Cuidado, isso pode virar lei

 

Aeroporto para alienígena, sinalização de chifre de boi, multa para
motorista morto no trânsito. O que explica o fato de nossos
legisladores perderem tempo com leis desse nível?

Quando o assunto é lei absurda, o primeiro país que vem à mente são os Estados Unidos, onde já se legislou a respeito da proibição de pescar montado em uma girafa (!) ou de ser preso num domingo ou feriado de 4 de julho - curiosamente, ninguém determinou que nessas datas os delitos estariam suspensos. Mas por aqui as coisas não são muito diferentes.

O texto do “novo” Código de Trânsito (de 1998) precisou ser alterado de última hora porque um de seus artigos, o que estipulava multa aos motoristas envolvidos em acidente de trânsito que se recusassem a realizar exame de teor alcoólico, punia inclusive os mortos. Em Barra do Garças, Mato Grosso, o ex-prefeito e ex-governador do Estado Wilmar Peres de Farias (PPS) chegou a propor a construção de um aeroporto para discos voadores na cidade. E que tal o projeto de lei de José Filho (sem partido), quando vereador de Quixeramobim, Ceará, exigindo que caudas de animais fossem pintadas de amarelo fluorescente a fim de evitar atropelamentos? Melhor que isso só um colega de Câmara que apresentou uma emenda determinando também a “sinalização” em chifres, cascos e orelhas. Isso sem mencionar os incontáveis projetos de lei que mudam nomes de ruas, escolas, aeroportos etc ou estipulam datas comemorativas como o Dia do Vaqueiro, o Dia da Oração, o Dia do Karatê.

A pergunta que fica é: será que os legisladores não têm mais o que fazer? ISTOÉ Online ouviu cientistas políticos em busca desta resposta e levantou também algumas dicas que podem ajudar a não cair nas falsas promessas que certamente serão feitas nessa época eleitoral. Confira.

Moeda de troca - Uma primeira resposta possível aos projetos de lei que, no mínimo, soam estranhos é o acerto de contas do político com seu eleitorado. “O voto no Brasil é personalizado. Para conseguir se eleger, um deputado certamente estabeleceu vínculos com eleitores de determinada região, determinado grupo econômico, determinada profissão. E tem que retribuir o apoio. É a regra do jogo”, afirma o cientista político Carlos Ranulfo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Em geral, tais projetos soam desnecessários para o bem da sociedade como um todo, mas têm lá a sua importância para um pequeno grupo.

Exemplo prático: o deputado estadual Aldo Demarchi (PFL-SP) apresentou à assembléia um projeto de lei curioso, prevendo a obrigatoriedade de se incluir mel de abelhas em toda merenda escolar servida no Estado. Ele sustenta que o mel é rico em propriedades nutricionais, o que só faria bem às crianças. Diante dessas informações, um eleitor atento se perguntaria por quê, exatamente, ele especificou o mel, sendo que este produto possui os mesmos nutrientes que qualquer outro do mesmo grupo alimentar, o dos energéticos. A resposta é simples. O estado de São Paulo é o que mais produz mel no País e a região de Rio Claro, onde está a sua base eleitoral, faz parte do centro apicultor. Demarchi conta que elaborou o projeto a partir de um pedido dos próprios produtores, que alegaram estar com dificuldades para exportar. “Nossa função é atender reivindicações da população. Recebo, da mesma forma, representantes de outros segmentos que encaminham suas sugestões”, explica-se.

Para agradar suas bases, vale fazer lei para alterar nome de rua, de praça e de aeroporto. Conceder título de utilidade pública, então, é de praxe. E para quê? Para que as entidades que desenvolvem trabalhos de cunho social possam se beneficiar com a dedução do imposto de renda para quem lhes fizer doações. Absolutamente nada errado – desde que tais instituições sejam, de fato, idôneas -, mas iniciativas assim acabam por burocratizar e atrasar a aprovação de projetos mais urgentes. Afinal, político que é político sempre dá um jeito de incluir essas propostas na pauta de votações e, assim, agradar a gregos e troianos.

Quanto mais projeto, pior - Outro ponto a ser analisado é a cultura do “mostrar serviço” que se instalou no País. A opinião pública, motivada pela imprensa, criou a impressão de que legislador que não apresenta projeto é incompetente. O consultor político Murillo Aragão alerta que tal análise é superficial: “Tancredo Neves foi um dos parlamentares mais influentes da história da política brasileira e raramente fazia discurso, quase nunca apresentava projeto de lei”. Ele ilustra essa falsa idéia de eficiência lembrando do processo de elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). “A CLT tem mais de 300 artigos. Então, tinha deputado que sugeria a alteração de artigo por artigo. No fim, propagava que tinha mais de 60 projetos em um ano, quando poderia muito bem ter apresentado tudo em um só”, conta. Basta visitar os sites dos próprios legisladores para constatar que gabar-se da quantidade de projetos apresentados é prática comum. O duro é garantir a qualidade dos mesmos.

Constituição para quê? - David Fleischer, professor da Universidade de Brasília, acrescenta mais um ingrediente à receita que resulta em propostas estapafúrdias: a falta de conhecimento da Constituição, tanto por parte dos legisladores quanto por parte do eleitorado. “Em princípio, as Comissões de Constituição e Justiça do Senado e da Câmara têm assessores em direito constitucional que podem flagrar e barrar as idéias que fogem à Constituição. Já nas Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores é mais difícil ter esse serviço, principalmente em municípios pequenos”, explica.

Uma proposta de lei complementar que causou polêmica na época de sua apresentação, em 2004, e ainda tramita na Câmara dos Deputados é a de limitação do consumo, do deputado federal Nazareno Fonteles (PT-PI), que flagrantemente vai contra direitos assegurados pela Constituição. No texto, Fonteles defende que para quem recebe seus R$ 10 mil por mês não fará falta emprestar o que vir a ganhar a mais para o governo, por um período de 14 anos, para que este invista na área social. Além de impopular, a proposta ignora que os brasileiros, inclusos os que ganham mais de R$ 10 mil, já são supertaxados pelo governo em impostos que deveriam, desde sempre, ser usados em prol do social. Mas o problema está mesmo no fato de ele ignorar o artigo 170 da Constituição, que garante o direito ao livre exercício das atividades econômicas.

Ao eleitor também sobra sua parcela de culpa. Afinal, não dá para acreditar em prefeito que promete aumentar o salário mínimo. “É engraçado como as pessoas desqualificam os representantes e esquecem que todos eles, sem exceção, estão ali porque votamos neles. Será que só elegemos safados?”, pergunta-se o professor Ranulfo. Vale lembrar que as pesquisas de opinião revelam que sete dentre dez eleitores não lembram em quem votaram nas últimas eleições. Murillo Aragão vai além: “A verdade é que ninguém está nem aí para a atividade legislativa. Nosso Congresso é o pior da história, com desvio de dinheiro de ambulância e mensalão. Se pode isso, lei estapafúrdia também pode”, lamenta.

 Vote: qual o projeto de lei é o mais absurdo?
 

Fonte: Rev. IstoÉ, Cláudia Zucare Boscoli, 5/7/2006.


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