodescendentes. Já cursos de Medicina e Odontologia há uma menor participação de negros, pois os materiais para seguir o curso são caríssimos. 

Em vez de criar cotas, o governo não deveria melhorar o ensino público?

Sem dúvida. Se quisessem mesmo resolver o problema, fariam investimentos maciços na educação de base. Ou, até mesmo, ofereceriam bolsas atreladas a políticas de auxílio para quem precisa. 

Que outras ações afirmativas deveriam ser adotadas?

Políticas afirmativas de bolsas de estudos em cursinhos pré-vestibulares, ou bolsas para permanência na universidade. Quando se faz uma ação afirmativa genérica, diminui-se o ônus para um grupo específico.

 

* Renata Camargo – Autora do livro “Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?”, Roberta Fragoso Kaufmann é uma crítica do sistema de cotas e signatária da Carta dos 113, abaixo-assinado encabeçado por “anti-racistas contra as leis raciais”, entregue aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). No livro, ela faz um estudo comparativo entre as políticas de cotas no Brasil e nos Estados Unidos.


Fonte: Congresso em Foco, 26/05/2008.

 


 O que as cotas podem dar ao Brasil

Questionamentos à procuradora Roberta Fragoso Kaufmann

 

Bajonas Teixeira de Brito Junior*

Ao ler a entrevista da procuradora Roberta Fragoso Kaufmann ao Congresso em Foco, confesso ter sentido certo choque. Esse choque se deveu a alguns pressupostos bastante agudos em seu pensamento e que, por assim dizer, encontram-se submersos mas próximos à superfície, como os corais de Abrolhos. Quem está habituado a navegar sobre a sinuosidade dos textos, talvez não tenha como não alarmar-se com os riscos encobertos em suas palavras. Todo pensamento, como insistia o filósofo Martin Heidegger, possui um certo impensado sobre o qual se sustenta. Da minha parte, creio que alguns pensamentos são translúcidos como córregos em que se pode ver nitidamente o fundo, outros exigem que nos mantenhamos o mais alerta possível se não quisermos naufragar neles. Decida o leitor, a que tipo pertencem os argumentos apresentados pela procuradora em sua entrevista.

A palavra alemã para o verbo julgar é urteilen. Esta significa uma divisão originária, pela qual se reparte e distingue entre o justo e o injusto. O que a história brasileira apresenta hoje é a possibilidade de separar o joio do trigo. Ninguém se incomodava com os negros quando eles eram culpados do atraso brasileiro. Ninguém via  problema quando se praticava o racismo dissimulado, aquele que não dá uma vaga ou um cargo ao negro não porque ele seja negro, longe disso, mas porque não é qualificado; aquele que o fazia vítima da violência policial não porque era negro, isso nunca, mas porque parecia  bandido. A procuradora Kaufmann não se apercebe que, em referendando o racismo dissimulado, é a essas práticas que ela se mostra favorável:

"A adoção de cotas estimula uma discriminação reversa, em que um grupo de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas universidades públicas, sofre o ônus. Vivemos em uma sociedade onde o preconceito não é escancarado. As pessoas que são racistas têm vergonha de dizer que o são. Conseguimos superar a escravidão sem ter uma sociedade com ódio racial. Implementar raça como fator de segregação pode acabar com esse frágil equilíbrio."

Roberta Kaufmann acredita que se as pessoas têm vergonha de dizer que são racistas, isso não é pior, mas sim melhor. Ora, se for assim, temos que admitir que se fazem a exclusão sem dizer que estão excluindo; se maltratam sem dizer por que estão maltratando; se punem sem dizer por que estão punindo, então está tudo muito bem. O que não pode haver é ódio racial explícito. Se o preconceito existe, mas não é escancarado, muito bem. Ótimo. Não é preciso vergonha de praticar o racismo, mas sim vergonha de demonstrar racismo.  Ou seja, em última instância, é necessário que as vítimas do nosso racismo continuem sem saber que elas são vítimas e que nós somos racistas. É preciso, como ela diz, sustentar essa situação de "frágil equilíbrio".

Mas, vamos perguntar, por que esse equilíbrio é frágil assim? Seria porque milhões de negros e mestiços são mantidos na condição de neoescravos? Seria porque vivem em péssimas condições de educação, saúde, moradia, segurança, alimentação, etc.? Seria porque, em vivendo assim, a qualquer momento, podem se dar conta da situação abjeta e nos brindarem com uma revolta de vastas proporções?

O sistema de cotas seria inconstitucional? Argumentar contra as cotas com a Constituição na mão é fácil, mas sabemos todos que a partir da Constituição é possível argumentar na direção contrária, apontando os diversos direitos que não são implementados, e cujos efeitos são mais danosos sobre os negros e mestiços, por serem os mais destituídos em um país de 90% de destituídos. E aí se inclui a educação básica de qualidade. Então, para ser coerente, é preciso que a procuradora argumente que o Brasil, a sociedade brasileira, é um sistema inconstitucional. Um país excessivo. Em sendo assim, porém, a exceção das cotas pertence à regra, e, portanto, à nossa constituição.  

Mas, para piorar ainda mais as coisas, a procuradora Roberta Kaufmann cria um vilão oportunista e aproveitador, o negro rico. Ela não se pergunta se ele existe ou pode existir, ou seja, se para além dos delírios verbais, a situação sócio-econômica brasileira criou verdadeiramente uma camada social que possa ser designada como a dos negros ricos. Não se pergunta também se, em existindo, este grupo social seria imoral ao ponto de se aproveitar das cotas. Ao invés de refletir sobre isso, ela já nos convida a pensar que esta camada existe, e que está a espreita pronta para se apropriar delas — “Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade”. Veja-se por aí o absurdo a que está disposta a procuradora em sua argumentação: as cotas se destinavam a amenizar precariamente a situação de marginalidade dos negros que vivem na miséria, mas, como descobriu a procuradora, servirá apenas para um grupo de malandros aproveitadores, os negros ricos, se dar bem.

Mas ainda há algo pior. Este algo é a matriz de todo esse raciocínio da procuradora: que os negros, mesmo ricos, não têm capacidade para entrar na universidade pública por mérito próprio e, por isso, vão se aproveitar das Cotas.  Isso, para o bom entendedor, é dito em alto e bom som. E é fácil entender. Se existem negros ricos, ou melhor, se existissem, por que não fariam estudos prévios sólidos capazes de garantirem o acesso seguro à Universidade Pública? Por que precisariam sorrateiramente valer-se da brecha das Cotas para entrarem na Universidade Pública?

Assim, a procuradora cria uma categoria imaginária de negros que: 1) tem dinheiro mas não quer gastá-lo com estudo; 2) tem chance de estudar mas não o faz (Por preguiça? Por incapacidade para aprender? Por acomodação? Por imoralidade congênita?); 3) não se vexa de, mesmo sabendo que as cotas se destinam aos destituídos, se aproveitar da oportunidade de usufruir delituosamente delas; 4) sequer possui qualquer solidariedade com os outros negros, sendo capazes de tomar deles o que seria um direito.

Não é difícil tirar essas conclusões. Elas não revelam nada de sofisticado e sutil. Ao contrário, o que desvelamos aqui são (pré)conceitos bastante toscos. Contudo, as viseiras desses mesmos preconceitos impedem a procuradora de percebê-los. Encabrestada pelos seus preconceitos, que pululam à tona do seu discurso, a procuradora não realiza os passos prévios de reflexão e consideração intelectual da matéria que sirvam para, com antecedência crítica, separar os argumentos dos preconceitos. Por isso, não posso chamar o procedimento dela senão de cegueira, uma cegueira que tem sido a tônica da argumentação da classe média no Brasil contra as cotas. É ao ler argumentos como esses, cujo fundo é formado apenas pelo lodo dos preconceitos, que concluo que mesmo com falhas a política de Cotas será, no Brasil, mais frutífera que as soluções aparentemente mais inclusivas ou democráticas dos que são contra elas. Aliás, já está sendo, nos fazendo ver como pseudos argumentos se montam exclusivamente a partir de preconceitos raciais.

São esses os pressupostos ocultos em seu discurso, quando afirma que “Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade”. São essas conseqüências que formam o seu impensado, estando em seu centro este personagem, espécie de vilão de novela, inventado para o uso ad hoc. De onde provêm tudo isso? De algo muito nosso: do arquétipo constituído na sociedade brasileira segundo o qual cada um deve estar no seu lugar. Cada macaco no seu galho. O branco deve ficar na sua e se dar o respeito porque algo muito feio é o “branco no samba”; negros e mestiços devem respeitar seu lugar, aqueles das pinturas de Portinari (e também das de Tarsila), corpo enorme e cabeça atrofiada, porque se não fazem isso caem nas categorias do “mulato pernóstico”, do “mulato sabido” ou “mulato frajola”.

Do ponto de vista da lógica social, a idéia é que quando um inferior cobiça a posição superior ele se torna mais inferior do que quando aceita sua inferioridade como natural. A fantasia argumentativa de um grupo perverso de “negros ricos” não diz outra coisa. Quem, com a seriedade necessária, se detiver a refletir sobre os impasses da sociedade brasileira, seu horror crônico à mudança, verá que esta lógica — que incrimina aqueles que querem elevar-se na escala social — é a trava que imobiliza uma sociedade muito armada contra a ascensão social. Ao desmontá-la, estaremos liberando energia para um possível devir histórico para além das ignomínias atuais.  É isso que querem os defensores das Cotas.

Ao fim, na verdade, a procuradora acaba mostrando, para quem tem olhos para ver, um racismo que não é um “racismo ao contrário”, nem um “racismo reverso”, mas um que sai da clandestinidade para mostrar um furor da imaginação que, começando por ser contra as cotas, vai além, contra negros imaginários e imorais, inventando por conta própria uma camada social completa que ninguém encontrará empiricamente, nem o cientista social mais talentoso. Creio que a procuradora Roberta Kaufmann, ao fazer isso, contribui com pinceladas próprias para delinear um retrato do negro carregado nas tintas do preconceito. A suposição implícita em suas afirmações de que negros com dinheiro se aproveitariam das cotas é ofensiva e, creio, deve ser objeto de um pedido de desculpas formal, claro e inequívoco aos afrodescendentes.  

Geralmente no Brasil quando somos surpreendidos no que ocultamos reagimos como ofendidos, como se não os nossos argumentos mas a nossa honra tivesse sido refutada. Assim, ao invés de estudar com atenção os que nos censuram e evitar repetir os mesmos despautérios, tendemos a vir com quatro pedras nas mãos. É o espírito do bate-boca ou da polêmica vazia que conhecemos muito bem. Estou seguro de que, até por dever de ofício, não será essa a reação da procuradora. 

A procuradora crê que os brancos pobres não podem pagar pelos efeitos da escravidão porque não são culpados. De fato. A quem ocorreria pensar diferente? Num país em que, como mostrou o Ipea há poucos dias, 10% da população concentram 75% da renda, seria ignóbil pensar de outro jeito. Os brancos pobres não podem pagar porque, afinal, eles são também vítimas. Contudo, encarando o assunto com a seriedade que ele merece, faria sentido procurar por culpados, apontá-los com o dedo e responsabilizá-los pela situação dos negros hoje? Certamente que não. Supor que os defensores das cotas estão caçando culpados para jogar sobre os ombros deles o ônus de séculos de infâmia, é absurdo. Contudo, fica fácil levantar argumentos quando se enfrentam não os adversários reais mas as caricaturas desses adversários. E me parece que, em cada um de seus argumentos, a procuradora nada mais faz que rabiscar algumas mal-traçadas caricaturas, como o nosso recém-comentado “negro rico”.

Em relação a um dos critérios de inclusão nas cotas, ela afirma: “Que legitimidade tem comissões como essas? Querer que uma terceira pessoa diga a que raça eu pertenço é uma política nazista. Isso é um absurdo num sistema que tenta dar uma identificação objetiva para um critério que nunca foi objetivo.” A acusação de nazista mostra uma disposição da parte dela de raciocinar pelo paradoxo, afinal, os defensores das cotas, que pretendem estar ao lado de um grupo inferiorizado durante séculos, terminariam irmanando-se com os nazistas, para os quais a única raça legítima era a ariana. Ao fazer essa aproximação violenta, se pode dizer que a procuradora raciocina não apenas pelo paradoxo, mas também pelo paroxismo, visto que ninguém foi mais extremadamente racista que os promotores do holocausto. Muito bem.

Faz sentido essa identificação? Para revelar seu absurdo não temos mais que refletir. Em primeiro lugar, é preciso considerar que toda ideologia nazista tinha por fundo a distinção hierárquica bestial entre uma suposta raça superior e o que entendiam por raças inferiores. Fazer essa acusação aos defensores das cotas, seria um crime. O que pretendem é, muito pelo contrário, abrir caminhos de promoção àqueles que, durante séculos, foram alijados pelos que os julgavam inferiores. E aqui chegamos a um segundo ponto: quando os nazistas distinguiam entre arianos, por um lado, e eslavos, judeus, ou ciganos, por outro, não era para abrir espaços a estes últimos, e insistir na sua libertação social, mas sim para encaminhá-los às câmaras de gás e aos fornos crematórios. Portanto, não só é paradoxal e paroxista o argumento levantado pela procuradora mas é ainda, sobretudo, disparatado. Ou, dito de outro modo, é leviano, uma vez que afirmar que são nazistas os que atuam no sentido de combater as distinções de raça e classe é agredir os conceitos e desrespeitar as distinções elementares das coisas. 

Penso que, de modo geral, a questão das cotas sofre em suas mãos um estreitamento que a desfigura, uma vez que o que ela entende por “reparação histórica” é algo como uma compensação mecânica. Como se se tratasse apenas de tirar de uns para dar para outros. De, por exemplo, puxar o minúsculo e puído cobertor dos brancos pobres para cobrir os negros, inclusive os “negros ricos”.  Ela estreita o raciocínio para uma ação de ressarcimento de danos, que perde de vista totalmente a História. Esquece que não estamos num balcão da defensoria do consumidor, nem num juizado de pequenas causas. Estamos no palco de um julgamento muito mais complexo, e que, portanto, apresenta um arco bem mais vasto e exige uma penetração muito particular. É ele que nos obriga a concluir que cortar o nó górdio que imobiliza os negros na herança escravista é pôr em movimento a roda da História no Brasil. Ninguém se iluda: a história não começou no Brasil quando os prédios substituíram as casas-grandes. Nem, muito menos, quando as favelas tomaram o lugar das senzalas. Esse é o ponto. E é em relação a ele que o país inteiro tem a ganhar com as cotas.

 

* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.
 

Fonte: Congresso em Foco, 13/6/2008.

 


Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?

Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil

 

Roberta Fragoso Menezes Kaufmann*

O tema das Ações Afirmativas desperta muitos debates e é alvo de discussões nem sempre pautadas pela racionalidade e pela cientificidade. Difícil se torna, então, falar sobre um tema quando este já vem impregnado de diversas pré-compreensões, acompanhadas, no mais das vezes, por uma postura passional e extremista. Com este artigo, propõe-se abandonar as posturas já assumidas sobre o assunto, para, a partir daí, realizar uma releitura, desta feita interligando áreas de conhecimento distintas, como são o Direito, a História e a Sociologia.

O artigo pretende analisar se existe de fato uma real necessidade em se adotar políticas afirmativas no Brasil em que a raça esteja entre um dos fatores a ser considerados, ou, então, em que funcione como o critério exclusivo, ou se, do contrário, essa discussão nos é estranha e apenas decorre de um deslumbramento em relação ao modelo adotado alhures, muitas vezes esquecendo as diferenças estruturais entre o país que inspirou a criação das políticas positivas — Estados Unidos — e aquele em que se pretende adotá-las — Brasil.

Para tanto, faz-se mister estudar o contexto histórico e sociológico em que as ações afirmativas foram criadas e se desenvolveram. Daí a razão pela qual faremos uma abordagem comparativa entre os Estados Unidos, país onde o programa teve início, e o Brasil. Isso nos leva, entretanto, ao estudo e à análise de um passado longínquo, que não interessa diretamente ao assunto, mas que se faz imprescindível para reconstituir o quadro das relações raciais brasileiras e norte-americanas [1].

O estudo enfocará de maneira prioritária as ações afirmativas destinadas aos negros, porque foram para estes que originariamente tais medidas foram criadas nos Estados Unidos. A ampliação dos programas positivos para as outras minorias, como as mulheres, os índios, os deficientes físicos e os imigrantes [2], decorreu de justificativas diferentes das que embasaram a criação dos programas para os negros e que fogem ao trabalho que nos propomos.

Com a quantidade de livros publicados sobre o tema, principalmente nos Estados Unidos, poder-se-ia acreditar que o assunto estaria praticamente esgotado, e que restava aos pesquisadores brasileiros fazer uma ligeira adaptação do material já publicado — como de fato é o que vem sendo feito até agora. Entretanto, a justificativa para uma nova abordagem afigura-se-nos assustadoramente fácil, porque a necessidade de uma nova perspectiva, na qual se enfoque a história das relações raciais nos dois países paradigmas desse estudo, Brasil e Estados Unidos, parece-nos deveras óbvia, quando se trata de ações afirmativas.

Este estudo decorre de um estranhamento, ao constatarmos a inexistência de estudos relevantes sobre as ações afirmativas a partir das condições históricas e sociais que precederam o instituto nos Estados Unidos, e, do mesmo modo, a ausência de pesquisas significativas sobre as condições históricas e sociais brasileiras a embasar a reflexão sobre a necessidade de adotar tais programas positivos.

O principal objetivo deste trabalho, então, é o de promover uma análise interdisciplinar, articulando o passado histórico com a projeção de quais seriam as medidas jurídicas mais adequadas à resolução dos problemas nacionais. Assim, partir-se-á para o estudo da forma como se desenvolveram as relações raciais no Brasil, procurando, sobretudo, promover um resgate histórico dos negros no país, para saber se, após a abolição da escravatura, a raça do indivíduo constituiu-se em um fator autônomo de privação de direitos ou de segregação entre os indivíduos. Esta pesquisa surge para tentar suprir a lacuna que existe nos escritos relativos ao tema, e, principalmente, para procurar demonstrar que certas premissas, tomadas por verdadeiras, podem estar ainda a merecer uma melhor reflexão.

Apesar de o tema despertar muitas paixões, nada ainda havia sido escrito sob tal enfoque, especialmente no meio jurídico. Há asserções soltas e sugestivas de que o contexto brasileiro difere do norte-americano, sem que os autores de tais afirmativas procedam, contudo, à análise de quão profundas são essas diferenças. A quase totalidade dos muitos artigos e poucos livros escritos no Brasil não renova os argumentos  e analisa os programas positivos como se estes fossem os resultados de uma evolução lógica da concretização do princípio da igualdade, partindo do Estado Liberal ao surgimento do Welfare State — Estado do bem-estar social. Ora, pesquisar é trazer à tona algo novo, questionando as posições tidas por consolidadas. Este estudo propõe-se a fazer cócegas na inteligência do leitor, convidando-o a participar de uma nova visão dos fatos, de uma forma diferente do que vem sendo escrito até então.

Em se tratando de Direito Comparado, a análise restringir-se-á aos Estados Unidos, porque este foi o país pioneiro na criação e no desenvolvimento das ações afirmativas para os negros. Ainda que outros países já tenham adotado medidas positivas, como a Índia, o Canadá, a França, a Espanha, a Itália, a Bélgica, a Noruega, a Alemanha, dentre outros, os beneficiados de tais programas afirmativos são, no mais das vezes, minorias diversas, como mulheres, imigrantes, deficientes e indivíduos pertencentes às classes sociais menos favorecidas. Até porque, acreditamos que a análise das ações afirmativas deve ser feita no ambiente de cada país que inspirou o programa, de acordo com as peculiaridades e necessidades que lhes foram próprias e que, na maior parte das hipóteses, divergem do contexto estadunidense.

Os defensores das ações afirmativas no Brasil tomam por base o modelo político instituído nos Estados Unidos, como se este fosse impermeável e acima de qualquer tipo de crítica. Argumentam, de forma enfadonha e repetitiva, que os norte-americanos encaram o problema e que no Brasil o racismo é muito pior, porque camuflado, ocultado, escondido. Viver-se-ia aqui uma hipocrisia racial, baseada em um mito, o da democracia racial, de modo que só teríamos a aprender com os americanos do norte. Curioso é perceber que, ao tentar promover a resolução dos problemas brasileiros, grande parte da militância pró-ações afirmativas finge desconhecer a história do próprio país e acata, de forma passiva e subserviente, os métodos e mecanismos de resolução para a problemática racial dos pensados alhures. (Estudo completo)


 

________________

[1] Nesse tom, alinhamo-nos às idéias de Caio Prado Júnior, quando este afirma que: “No Brasil de hoje, apesar de tudo de novo e propriamente contemporâneo que apresenta — inclusive estas suas formas institucionais modernas, mas ainda tão rudimentares quando vistas em profundidade — ainda se acha intimamente entrelaçado com o seu passado. E não pode por isso ser entendido senão na perspectiva e à luz desse passado. Daí o grande papel e função do historiador brasileiro, que muito mais ainda que seus colegas de outros lugares onde já se romperam mais radicalmente os laços com o passado — na medida, bem entendido, em que esse rompimento é possível —, lida com dados essenciais e imprescindíveis para o conhecimento e a interpretação do presente. História e Sociologia, e Ciência Social em geral, podemos dizer que quase se confundem ou se devem confundir no Brasil. (...). É na história, nos fatos concretos da formação e da evolução de nossa nacionalidade que se encontra o material básico e essencial necessário para a compreensão da realidade brasileira atual e sua interpretação com vistas à elaboração de uma política destinada a promover e estimular o desenvolvimento”. PRADO JÚNIOR, Caio. (1999: p. 17 e 18).

[2] A observação desse fenômeno não é peculiar ao Brasil. Os argumentos usados por aqueles que escrevem sobre as ações afirmativas repetem-se de maneira tão estrondosa, mesmo nos Estados Unidos, que chegam a ser ridicularizados, conforme demonstra Gabriel Chin: “A literatura é, também, impressionantemente repetitiva. Os mesmos temas básicos são expostos repetidamente; os fatos do caso Bakke, por exemplo, foram recontados tantas vezes que Stephen King escreveu, no seu best-seller Christine, sobre um casal que ‘poderia contar capítulo e versículo sobre o caso Allan Bakke até adormecer’. Com a habilidade de inventar este tipo de história arrepiante, não é de se impressionar que King é conhecido como o mestre do horror”. Tradução livre. CHIN, Gabriel J. (1998a: p. IX).

 

*Procuradora do Distrito Federal; professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola da Magistratura do DF (ESMADF), na Escola do Ministério Público do DF e no Instituto de Direito Público (IDP); mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB); MBA em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV); autora do livro “Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil”.

 

Fonte: Congresso em Foco, 13/6/2008.

 


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