A crise e a ética
Eliane Cantanhêde*

 

Numa sala, o deputado José Dirceu tentava se defender junto ao Conselho de Ética. Na sala ao lado, o grupo "Pró-Congresso" reunia os filósofos Denis Rosenfield e Roberto Romano, mais o empresário Oded Grajew (Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social), para discutir ética na política. A provocação estava pronta: na sala, discutia-se a ética; na sala ao lado, o antiético.

Isso ocorreu no corredor das comissões da Câmara dos Deputados, na terça-feira, 18/10/2005, justamente no dia em que o deputado Júlio Delgado apresentou seu parecer, aliás muito bem fundamentado, defendendo a cassação de Dirceu – uma espécie de mentor do novo PT, o que chegou ao poder, e apontado pelo já cassado Roberto Jefferson como a alma de todo o esquema de compra de parlamentares.

Segundo Rosenfield, nem se trata disso, mas da compra do próprio processo parlamentar. Uma compra que começa nas campanhas e avança pelo exercício do poder e que, no atual governo, revela-se como uma "corrupção leninista" – leia-se: os fins justificam os meios, inclusive a orgia entre o público e o privado.

Para o professor, o mais fantástico quando Waldomiro Diniz (braço-direito de Dirceu, então braço-direito do presidente da Repúbica) foi flagrado negociando propina com um bicheiro não foi o pedido de 1% para ele. "Foram os outros 99%!". Ou seja: todos, inclusive nós, imprensa, ficamos em cima da propinazinha do assessor, deixando de lado o que realmente interessava: o corruptor e os verdadeiros valores da corrupção.

Em seguida, falou Roberto Romano. Se Rosenfield preferiu se concentrar nas campanhas, ele falou no pós-eleitoral, quando os parlamentares se deparam com um excesso de poder do Executivo, que corresponde a uma falta de poder do Parlamento. E eles se vêem como elos de uma intermediação cheia de variados elos entre o Executivo federal e as prefeituras e os Estados. E aí também mora o perigo.

Como fecho pragmático, não teórico, Oded Grajew – que foi assessor de Lula no Planalto em 2003 – entregou ao grupo "Pró-Congresso" uma lista de sugestões para melhorar o processo político-eleitoral e diminuir as possibilidades de fraudes e desvios. E não excluiu a responsabilidade das empresas. Ao contrário, convocou os deputados a apoiarem o Pacto Empresarial de Combate à Corrupçao, em evento no dia 14 de dezembro. Em resumo, o que ele propõe é que os empresários não comprem candidatos e políticos e que os candidatos não se vendam – nem vendam seus mandatos por antecipação.

Na bancada de parlamentares, gente como Rafael Guerra, Fernando Gabeira, Yeda Crusius, Affonso Camargo, Luiz Carlos Hauly, Marcelo Castro, Darcísio Perondi, que formam o grup "Pró-Congresso", que é contra a pizza e a favor de uma faxina moral no Congresso.

Num discurso incisivo, Hauly disse que o Brasil não tem modelo político, nem econômico, nem de Educação. "Vinte anos de abertura não deram certo, como os vinte anos da ditadura não tinham dado", disse ele, defendendo que "graças a Deus, o PT chegou ao poder e fez toda essa lambança". Por quê? Porque todas as alternativas foram esgotadas, não sobrou nada e, enfim, "a crise é o ponto de inflexão, de mutação".

Feminina, Yeda Crusius também foi uma dura crítica, mas enumerou avanços do país e da sociedade a partir de projetos e iniciativas do Legislativo e fez uma defesa quase apaixonada da importância do parlamento na democracia. Verdadeiro, Marcelo Castro admitiu que o sistema político "é um desastre" e que "90%" do Congresso usa caixa dois de campanha". Distinguiu, porém, o que é caixa dois de campanha das enormes somas que fluíram do esquema Marcos Valério em períodos completamente fora das eleições. E Affonso Camargo lamentou que haja dois tipos de político: o que vê a política como missão e o que a encara como "um negócio qualquer". Para concluir que estes, mais do que aqueles, estão cada vez mais ocupando espaço.

No fim, o sempre sereno e equilibrado Rafael Guerra fez uma provocação geral: se o Congresso vai "fazer seu dever de casa" até março, processando e julgando 14 deputados, o que fará o governo? E enumerou as denúncias que pesam sobre o Executivo, até contra o próprio Lula: "E o governo? O filho do Lula? O Waldomiro? O Buratti (ex-assessor do ministro Palocci em Ribeirão Preto)?".

Ninguém respondeu, muito menos eu, que fui mediadora do debate. Mas arrisco aqui: Lula vai cuidar da reeleição, o governo vai se adequar à campanha do chefe e Dirceu vai fazer o possível e principalmente o impossível para escapar da cassação. O que, ontem, como hoje, parece bastante improvável.
 

* Eliane Cantanhêde é colunista da Folha em Brasília e comentarista de política do telejornal "SBT Brasil", do SBT. Foi diretora da Sucursal de Brasília do jornal. Escreve para a Folha Online às quartas.

Fonte: Folha Online, 19/10/2005.


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