A democracia sitiada
Mauro Santayana*

 

O governo Lula está sitiado pela oposição, mas os seus sitiadores
se encontram cercados pela opinião nacional. Se ambos não
sentarem juntos para discutir um meio de conter a
 indignação popular com as últimas denúncias, a
revolta de Porto Velho pode ganhar o Brasil.

 

Espera-se que os principais homens do governo e da oposição esqueçam o descanso de fim de semana, e tratem de conversar mais do que nunca nos próximos dias. Já não se trata de buscar o famoso acordo de governabilidade, com concessões de parte a parte, mas de encontrar o modo hábil de conter a indignação do povo diante das revelações das últimas horas. Muitas vezes um episódio menor – como esse achaque de trombadinha no edifício central dos Correios, em Brasília – faz detonar explosivos amontoados. E não foi só isso, nesta semana de obscenidade política: os deputados de Rondônia, apanhados no laço do governador Ivo Cassol (ele mesmo acusado de ter as mãos sujas) exibiram as manchas de sua nudez moral diante dos milhões de espectadores.

Se o governo e a oposição se dispuserem a ir a fundo na apuração dos casos, e na punição imediata dos culpados, talvez possamos evitar o pior. Porque o pior, e não adianta usar óculos cor de rosa, já se arma no horizonte. O que ocorreu em Rondônia, e tem ocorrido eventualmente em algumas cidades brasileiras, poderá ocorrer, a qualquer momento, em Brasília. O conflito entre a polícia e os militantes do MST na Praça dos Três Poderes, tenha sido provocação de infiltrados ou não, poderia ter tido conseqüências muito mais dramáticas, se não fosse contido pelos dirigentes do movimento.

Erra-se dos dois lados. O governo, soldado ao chamado “núcleo duro”, não ouve os aliados no que se refere à liderança política. Limita-se a ouvi-los em questões administrativas. Se houvesse ouvido os aliados, como lhe convinha, não teria perdido a presidência da Câmara dos Deputados e, com ela, o instrumento mais adequado para a convivência com a Casa. Errou, primeiro, na hesitação do apoio à tese da reeleição para a presidência das casas parlamentares e, em seguida, na inabilidade em impor, sem entendimentos prévios, o nome de excelente e honrado parlamentar. E continua a errar, seja na luta interna pelo poder, seja na ingenuidade de certas propostas.

Erra, também, e muito, quando protege pessoas sem nenhuma credibilidade, como certos nomes que serviam para o trabalho sujo no governo de Fernando Henrique e foram recrutados pelo governo atual. Por que os Srs. Henrique Meireles e Romero Jucá não tomam a iniciativa de distribuir à imprensa cópias documentos que os inocentem? Qualquer um pode provar de onde veio a sua renda e como a aplicou. Para isso existem os registros bancários, os recibos de operações e cotejá-los com as declarações do Imposto de Renda. Para reunir tais documentos, bastam algumas horas de hábil despachante.

Citado, de passagem, por um dos depoentes na CPI dos Anões do Orçamento (por falar nisso, qual daqueles anões foi punido pela Justiça?) o Sr. Henrique Hargreaves foi afastado do cargo de ministro pelo presidente Itamar Franco, e retornou quando a CPI o isentou.

Mas, se erra o governo, erra muito mais a oposição em imaginar que pode tornar o país ingovernável e tirar disso as vantagens eleitorais. Se o governo souber atuar, a CPI requerida irá atingir os verdadeiros culpados pelo estado atual da corrupção no país: o governo Fernando Henrique Cardoso. As denúncias de corrupção têm sido sobre casos acidentais no atual governo. Se a CPI cavoucar no caso do Proer, na transferência de bancos aos estrangeiros, como a venda do Bamerindus ao HSBC, na venda da Cia. Vale do Rio Doce e das empresas de telecomunicações e de energia, vamos encontrar um prejuízo de dezenas de bilhões de dólares.

Os tucanos alegam que nenhum deles levou dinheiro nesses fantásticos negócios. Mas foram pródigos com os bens nacionais, entregando-os (por qual razão?) aos homens de negócio brasileiros e estrangeiros. A prodigalidade – e isso já foi dito por outros – é muito mais criminosa do que a corrupção, porque a corrupção, de uma forma ou de outra, tem limites, enquanto a prodigalidade só é limitada pelos recursos disponíveis. É sempre bom recordar que o Sr. Itamar Franco criou uma comissão externa para receber as denúncias de corrupção e investigar os atos suspeitos no poder executivo. O primeiro ato de Fernando Henrique, logo depois de receber o relatório das atividades do grupo, até aquele momento, foi o de extingui-la e mandar para o arquivo morto as suas observações.

O governo Lula está sitiado pela oposição, mas os seus sitiadores se encontram cercados pela opinião nacional. O povo, alertado pelas denúncias cotidianas dos meios de comunicação, começa a perceber, de forma ainda generalizada, que não elegeu homens públicos, mas escolheu ladrões para cuidar de seu patrimônio. Se a que se pretende instalar não for suficiente, uma CPI de verdade terá que ser instalada sobre a corrupção desses últimos anos. Ela mostrará que os grandes assaltantes do erário se encontram hoje do outro lado do alambrado. E mostrará como os corruptos atuam, como no caso da contratação da Kroll para espionar e gravar as conversas telefônicas do governo.

O governo e a oposição parlamentar não se encontram ameaçados por um golpe militar, nem por uma rebelião de esquerdistas fanáticos. O que ameaça as instituições do Estado são os corruptos e as massas revoltadas, que, uma vez dispostas a aglutinar-se e a fazer justiça, se tornam invencíveis. O que ocorreu em Porto Velho, se houvesse ocorrido em alguma capital do Sudeste, teria estimulado movimentações semelhantes por toda a parte. Os empresários financiadores de campanhas da oposição devem, em nome da Realpolitik, convocar os seus apadrinhados à sensatez: os seus negócios também se encontram sob a ameaça da instabilidade social.

Por tudo isso se espera que, até segunda-feira, os homens sensatos do governo e da oposição possam entender-se, a fim de evitar o pior. E só podem evitar o pior se estiverem dispostos a ir a fundo na limpeza ética do Estado.
 

* Mauro Santayana, jornalista, é colaborador do Jornal da Tarde e do Correio Braziliense. Foi secretário de redação do Última Hora (1959), correspondente do Jornal do Brasil na Tchecoslováquia (1968 a 1970) e na Alemanha (1970 a 1973) e diretor da sucursal da Folha de S. Paulo em Minas Gerais (1978 a 1982). Publicou, entre outros, “Mar Negro” (2002).
 

Fonte: Ag. Carta Maior, 19/05/2005.


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