DÉFICIT ZERO 
Economistas e deputados criticam “plano Delfim” 
 

Proposta do déficit nominal zero implica pesados cortes nos gastos públicos. Entre outros efeitos, signficaria o fim do acesso ao
seguro desemprego de 1,2 milhão de pessoas, corte de 20%
nos investimentos em educação, afetando também o tratamento
de 1,1 milhão de portadores do HIV. 

 

Uma cena conhecida. Um brasileiro ou brasileira usa o cartão de crédito para bancar despesas com as quais não consegue arcar. No mês seguinte, a pessoa não só não consegue abater a dívida como não dá conta nem de pagar somente os juros dela. Nos meses posteriores, a dívida dela passa a aumentar com o acúmulo dos juros que ela não consegue pagar. Ao final de um ano, a dívida de ‘x‘ reais duplica somente por conta deste processo, e a cada vez que ela cresce os juros aumentam, o que acelera a sua evolução. É isso que acontece com o Brasil. Frente à crise fiscal e este “túnel sem saída”, várias são as medidas possíveis.

O Ministério da Fazenda acredita que fazer economias duras dos recursos públicos pode, ao longo do tempo, diminuir a relação da dívida com o Produto Interno Bruto (PIB). Um dos instrumentos usados  a partir das “orientações” do Fundo Monteário Internacional (FMI) é o superávit primário, uma espécie de reserva antecipada. É como se o representante dos credores da dívida da pessoa citada acima tivesse proposto para que ela, mesmo não conseguindo pagar nem os juros de sua dívida e independente do que conseguir levantar de recursos, pagasse uma quantia ‘x‘ destes juros. Se ela não fizesse isso, o banco ameaçaria acioná-la na Justiça, o que praticamente a obriga a aceitar o “acordo”. Se ela tiver de comer menos, ou economizar com a casa, ou retirar as crianças da escola, não importa. No caso do superávit primário adotado pelo Brasil, a equipe econômica do governo não só aceitou o “acordo”, sob a argumentação de que o país poderia deixar de receber investimentos estrangeiros e quebrar, como quis se mostrar como um “devedor bonzinho”, aumentando no início da gestão Lula o índice do superávit de 3,75% para 4,25% do PIB e economizando em alguns períodos montantes superiores a este prometido.

O Banco Central acredita que, para garantir o fluxo de recursos estrangeiros para o Brasil é preciso manter as taxas de juros em alta, pois somente assim o país conseguiria garantir credibilidade junto aos grupos internacionais, que passariam a ter mais interesse em aportar recursos no país. Além disso, os altos juros seguram a inflação em baixa, pois desaquecem a economia. E a alta da inflação significaria grande impacto na vida econômica do país e na dívida pública. Mas seria uma saída temporária, pois com a grande economia feita com o superávit primário e a aprovação da agenda proposta pelas grandes organizações financeiras internacionais (FMI e Banco Mundial), como a Reforma da Previdência, o país daria uma demonstração de credibilidade e os juros poderiam cair. “O superávit primário aumentou, saiu a reforma da Previdência, mas as taxas de juro continuaram na estratosfera”, pontuou o economista Paulo Nogueira Batista Jr no artigo “Déficit nominal zero?”, publicado no jornal Folha de São Paulo quinta-feira.

Mas se nem a economia brutal que compromete qualquer capacidade de investimento e nem as altas taxas de juros conseguem mostrar uma luz no fim do túnel para a crise cambial brasileira, o que fazer? A nova fórmula da salvação vem ex-ministro da economia durante a ditadura militar e deputado Delfim Netto (PP-SP). A proposta, que vem ganhando a simpatia de empresários e do núcleo financeiro do governo, é fazer, nos próximos quatro anos por meio de uma emenda constitucional, um “aperto sobrenatural” que garanta ao país dinheiro suficiente para saldar toda a dívida oriunda somente da acumulação dos juros e passar a pagar, com um superávit um pouco maior do que o atual, todo o montante referente aos juros, impedindo que a dívida cresça mais e zerando o déficit de pagamento público, consolidando assim o chamado “déficit nominal zero”. Ou seja, a economia feita por meio do superávit primário se igualaria aos vários bilhões de reais que o país tem de pagar de juros por mês, hoje.  

“A aprovação dessa emenda constitucional despertaria tal credibilidade que surgiria ‘instantaneamente uma expectativa de baixa do juro real‘, garante Delfim. A diminuição dos juros reativaria a economia e permitiria zerar o déficit com níveis suportáveis de superávit primário, não muito mais altos do que os atuais”, explica Paulo Nogueira em seu artigo. Outra medida seria o aumento da desvinculação dos recursos da União, a chamada DRU, de 20% para 40%. Delfim Netto argumenta que os gastos vinculados prejudicam a gestão do país por não permitirem uma flexibilidade na destinação de recursos e por gerarem uma administração deficiente uma vez que a “fonte não pode secar”. Além dele, uma série de economistas e parlamentares se manifestaram nos últimos dias para tentar barrar a sedução da proposta, apelidada de Plano Delfim. Em jantar realizado com a presença de seu autor, o ministro Palocci e vários empresários, começou a ser esboçado um consenso na burguesia produtiva brasileira e no setor financeiro. A única voz dissidente da reunião foi a do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), que não considerou a proposta “o melhor caminho”.

Críticas

Um grupo de parlamentares ligados à equerda do PT realizou esta semana seminário para debater o tema. A carta resultante do encontro afirma que “a proposta do deputado paulista apenas aprofunda o corte de gastos públicos não-financeiros e trata, dessa forma, de modo privilegiado os interesses dos que são regiamente remunerados na condição de credores da dívida pública, sobretudo aqueles que detêm os títulos em poder do público”. O documento sugere que a armadilha da crise cambial, a  incapacidade do Estado basileiro de impedir o crescimento da dívida, se deve, entre outras coisas, à manutenção das “elevadíssimas taxas de juros praticadas no País e ao brutal estoque da dívida pública, mesmo reconhecendo-se que seu componente externo tem sido reduzido graças à valorização do Real frente ao Dólar”.

Os parlamentares criticam também o processo já em curso de arrocho promovido pelo Ministério da Fazenda. No ano passado a economia ultrapassou o índice estipulado (4,25%) chegando a 4, 61% do PIB. Este ano, entre janeiro e abril o país praticamente pagou todas as suas despesas com juros, tendo que economizar para isso 7,1% do PIB. Para os deputados, a alta nos juros vem sendo um instrumento para piorar a dívida, e não auxliar na sua resolução. Segundo os dados divulgados na carta, as altas taxas de juros vêm gerando aumento na dívida pública interna, que passou de 22% para 27 % do PIB entre 2002 e 2004. A falácia, segundo o deputado Paulo Rubem Santiago (PT-PE), um dos coordenadores do seminário, está em separar os gastos com juros dos outros gastos públicos e no conto de que a resolução dos problemas cambiais do Brasil está atrelada ao ganho de confiança do mercado através de sacrifícios cada vez maiores.

“O Delfim fala supostamente em nome do desenvolvimento mas preservando as despesas com juros hoje. O governo estaria a disposição de pagar toda a conta e o mercado amenizaria no processo de rolagem da dívida”, analisa Santiago. Para o deputado, a redução das taxas de juros deve ser uma escolha do governo e não uma permissão do mercado. Ele comenta que é falsa a idéia de que esta ação afugentaria o capital especulativo vindo de fora, pois os investidores internacionais não deixariam de comprar títulos públicos emitidos pelo governo pois eles têm retorno garantido, diferente de investimentos em empreendimentos privados.

Para a economista Leda Paulani, da USP, as políticas baseadas na busca da credibilidade, adotadas desde a crise cambial em 1999, geram um modelo “cachorro mordendo o rabo” que foi adotado pela gestão de Lula sob uma falsa idéia de sacrifício temporário para possibilitar um programa mais profressista depois. “O país precisa ter credibilidade para quem? Para conseguir atrair investimentos externos, suprir a carência interna de poupança (o que é outra falácia) para sustentar o desenvolvimetno interno? Uma credibildiade que faz com que os preços dos papéis brasileiros no mercado internacional subam, que entrem no país investimentos externos diretos e capital especulativo à vontade? O preço é uma elevadíssima taxa real de juros e um superávit primário cavalar para garantir que os ganhos em moeda forte não seja ameaçados. Ora, é isso justamente o que impede o crescimento. E naõ adianta dizer, como disse o governo no início,que era só um moemtneo, que tinha de enfrentar a crise e que, depois, seria tocado o verdadeiro programa”, avaliou em entrevista ao jornal Brasil de Fato.  

Ou seja, se coloca uma armadilha. O governo contingencia recursos de todas as áeras (custeio da máquina, custeios sociais e investimentos) para se mostrar como um bom devedor  e aumenta as taxas de juros com vistas a receber investimentos externos, que fortalecem o real frente ao dólar e possibilitam o saldo da dívida externa. Isso reduz a relação dívida / PIB, como aconteceu entre 2002 e 2004, quando o governo conseguiu baixar de 60% para 51% esta relação, mas aumenta a dívida interna e o estoque total da dívida pública. Entre dezembro de 2001 e dezembro de 2004, a dívida mobiliária interna nacional (acumulada por meio da emissão de títulos e não de empréstimos diretos), que corresponde a aproximadamente 80% da dívida interna brasileira, aumentou de R$ 485 para R$ 798 bilhões. A expectativa para o fim deste ano é que ela chegue a R$ 954 bilhões.

Além de aumentar, o perfil da dívida piorou. Isso significa que uma parte cada vez maior da dívida passa a ser formada por títulos de vencimento em curto prazo, obrigando o governo a economizar mais ou emitir novos títulos, reiniciando o ciclo. Em dezembro de 2002, o governo tinha que pagar no prazo de um ano 35% da sua dívida. Em dezembro de 2003, o compromisso para os próximos 12 meses passou a ser de saldar 46,1% da dívida. De acordo com Paulo Rubem Santiago, este modelo se constitui como o maior processo de concentração de renda que o país já viu. Pois os recursos arrecadados da maioria da população que paga impostos são destinados aos detentores de algum título público, que hoje representam somente 4% da população nacional (7 milhões de pessoas).

Impactos

Em estudo apresentado quinta-feira (7), na capital paulista, o economista Márcio Pochmann demonstrou os impactos da adoção do “Plano Delfim”. Segundo Pochmann, se o princípio proposto por Delfim fosse aplicado em 2004, o país teria de economizar R$ 57 bilhões além dos R$ 81,1 bilhões destinados ao pagamento de juros. Para zerar o déficit este ano, o governo teria de economizar mais R$ 42,5 bilhões, o que significaria um superávit primário de 7,85%. "É uma estimativa de corte nos dias de hoje de R$ 42,5 bilhões.

Esse corte seria feito em maior escala na Previdência Social (R$19,7 bilhões), seguida de corte de benefícios dos funcionários públicos (R$ 8,5 bilhões) e também diz respeito à Saúde (R$ 5,7 bilhões), que seria a terceira categoria da área social a ser mais atingida pelos cortes dos recursos", afirmou o economista em reportagem da Agência Brasil. Segundo levantamento divulgado na mesma reportagem, a economia teria como conseqüência o fim do acesso ao seguro desemprego de 1,2 milhão de pessoas a partir do corte de R$ 1,8 bilhão na Previdência Social. Ainda de acordo com as estimativas do economista, 1,1 milhão de portadores do HIV ficariam sem tratamento e  a  pasta da educação, teria 20% menos de seu orçamento para o investimento em escolas, pesquisa, formação e capacitação.

Alternativas

Para Paulo Rubem Santiago, a primeira medida para resolver a crise seria colocar a situação clara para a sociedade, assumindo os gastos financeiros como gastos públicos, e portanto, passíveis também de cortes e escolhas políticas. “Não podemos reproduzir o argumento de separar os gastos com juros dos outros. Precisamos colocar tudo na mesa, encargos sociais, custeio da administração,  investimentos e despesas vinculadas ao endividamento. Se fizerem isso, a população vai ver a brutalidade da diferença”. O parlamentar defende que a escolha de onde cortar ou economizar seja da população, mas que imediatamente o governo abaixe as taxas de juros.

Na opinião de Santiago, outra falácia da argumentação dos ortodoxos da fazenda está na afirmação de que as taxas de juros são o único instrumento para segurar a inflação. Ele explica que um dos elementos que tem grande influência no aumento deste índice são os preços administrados dos contratos de serviços privatizados durante a gestão de FHC, como telefonia e energia elétrica. Enquanto a inflação cresceu 160% desde  a implantação do real em 1995,  os preços de tarifas telefônicas cresceram 700%. Outro exemplo citado de produto que tem impacto no índice de inflação são os combustíveis, cuja composição do preço se dá majoritariamente por conta dos tributos e da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide).

O economista Paulo Nogueira Batista Jr analisa em seu artigo “Déficit nominal zero?” que a presença do déficit combatido por Delfim Neto já foi suportada por vários países em momentos da políticas ant-recessivas, de diminuição dos tributos e aumento nos investimentos. O economista usa como exemplo o Japão, que tem mantido déficit entre 6% e 8% do PIB e os EUA, que teve no início do governo Bush aumento do índice até alcançar 4% do PIB. “Segunda observação (de mau gosto, reconheço): na Argentina, o malfadado governo De la Rúa, depois de ter sido seriamente abalado por denúncias de corrupção, foi induzido pelo ministro da Economia, Domingo Cavallo, a radicalizar a política econômica e a comprometer-se com uma meta de déficit zero. De la Rúa não terminou seu mandato”, provoca Nogueira Batista Jr.
 

Fonte: Ag. Carta Maior, Jonas Valente, 08/07/2005.

Charge: Maragoni Charge: Maragoni

 


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