A crise subiu no telhado

 

O que era um problema localizado transformou-se num imbróglio que coloca em xeque a institucionalidade democrática construída nos últimos 20 anos. É uma crise de regime, mas ainda não é uma crise de dominação. Os desdobramentos não seráo fáceis.

A crise mudou de patamar nos últimos dias. Deixou de ser um escândalo de corrupção restrito a partidos governistas para se espalhar pelo Congresso, bancos, empresas de publicidade e telefonia e ONGs como mancha de óleo em mar aberto. Uma crise sistêmica. Talvez a mais grave desde o final da ditadura, há 20 anos. Recapitulemos um pouco.

O que era inicialmente uma denúncia contra um funcionário secundário dos Correios, flagrado ao receber 3 mil reais de propina, logo alcançou importantes dirigentes do Partido dos Trabalhadores e membros do governo federal que, tudo indica, atuavam em linha. Denunciou-se um esquema de tráfico de influência que operava a partir da Casa Civil em relações nada ortodoxas com o Congresso Nacional, articulado com lideranças do partido oficial e com agremiações da chamada base aliada.

O governo e o comando do partido tudo fizeram para evitar as investigações. Falharam. Puxado o fio da meada, vieram na rede detacados parlamentares do PP, PTB e do PL, enredados através de contas, saques, malas e cuecas oriundas de uma agência de publicidade e de dois bancos de médio porte.

Parlamentares, empresas, ONGs

Montada a CPI, elegeram-se os vilões da história. Personagens maiores e menores foram massacrados diante das câmeras de televisão, tendo como coadjuvantes secretárias, ex-mulheres, assessores e burocratas vários. Foi aí que a crise adquiriu uma dinâmica aparentemente incontrolável. Logo apareceram saques feitos por membros do PFL e do PSDB, seguidos por depósitos destinados à Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). E vieram à luz os nomes de vários depositantes: Grupo Opportunity, Visanet, Fiat Automóveis, Construtora Norberto Odebrecht, Banco Santander, TV Globo, Empresa Folha da Manhã, Editora Abril e Editora JB. Há marcas de disputas graúdas entre empresas de telefonia e fundos de pensão, algo imperceptível no início, que viriam de pendengas do governo FHC.

Todos apresentaram suas explicações para tamanho numerário. Desde compra de gado e hortaliças, até pagamentos por serviços prestados, passando por contratos feitos com o governo federal etc. etc. Pode ser tudo muito legal e correto. As investigações têm de averiguar o que representa cada operação dessas, para que criminosos não se misturem com inocentes úteis ou inúteis.

Todo mundo faz

A chave para o entendimento do tentacular esquema veio da boca do presidente Lula, em Paris: “O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, o que é feito no Brasil sistematicamente”.

Ou seja, é assim que as coisas funcionam no que toca ao financiamento de campanhas e ao funcionamento do Congresso Nacional. É caixa 2 e mensalão. No fundo, a crise apenas expõe o custo embutido no funcionamento da democracia à brasileira, movida a eleições baseadas no marketing e em maiorias legislativas pouco claras.

Pedaços dessa evidência apareceram nos escândalos do governo Collor e no dos anões do orçamento. Outros tantos foram abafados ao longo dos oito anos de FHC. A vida é assim e a institucionalidade tem seu preço. Eleger um vereador, prefeito, governador, deputado, senador ou presidente custa caro. E o dinheiro grosso acaba sempre aparecendo. Agora aparece mais do que uns poucos gostariam.

A natureza da crise

A novidade dessa crise é a exibição de várias vísceras do sistema. Isso não acontecia na época do impeachment, quando corruptos foram execrados mas corruptores tiveram seus bons nomes resguardados. Agora temos as indicações dos recebedores e dos doadores. Acabar com caixa 2 e com mensalão significa atacar as bases de funcionamento da democracia brasileira realmente existente.

Um escândalo desse tipo é uma crise institucional. A legitimidade da democracia brasileira é colocada em xeque. É uma crise de regime.

Ainda não é uma crise de dominação. Ou seja, ninguém discute quais as classes que mandam e quais obedecem na sociedade. Em 1930 tivemos uma crise de dominação. A oligarquia agrária e a nascente burguesia industrial foram atropeladas por um setor da pequena-burguesia militar e perdeu parte do poder político. Em 1985, no fim da ditadura, as classes dominantes foram espertas e, em poucos meses, retiraram seu apoio ao regime fardado, mudando de lado. Temendo serem atropeladas por um formidável movimento de massas, impediram as diretas-já, mas souberam manietar a candidatura civil para não perder o controle da situação. Em ambos os casos, vivia-se sob o signo de uma aguda crise econômica.

Agora a economia não está em crise. Do ponto de vista do grande capital, a economia brasileira vai muito bem. Os lucros são estratosféricos, o fluxo de capitais para o Brasil é expressivo, os indicadores macroeconômicos – risco-país, inflação, balança comercial etc. – são positivos, não há no médio prazo possibilidade de interrupção do pagamento dos compromissos financeiros e o país cresce. Cresce a índices medíocres, concentrando renda e desempregando, mas isso pouco importa para o grande capital.

A crise institucional só se tornará uma crise de dominação se a economia for atingida pelas denúncias e se a política de oferecer tranqüilidade aos banqueiros, especuladores e exportadores for colocada em risco. O presidente Lula e seus companheiros Palocci e Meirelles já garantiram uma sólida blindagem à política econômica adotada há quase uma década e meia.

Cenários à canhota e à destra

Que cenários se abrem a partir dessas constatações?

De imediato, há a desmoralização de uma maneira de se fazer política e a falência de um projeto de esquerda que tinha como estratégia central a chegada de Lula à presidência, a qualquer custo, em aliança com o grande capital. Esta desmoralização pode significar o fim do PT como instrumento de transformação social, caso a atual direção se mantenha. A legenda pode continuar por anos a fio, mas desossada do significado que teve por um largo período da história.

Uma saída pela esquerda implicaria uma coesão e uma força política que a esquerda do PT, outros partidos de esquerda e os movimentos populares não têm no momento. Essa alternativa passa pelo entendimento da crise institucional como subproduto da política econômica. Em outras palavras, sua superação passaria pela mudança da orientação neoliberal.

Pela direita, é bem possível que prospere uma tentativa de grande acordo para salvar as aparências. Esse acordo possui mil e uma nuances. Entrega-se a cabeça de alguns notáveis e o governo Lula segue sangrando até 2006, quando será batido nas urnas. Esta é a saída que mais interessa ao presidente da República, à cúpula do PT e aos principais atores em cena.

A possibilidade de um segundo mandato tornou-se remota. Apesar de bons índices de popularidade, Lula sabe que não agüentaria uma semana de campanha eleitoral pela televisão. Num acordo desse tipo, impeachment é palavra fora do baralho. O denominador comum de todas as variáveis desse cenário é manter intocada a política econômica, custe o que custar.

Para essa gente, perder mandatos e credibilidades é um prejuízo suportável até certo ponto. O que não dá mesmo é para perder dinheiro.

 

Fonte: Ag. Carta Maior, Gilberto Maringoni, 1/8/2005


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