Dell mira Eixo do Mal e acerta físico brasileiro

 

Fabricante exige assinatura de documento de não-cooperação com Cuba e outros países.
Pesquisador se recusa a assinar e vê ingerência em pesquisa e soberania nacionais.
 

A simples compra de um computador fabricado pela multinacional Dell transformou-se num incidente diplomático entre a empresa e um físico da Universidade Federal Fluminense (UFF) – incidente que pode acabar envolvendo toda a comunidade científica brasileira. Ao saber que os produtos se destinavam a um instituto de física, a Dell exigiu a assinatura de um termo de compromisso, no qual o pesquisador se comprometeria a não transferir sob hipótese nenhuma os PCs a cidadãos ou residentes de países do chamado "Eixo do Mal" definido pelo governo dos Estados Unidos – Cuba, Irã, Coréia do Norte, Sudão e Síria. A matriz da Dell é norte-americana.

O físico da UFF envolvido na confusão, Paulo Roberto Silveira Gomes, contou ao G1 que se recusou a assinar o documento, enviado a ele depois que os computadores já tinham sido entregues pela Dell. Ele colabora regularmente com pesquisadores cubanos, alguns radicados no Brasil e outros em Cuba. "Não cabe aos EUA saber o que eu faço com as coisas que eu compro. Se o Bush estivesse me doando os computadores, ainda vá lá", afirma. Gomes contou sua história para os principais grupos de físicos do país, e a atitude da Dell gerou revolta. Já há cientistas falando em boicote à empresa.

"O mais estranho é que eu tinha comprado dois outros computadores deles neste ano e não tinha precisado de nada disso", conta Gomes. Quem negociou a compra dos PCs foi um colega do físico, que é cubano e mora no Brasil há anos. A transação foi concluída no começo de agosto, os computadores chegaram à UFF no fim do mesmo mês, mas após a entrega a Dell voltou a entrar em contato com os pesquisadores, solicitando a assinatura do termo de compromisso.

"Eles disseram que as ligações telefônicas para a compra dos equipamentos tinham sido gravadas e, como tinha ficado claro que se tratava de material para um instituto de física, o procedimento era necessário", afirma o pesquisador da UFF. Os principais elementos do termo eram: a exigência de não transferir, exportar ou re-exportar os produtos adquiridos para o "Eixo do Mal", para qualquer estrangeiro com dupla nacionalidade, natural ou residente dos países em questão; não utilizar os produtos para qualquer atividade ligada a armas de destruição em massa de qualquer tipo ou transferi-los para qualquer pessoa ou grupo envolvidos nessas atividades; e nem transferir os computadores para qualquer pessoa ou grupo embargados pelo governo dos Estados Unidos.

"Disse que não assinaria os documentos em hipótese nenhuma, por questão de princípio. Mas, do ponto de vista técnico, também havia razões para não assinar, pois trabalho com um professor estrangeiro da UFF que está se naturalizando brasileiro e possuo forte interação com físicos cubanos. Se eu assinasse, essas colaborações teriam de cessar", afirma o cientista. Embora trabalhe com física nuclear, Gomes diz considerar absurda qualquer preocupação de segurança por parte do governo dos EUA com sua pesquisa. "Não tem nada de armamento nuclear no que estamos fazendo, está tudo publicado em revistas internacionais", reclama.

Os PCs foram adquiridos com financiamento do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), principal órgão de fomento à pesquisa do país. Gomes diz que quer devolver o equipamento à empresa, mas para isso quer uma carta com esclarecimentos ao CNPq.

O que diz a Dell

A Dell não se pronunciou a esse respeito. Em nota, disse apenas que precisa seguir as regras do governo dos EUA, sob pena de ver sua matriz sofrer represálias.

"A Dell Computadores do Brasil Ltda., na qualidade de uma das empresas do Grupo Dell, deve seguir as leis e regulamentos de exportação tanto do Brasil quanto dos Estados Unidos da América", afirmou a empresa em comunicado oficial.

"Dentre as regras as quais estamos sujeitos, não podemos fornecer produtos ou serviços (i) para pessoas (físicas ou jurídicas) oriundas de países que não possuam relações diplomáticas com os EUA e (ii) para utilização em atividades consideradas de alto risco.

Por esses motivos, a Dell necessita saber qual será a destinação final dos nossos produtos, onde e por quem serão utilizados, bem como se serão ou não futuramente exportados.

Esses esclarecimentos devem ser prestados pelo cliente por meio dos documentos padrão por ele mencionados. Caso deixemos de cumprir essas exigências da legislação americana, a nossa empresa mãe no exterior (Dell, Inc.) poderá ser severamente penalizada pelas autoridades dos EUA. Em última análise, a Dell, Inc. poderá, até mesmo, ser impedida de exportar”, declara a empresa. Os PCs que são o pomo da discórdia foram fabricados no Brasil.

Apoio

Paulo Murilo Castro de Oliveira, colega de Gomes na UFF e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), afirmou ao G1 que a entidade científica deve publicar em breve um relato escrito pelo físico e um pequeno texto de apoio e solidariedade a ele. Oliveira disse que só poderia falar por si mesmo sobre pontos específicos do problema. O vice-presidente da SBF disse que teria a mesma reação que Gomes em contexto parecido. "Talvez a minha tivesse sido mais violenta", declarou.

"O compromisso que a Dell do Brasil tenta impor é completamente contrário à ética científica vigente no mundo inteiro. É bom lembrar que este não é o primeiro episódio, há muitos outros no nível internacional. Posso citar, por exemplo, que a Iupap, instituição que congrega várias dezenas de países (inclusive os EUA) e promove todos os mais tradicionais congressos científicos na área de física (entre várias outras atividades), já tirou sua chancela de congressos realizados no país devido à proibição da entrada em seu território de pesquisadores de certas nacionalidades", conta Oliveira.

Para o físico, os demais cientistas brasileiros deveriam seguir o exemplo de Gomes e não assinar tais termos de compromisso. "Nós, brasileiros no Brasil, temos que obedecer às normas e leis brasileiras."

 

Fonte: G1, Reinaldo José Lopes, 12/9/2007.


Ministério pede explicações à Dell sobre exigências a físicos 

  

A filial brasileira da Dell alegou que o termo era uma exigência da lei americana e que a
matriz da empresa nos EUA poderia ser punida pelo governo americano caso a
determinação não fosse aplicada

O MCT (Ministério da C&T) solicitou, nesta quinta-feira, à Dell Computadores do Brasil esclarecimentos sobre a tentativa da empresa de policiar o uso de computadores da marca por físicos da Universidade Federal Fluminense.

A Folha revelou anteontem que a Dell exigiu que o físico nuclear Paulo Gomes, que comprara máquinas da empresa, assinasse um documento se comprometendo a não transferir os equipamentos a países do "eixo do mal", como Cuba, Irã, Coréia do Norte e Síria, e a não utilizá-los para produzir "armas de destruição em massa".

A exigência foi feita depois que a empresa descobriu, por meio de gravações feitas enquanto a compra era acertada, que as máquinas iriam para um instituto de física.

Gomes se recusou a assinar o termo e denunciou o caso à comunidade dos físicos. Vários deles passaram a pedir boicote à Dell.

A Sociedade Brasileira de Física manifestou solidariedade a Gomes e recomendou na quarta-feira que seus sócios não assinassem nenhum termo desse gênero.

A filial brasileira da Dell, em Porto Alegre, alegou que o termo era uma exigência da lei americana e que a matriz da empresa nos EUA, uma das maiores fabricantes de computadores do mundo, poderia ser punida pelo governo americano caso a determinação não fosse aplicada.

Os EUA têm restringido exportação de alta tecnologia para vários países por temerem seu uso militar. Cientistas brasileiros têm sofrido essas restrições.

O secretário de Política de Informática do MCT, Augusto Cesar Gadelha, vê a questão de outra forma. Para ele, a Dell do Brasil é uma empresa brasileira, que recebe inclusive dinheiro do próprio MCT via Lei de Informática.

"A Secretaria de Política de Informática surpreende-se que uma empresa brasileira, localizada em território nacional, esteja fazendo exigências, com base em normas de outro país, para venda de seus produtos", afirmou o secretário em nota.

 

Fonte: Folha de S. Paulo, Claudio Angelo, 14/9/07.

 

 


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