Desafios para a era do conhecimento
Moacir Gadotti*

 

O século xxi anuncia uma crise de paradigmas que traz para a reflexão pedagógica conceitos novos como sustentabilidade, cidadania
planetária, dialogismo e transculturalidade

Nas últimas duas décadas do século XX assistimos a grandes mudanças, tanto no campo socioeconômico e político, quanto no campo da cultura, da ciência e da tecnologia. Vimos grandes movimentos sociais, como os que ocorreram no leste europeu no final dos anos 80, culminando com a queda do muro de Berlim. Ainda não fazemos uma idéia clara do que deverá representar, para todos nós, a globalização da economia, das comunicações e da cultura. As transformações tecnológicas tornaram possível o surgimento da era da informação.

É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas, não apenas porque estamos iniciando um novo milênio, época de balanço e de reflexão, época em que o imaginário parece ter um peso maior. O ano 2000 exerceu um fascínio muito grande em muitas pessoas. Paulo Freire nos dizia que queria chegar ao ano 2000 (acabou falecendo três anos antes). É um momento novo e rico de possibilidades. Por isso, colados ao nosso tempo, não podemos falar do futuro da educação, sem certa dose de cautela. É com essa cautela que eu gostaria de examinar algumas das perspectivas atuais da teoria e da prática da educação, apoiando-me naqueles educadores e filósofos que tentaram, em meio a essa perplexidade, apesar de tudo, apontar algum caminho para o futuro. A perplexidade e a crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo.

No início do século XX, H. G. Wells dizia que “a história da humanidade é cada vez mais a disputa de uma corrida entre a educação e a catástrofe”. A julgar pelas duas grandes guerras que marcaram a “história da humanidade”, na primeira metade do século XX, a catástrofe venceu. No início dos anos 50 dizia-se que só havia uma alternativa: “socialismo ou barbárie” (Cornelius Castoriadis). E chegamos ao final do século com a derrocada do socialismo burocrático de tipo soviético e do enfraquecimento da ética socialista. E mais: pela primeira vez na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo descontrole da produção industrial, podemos destruir toda a vida do planeta. Mais do que a solidariedade, estamos vendo crescer a competitividade. Vencerá a barbárie, de novo? Qual o papel da educação nesse novo contexto político? Qual é o papel da educação na era da informação? Que perspectivas podemos apontar para a educação nesse início do Terceiro Milênio? Para onde vamos?

Comecemos pelo significado da palavra “perspectiva”. A palavra “perspectiva” vem do latim tardio perspectivus que deriva de dois verbos: perspecto, que significa “olhar até o fim, examinar atentamente” e perspicio que significa “olhar através, ver bem, olhar atentamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente” (“Dicionário Escolar Latino-Português”, de Ernesto Faria). A palavra “perspectiva” é rica de significações. Segundo o Dicionário de filosofia, do italiano Nicola Abbagnano, “perspectiva” seria “uma antecipação qualquer do futuro: projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O termo exprime o mesmo conceito de possibilidade, mas de um ponto de vista mais genérico e que menos compromete, dado que podem aparecer como perspectivas, coisas que não têm suficiente consistência para serem possibilidades autênticas”. Segundo o Dicionário Aurélio, “perspectiva” é a “arte de representar os objetos sobre um plano, tais como se apresentam à vista; pintura que representa paisagens e edifícios a distância; aspecto dos objetos vistos de uma certa distância; panorama; aparência, aspecto; aspecto sob o qual uma coisa se apresenta, ponto de vista; expectativa, esperança”. Portanto, “perspectiva” significa ao mesmo tempo enfoque, quando falamos, por exemplo, em perspectiva política, e possibilidade, crença em acontecimentos considerados como prováveis e bons. Falar em perspectivas é falar de esperança no futuro.  

Hoje, muitos educadores estão perplexos diante das rápidas mudanças na sociedade, na tecnologia, na economia, e se perguntam sobre o futuro de sua profissão; alguns, com medo de perdê-la, sem saber o que devem fazer. Não é de se estranhar, portanto, que todas as palavras citadas por Abbagnano e encontradas no Aurélio apareçam na literatura pedagógica atual: “projeto” político-pedagógico, pedagogia da “esperança”, “ideal” pedagógico, “ilusão” e “utopia” pedagógica, o futuro como “possibilidade”. Fala-se muito hoje em “cenários” possíveis para a educação, portanto, em “panoramas”, representação de “paisagens”. Para se desenhar uma perspectiva é preciso “distanciamento”. É sempre um “ponto de vista”. Todas essas palavras entre aspas indicam uma certa direção ou, pelo menos, um horizonte em direção ao qual estamos caminhando ou podemos caminhar. Elas designam “expectativas” e anseios que podemos captar, capturar, sistematizar, pôr em evidência.

A virada do milênio é razão oportuna para um balanço sobre práticas e teorias que atravessaram os tempos. Falar de “perspectivas atuais da educação” é também falar, discutir, identificar o “espírito” presente no campo das idéias, dos valores e das práticas educacionais que as perpassam, marcando o passado, caracterizando o presente e abrindo possibilidades para o futuro. Algumas perspectivas teóricas que orientaram muitas práticas poderão desaparecer, e outras permanecerão em sua essência. Quais teorias e práticas se fixaram no ethos educacional, criaram raízes, atravessaram o milênio e estão presentes hoje? Para entender o futuro é preciso revisitar o passado. No cenário da educação atual podemos destacar alguns marcos, algumas pegadas, que persistem e poderão persistir na educação do futuro.

O TRADICIONAL E O NOVO

Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade Antiga, destinada a uma pequena minoria, a educação tradicional iniciou o seu declínio já no movimento renascentista, mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da escolaridade trazida pela educação burguesa. A educação nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de Rousseau, desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo no campo das ciências da educação e das metodologias de ensino. O conceito de “aprender fazendo” de J. Dewey e as técnicas Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas na história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional de educação quanto a nova, amplamente consolidadas, terão um lugar garantido na educação do futuro.

A educação tradicional e a educação nova têm em comum a concepção da educação como processo de desenvolvimento individual. Todavia, o traço mais original da educação do século XX foi o deslocamento de enfoque, do individual para o social, para o político e para o ideológico. A pedagogia institucional é um exemplo disso. A experiência de mais de meio século de educação nos países socialistas também o testemunha. A educação, no século XX, tornou-se permanente e social. É verdade, existem ainda muitos desníveis entre regiões e países, entre o norte e o sul, entre países periféricos e hegemônicos, entre países globalizadores e os países globalizados. Mas existem idéias universalmente difundidas, entre elas, a de que não há idade para se educar, de que a educação se estende pela vida toda e que ela não é neutra.

EDUCAÇÃO INTERNACIONALIZADA

No início da segunda metade do século XX, educadores e políticos imaginaram uma educação internacionalizada, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os países altamente desenvolvidos já haviam universalizado o ensino fundamental e eliminado o analfabetismo. Os sistemas nacionais de educação trouxeram um grande impulso, desde o século passado, possibilitando numerosos planos de educação, que diminuíram custos e elevaram os benefícios. A tese de uma educação internacional já existia deste 1899, quando foi fundado, em Bruxelas, o “Bureau Internacional de Novas Escolas”, por iniciativa do educador Adolphe Ferrière. Como resultado, temos hoje uma grande uniformidade nos sistemas de ensino. Podemos dizer que atualmente todos os sistemas educacionais do mundo contam com uma estrutura básica muito parecida. No final do século XX, o fenômeno da globalização deu novo impulso à idéia de uma educação igual para todos, agora não como princípio de justiça social, mas apenas como parâmetro curricular comum.

NOVAS TECNOLOGIAS

As conseqüências da evolução das novas tecnologias, centradas na comunicação de massa, na difusão do conhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no ensino – como previra McLuhan já em 1969 – pelo menos na maioria das nações, mas a aprendizagem a distância, sobretudo a baseada na internet, parece ser a grande novidade educacional neste início de milênio. A educação opera com a linguagem escrita e a nossa cultura atual dominante vive impregnada por uma nova linguagem, a da televisão e a da informática, particularmente a linguagem da internet. A cultura do papel representa talvez o maior obstáculo ao uso intensivo da internet, em particular da educação a distância com base na internet. Por isso, os jovens que ainda não internalizaram inteiramente a cultura do papel, adaptam-se com mais facilidade que os adultos ao uso do computador. Eles já nascem com essa nova cultura, a cultura digital.

Os sistemas educacionais ainda não conseguiram avaliar suficientemente o impacto da comunicação audiovisual e da informática, seja para informar, seja para bitolar ou controlar as mentes. Trabalhamos muito, ainda, com recursos tradicionais que têm pouco apelo para as crianças e jovens. Os que defendem a informatização da educação sustentam que é preciso mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória. Para ele, a função da escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é preciso dominar mais metodologias e linguagens, inclusive, a linguagem eletrônica.

PARADIGMAS HOLONÔMICOS

Entre as novas teorias surgidas nesses últimos anos, despertaram particular interesse dos educadores os chamados paradigmas holonômicos, ainda pouco consistentes. Complexidade e holismo são palavras cada vez mais ouvidas nos debates educacionais. Nesta perspectiva podemos incluir as reflexões de Edgar Morin, que critica a razão produtivista e a racionalização modernas, propondo uma lógica do vivente. Esses paradigmas sustentam um princípio unificador do saber, do conhecimento, em torno do ser humano, valorizando o seu cotidiano, o vivido, o pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras categorias como: decisão, projeto, ruído, ambigüidade, fi nitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade.

Essas seriam algumas das categorias dos paradigmas chamados holonômicos. Etimologicamente holos, em grego, significa todo e os novos paradigmas procuram centrar-se na totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia que teria a força para resgatar a totalidade do real, totalidade perdida. Para os defensores desses novos paradigmas, os paradigmas clássicos – identificados no positivismo e no marxismo seriam paradigmas marcados pela ideologia e lidariam com categorias redutoras da totalidade. Ao contrário, os paradigmas holonômicos pretendem restaurar a totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa, a sua criatividade, valorizando o micro, a complementaridade, a convergência, a complexidade. Para eles, os paradigmas clássicos sustentam o sonho milenarista de uma sociedade plena, sem arestas, onde nada perturbaria um consenso sem fricções. Ao aceitar, como fundamento da educação, uma antropologia que concebe o homem como um ser essencialmente contraditorial, os paradigmas holonômicos pretendem manter, sem pretender superar, todos os elementos da complexidade da vida e do real.

Os holistas sustentam que o imaginário e a utopia são os grandes fatores instituintes da sociedade. Recusam uma ordem que aniquila o desejo, a paixão, o olhar, a escuta. Os enfoques clássicos, segundo eles, banalizam essas dimensões da vida porque sobrevalorizam o macroestrutural, o sistema, onde tudo é função ou efeito das superestruturas socioeconômicas ou epistêmicas, lingüísticas e psíquicas. Para os novos paradigmas a história é essencialmente possibilidade, onde o que vale é o projeto de vida e o imaginário (Gilbert Durand, Cornelius Castoriadis, Michel Mafesolli). Existem tantos mundos quanto nossa capacidade de imaginar. Para eles, “a imaginação está no poder”, como queriam os estudantes de Paris em maio de 1968.

Na verdade, essas categorias não são novas na teoria da educação, mas hoje elas são lidas e analisadas com mais simpatia que no passado. Sob diversas formas e com diferentes significados, encontramos essas categorias em muitos intelectuais, filósofos e educadores, de ontem e de hoje: o “sentido do outro”, a “curiosidade” (Paulo Freire), a “tolerância” (Karl Jaspers), a “estrutura de acolhida” (Paul Ricoeur), o “diálogo” (Martin Buber), a “autogestão” (Celestin Freinet, Michel Lobrot), a “desordem” (Edgar Morin), a “ação comunicativa”, o “mundo vivido” (Jürgen Habermas), a “radicalidade” (Agnes Heller), a “empatia” (Carl Rogers), a “questão de gênero” (Moema Viezzer, Nelly Stromquist), o “cuidado” (Leonardo Boff), a “esperança” (Ernest Bloch), a “alegria” (Georges Snyders), a unidade do homem contra as “unidimensionalizações” (Herbert Marcuse) etc.

Evidentemente, nem todos esses autores e autoras aceitariam enquadrar-se nos paradigmas holonômicos. Todas as classificações, as tipologias, no campo das idéias, são necessariamente reducionistas. Não podemos negar as divergências existentes entre eles. Contudo, as categorias apontadas acima indicam uma certa tendência, ou melhor, uma perspectiva da educação. Os que sustentam os paradigmas holonômicos procuram buscar, na unidade dos contrários e na cultura contemporânea, um sinal dos tempos, uma direção do futuro, que eles chamam de pedagogia da unidade.

As perspectivas holísticas da educação provocaram grandes discussões nos últimos anos. Elas se referem, freqüentemente, às categorias transdisciplinaridade e complexidade. Creio que se deve entender a transdisciplinaridade como a entendia Jean Piaget, como “etapa superior da interdisciplinaridade”, isto é, como atitude e como método, indispensáveis ao pesquisador e ao educador e como dimensão essencial de tudo o que existe. A intertransdisciplinaridade está aqui dentro porque está lá fora, nas coisas. Significando basicamente “através” e “além” das disciplinas, a transdisciplinaridade consagra a unidade multidimensional do ato educativo. Ela procura compreender, mais do que acumular conhecimentos, inclui, agrega, compartilha, não divide... Por isso, Paulo Freire aproximava a atitude interdisciplinar da atitude transdisciplinar: porque encontrava nas duas o coletivo instituinte, o trabalho em grupo, a convivialidade, a transversalidade, o diálogo.

[HOLISTAS SUSTENTAM QUE IMAGINÁRIO E UTOPIA SÃO OS GRANDES FATORES INSTITUINTES DA SOCIEDADE]

A complexidade não deve ser entendida como um paradigma, mas como um dado da realidade, o real em processo, em transformação incessante, em criação e recriação, construção e reconstrução. Os dualismos provocaram sempre grande sofrimento, separando corpo e mente, por exemplo. Eles provocam desequilíbrios, dúvidas, ansiedades. Nesse sentido, deve-se entender a transdisciplinaridade como um desdobramento, um aprofundamento, da própria noção de dialética. Com essa nova abordagem, a dialética está se renovando. Entendida como atitude e como método, a transdisciplinaridade poderá dar uma contribuição ao estudo e à prática daquilo que chamo de Pedagogia da Terra, a ecopedagogia, que incorpora a atitude, a vivência e a convivência transdisciplinar. Ela também se apoia numa certa compreensão da complexidade. “A verdade é o todo”, dizia Hegel. Por isso, creio que um dos grandes méritos da transdisciplinaridade seja recuperar e renovar a categoria hegeliana de totalidade.

EDUCAÇÃO POPULAR

O paradigma da educação popular, inspirado originalmente no trabalho de Paulo Freire nos anos 60, encontrava na conscientização sua categoria fundamental. A prática e a reflexão sobre a prática, levou a incorporar outra categoria não menos importante: a da organização. Afinal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder transformar. Nos últimos anos, os educadores que permaneceram fiéis aos princípios da educação popular atuaram principalmente em duas direções: na educação pública popular – no espaço conquistado no interior do Estado – e na educação popular comunitária e na educação ambiental ou sustentável, predominantemente não governamentais. Durante os regimes autoritários da América Latina a educação popular manteve sua unidade, combatendo as ditaduras e apresentando projetos “alternativos”. Com as conquistas democráticas, ocorreu com a educação popular uma grande fragmentação em dois sentidos: de um lado ela ganhou uma nova vitalidade no interior do Estado, diluindo-se em suas políticas públicas e, de outro lado, continuou como educação não-formal, dispersando-se em milhares de pequenas experiências. Perdeu em unidade, ganhou em diversidade e conseguiu atravessar numerosas fronteiras. Hoje ela se incorporou ao pensamento pedagógico universal e orienta a atuação de muitos educadores espalhados pelo mundo, como o testemunha o Fórum Paulo Freire e o Fórum Mundial de Educação que reúnem, periodicamente, milhares de educadores de muitos países.

As práticas de educação popular também constituem-se em mecanismos de democratização, onde se refletem os valores de solidariedade e de reciprocidade e novas formas alternativas de produção e de consumo, sobretudo as práticas de educação popular comunitária, muitas delas voluntárias. O terceiro setor está crescendo não apenas como alternativa entre o Estado burocrático e o Mercado insolidário, mas como espaço de novas vivências sociais e políticas hoje consolidadas com as organizações não governamentais (ONGs) e as organizações de base comunitária (OBCs). Este está sendo atualmente o campo mais fértil da educação popular.

Diante desse quadro, a educação popular, como modelo teórico reconceituado, tem oferecido grandes alternativas. Dentre elas está a reforma dos sistemas de escolarização pública. A vinculação da educação popular com o poder local e a economia popular abre, também, novas e inéditas possibilidades para a prática da educação. O modelo teórico da educação popular, elaborado na reflexão sobre a prática da educação durante várias décadas, tornou-se, sem dúvida, uma das grandes contribuições da América Latina à teoria e à prática educativas em nível internacional. A noção de aprender a partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a educação como ato de conhecimento e de transformação social, a politicidade da educação são apenas alguns dos legados da educação popular à pedagogia crítica universal.

DUPLA ENCRUZILHADA

Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta-se numa dupla encruzilhada: de um lado o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas não apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros numa época de profundas e rápidas transformações. Essa é uma das preocupações do Instituto Paulo Freire, buscando, a partir do legado de Paulo Freire, consolidar o seu “Projeto da Escola Cidadã”, como resposta à crise de paradigmas. A concepção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito de Escola Cidadã podem constituir-se numa alternativa viável, de um lado, ao projeto neoliberal de educação, amplamente hegemônico, baseado na ética do mercado livre, e, de outro lado, à teoria e à prática de uma educação burocrática, sustentada na “estadolatria” (Antonio Gramsci). É uma escola que busca fortalecer autonomamente o seu projeto político-pedagógico relacionando-se dialeticamente – não mecânica e subordinadamente – com o Mercado, o Estado e a Sociedade. Ela visa formar o cidadão para controlar o Mercado e o Estado, ou, como diz o educador argentino José Tamarit, “educar o soberano”. A Escola cidadã é, ao mesmo tempo, pública quanto ao seu destino – isto é, para todos – estatal quanto ao financiamento e é democrática e comunitária quanto à sua gestão.

Seja qual for a perspectiva que a educação tomar no século XXI, uma educação voltada para o futuro, será sempre uma educação contestadora, superadora dos limites impostos pelo Estado e pelo Mercado, portanto, uma educação muito mais voltada para a transformação social do que para a transmissão cultural. Por isso, acreditamos que a pedagogia da práxis, como uma pedagogia transformadora, em suas várias manifestações, pode oferecer um referencial geral mais seguro do que as pedagogias centradas na transmissão cultural, neste momento de perplexidade.

Costuma-se definir nossa era como a era do conhecimento. Se for pela importância dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, podemos dizer que vivemos mesmo na era do conhecimento, na sociedade do conhecimento, sobretudo em conseqüência da informatização e do processo de globalização das telecomunicações a ela associado. Pode ser que, de fato, já tenhamos ingressado na era do conhecimento, mesmo admitindo que grandes massas da população estejam excluídas dele. Todavia, o que constatamos é que predomina mais a difusão de dados e informações e não de conhecimentos. Isso está sendo possível graças às novas tecnologias que estocam o conhecimento, de forma prática e acessível, em gigantescos volumes de informações. Elas são armazenadas inteligentemente permitindo a pesquisa e o acesso de maneira muito simples, amigável e flexível. É o que já acontece com a internet. Pela internet, a partir de qualquer sala de aula do planeta, pode-se acessar inúmeras bibliotecas em muitas partes do mundo. As novas tecnologias nos permitem acessar não apenas conhecimentos transmitidos por palavras, mas também imagens, sons, fotos, vídeos (hipermídia) etc. Nos últimos anos a informação deixou de ser uma área ou especialidade para tornar-se uma dimensão de tudo, transformando profundamente a forma como a sociedade se organiza. Pode-se dizer que está em andamento uma Revolução da Informação como ocorreu no passado a Revolução Agrícola e a Revolução Industrial.

Ladislau Dowbor, no livro A reprodução social, após descrever as facilidades que as novas tecnologias oferecem ao professor se pergunta: o que eu tenho a ver com tudo isso, se na minha escola não tem nem biblioteca e com o meu salário eu não posso comprar um computador? Ele mesmo responde que será preciso trabalhar em dois tempos: o tempo do passado e o tempo do futuro. Fazer tudo hoje para superar as condições do atraso, e, ao mesmo tempo, criar as condições para aproveitar amanhã as possibilidades das novas tecnologias.

[ESTÁ EM ANDAMENTO UMA REVOLUÇÃO DA INFORMAÇÃO COMPARÁVEL À REVOLUÇÃO INDUSTRIAL]

As novas tecnologias criaram novos espaços do conhecimento. Agora, além da escola, também a empresa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas estudam em casa, pois podem, de casa, acessar o ciberespaço da formação e da aprendizagem a distância, buscar “fora” – a informação disponível nas redes de computadores interligados – serviços que respondem às suas demandas de conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas...) está se fortalecendo, não apenas como espaço de trabalho, em muitos casos, voluntário, mas também como espaço de difusão de conhecimentos e de formação continuada. É um espaço potencializado pelas novas tecnologias, inovando constantemente as metodologias. Novas oportunidades parecem abrir-se para os educadores. Esses espaços de formação têm tudo para permitir maior democratização da informação e do conhecimento, portanto, menos distorção e menos manipulação, menos controle e mais liberdade. É uma questão de tempo, de políticas públicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A tecnologia não basta. É preciso a participação mais intensa e organizada da sociedade. O acesso à informação não é apenas um direito. É um direito fundamental, um direito primário, o primeiro de todos os direitos pois sem ele não temos acesso aos outros direitos. Não há dúvida de que a sociedade do século XXI tornou-se, definitivamente, uma sociedade de redes e de movimentos. E a tecnologia tem muito a ver com isso.

O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não é apenas o capital da transnacional que precisa dele para a inovação tecnológica. Ele é básico para a sobrevivência de todos. Por isso ele não deve ser vendido ou comprado, mas disponibilizado a todos. Esta é a função de instituições que se dedicam ao conhecimento, apoiadas nos avanços tecnológicos. Esperamos que a educação do futuro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de políticas públicas no setor, acabaram surgindo “indústrias do conhecimento” que mercantilizaram a educação, prejudicando uma possível visão humanista, tornando-a instrumento de lucro e de poder econômico.

A educação, e a educação a distância em particular, é um bem coletivo e, por isso, não deve ser regulada pelo jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo furor legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, reconhecer, avaliar etc. de muitos tecnoburocratas. Quem deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não é nem o Estado e nem o Mercado. Deve ser a sociedade e o sujeito aprendente. Daí surge a pergunta que ecoa cada vez mais: na era da informação generalizada existirá ainda necessidade de diplomas?

RENOVAÇÃO CULTURAL

O que cabe à escola na sociedade informacional, sob uma perspectiva transformadora? Cabe a ela organizar um movimento global de renovação cultural, aproveitando-se de toda essa riqueza de informações. Hoje é a empresa que está assumindo esse papel inovador. A escola não pode ficar a reboque das inovações tecnológicas. Ela precisa ser um centro de inovação. Nós temos uma tradição de dar pouca importância à educação tecnológica, a qual deveria começar já na educação infantil.

Na sociedade da informação a escola deve servir de bússola para navegar nesse mar do conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações “úteis” para a competitividade, para obter resultados. Ela deve oferecer uma formação geral na direção de uma educação integral. O que significa servir de bússola? Significa orientar criticamente, sobretudo as crianças e jovens, na busca de uma informação que os faça crescer e não embrutecer.

Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da “reciclagem” e da atualização de conhecimentos, e muito mais além da “assimilação” de conhecimentos. A sociedade do conhecimento é uma sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem: parcerias entre o público e o privado (família, empresa, associações...), avaliações permanentes, debate público, autonomia da escola, generalização da inovação. As conseqüências para a escola e para a educação em geral são enormes: ensinar a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saber organizar o próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente e autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz autônomo e a distância.

Nesse contexto de impregnação do conhecimento cabe à escola: amar o conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; cabe-lhe selecionar e rever criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado. E mais: sob uma perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em favor dos excluídos. Não discriminar o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode construir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder. Sob uma perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia contribui pouco para a emancipação dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania. Como diz Ladislau Dowbor, a escola deixará de ser “lecionadora” para ser “gestora do conhecimento”.“Pela primeira vez, diz ele, a educação tem a possibilidade de ser determinante sobre o desenvolvimento”. A educação tornou-se estratégica para o desenvolvimento. Mas, para isso, não basta “modernizá-la”, como querem alguns. Será preciso transformá-la profundamente.

A escola do século XXI precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação, planejar-se a médio e a longo prazos, fazer sua própria reestruturação curricular, elaborar seus parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de dentro das escolas são mais duradouras. Da sua capacidade de inovar, registrar, sistematizar a sua prática, a sua experiência, dependerá o seu futuro. Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento diante do aluno que é o sujeito da sua própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz. Para isso ele também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para “o que fazer” dos seus alunos. A escola está desafiada a mudar a lógica da construção do conhecimento, pois a aprendizagem agora ocupa toda a nossa vida. E porque passamos todo o tempo de nossas vidas na escola – não só nós, professores – devemos ser felizes nela. A felicidade na escola não é uma questão de opção metodológica ou ideológica. É uma obrigação essencial dela. Como diz Georges Snyders no livro A alegria na escola, precisamos de uma nova “cultura da satisfação”, precisamos da “alegria cultural”. O mundo de hoje é “favorável à satisfação” e a escola também pode sê-lo.

O que é ser professor hoje? Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo, conviver; é ter consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem educadores como não se pode pensar num futuro sem poetas e filósofos. Os educadores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da palavra, dos marqueteiros, eles são os verdadeiros “amantes da sabedoria”, os filósofos de que nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber (não o dado, a informação e o puro conhecimento), porque constroem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mas produtivo e mais saudável para todos. Por isso eles são imprescindíveis.

EDUCAÇÃO DO FUTURO

Iniciamos este texto procurando situar o que significa “perspectiva”. Sem pretender fazer qualquer exercício de futurologia. No sentido de estabelecer pontos para o debate, gostaríamos de apontar agora algumas categorias em torno da educação do futuro. Elas indicam o surgimento de temas com importantes conseqüências para a educação.

As categorias “contradição”, “determinação”, “reprodução”, “mudança”, “trabalho”, “práxis”, “necessidade”, “possibilidade”, aparecem freqüentemente na literatura pedagógica contemporânea, sinalizando já uma perspectiva da educação, a perspectiva da pedagogia da práxis. Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do fenômeno da educação, principalmente a partir de Hegel e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradigma mais consistente para analisar o fenômeno da educação. Podemos e devemos estudá-la e estudar todas as categorias acima apontadas. Elas não ajudam muito na leitura do mundo da educação atual. Elas não podem ser negadas ou desprezadas como categorias “ultrapassadas”. Mas também podemos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pensar a educação do século XXI, categorias nascidas ao mesmo tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis algumas delas, a título de exemplo.

1ª) Cidadania. O que implica também tratar do tema da autonomia da escola, de seu projeto político-pedagógico, da questão da participação, da educação para e pela cidadania. A partir dessa categoria podemos discutir particularmente o significado da concepção de escola cidadã e de suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa de muitas escolas e de sistemas educacionais.

2ª) Planetaridade. A Terra é um “novo paradigma” (Leonardo Boff). Que implicações tem essa visão de mundo sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Francisco Gutiérrez) e uma ecoformação (Gaston Pineau)? O tema da cidadania planetária pode ser discutido a partir dessa categoria.

3ª) Sustentabilidade. O tema da sustentabilidade originouse na biologia, passando pela economia (“desenvolvimento sustentável”), pela ecologia, para inserir-se definitivamente no campo da educação: educar para uma educação sustentável. O que seria uma cultura da sustentabilidade? Esse tema deverá dominar muitos debates educativos nas próximas décadas. O que estamos estudando nas escolas? Não estaremos construindo uma ciência e uma cultura que servem para a degradação e para a deterioração do planeta?

4ª) Virtualidade. Esse tema implica toda a discussão atual sobre a educação a distância e o uso dos computadores nas escolas. A informática associada à telefonia nos inseriu definitivamente na era da informação. Quais as conseqüências para a educação, para a escola, para a formação do professor e para a aprendizagem? Conseqüências da obsolescência do conhecimento. Como fica a escola diante da pluralidade dos meios de comunicação? Eles nos abrem os novos espaços da formação ou irão substituir a escola?

5ª) Globalização. O processo da globalização está mudando a política, a economia, a cultura, a história... portanto, também a educação. É um tema que deve ser enfocado sob vários prismas. A globalização remete também ao poder local e às conseqüências locais da nossa dívida externa global (e dívida interna também, a ela associada). O global e o local se fundem numa nova realidade: o “glocal”. O estudo desta categoria nos remete à necessária discussão do papel dos municípios e do “regime de colaboração” entre união, estados, municípios e comunidade, nas perspectivas atuais da Educação Básica. Para pensar a educação do futuro, precisamos refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das comunicações.

6ª) Transdisciplinaridade. Embora com significados distintos, certas categorias como transculturalidade, transversalidade, multiculturalidade e outras como complexidade e holismo também indicam uma nova tendência na educação que será preciso analisar. Como construir interdisciplinarmente o projeto pedagógico da escola? Como relacionar multiculturalidade e currículo? É necessário realizar o debate dos parâmetros curriculares. Como trabalhar com os “temas transversais”? O desafio de uma educação sem discriminação étnica, cultural, de gênero.

7ª) Dialogicidade, dialeticidade. Não podemos negar a atualidade de certas categorias freireanas e marxistas, isto é, a validade de uma pedagogia dialógica ou da práxis. Marx, em O capital, privilegiou as categorias hegelianas “determinação”, “contradição”, “necessidade”, “possibilidade”. A fenomenologia hegeliana continua inspirando nossa educação e deverá atravessar o milênio. A educação popular e a pedagogia da práxis deverão continuar como paradigmas válidos para além do século XXI.

[DIALÉTICA AINDA É PARADIGMA MAIS CONSISTENTE PARA ANALISAR FENÔMENO DA EDUCAÇÃO]

A análise dessas categorias, a identificação da sua presença na pedagogia contemporânea, pode constituir-se, sem dúvida, num grande programa a ser desenvolvido hoje em torno das “perspectivas atuais da educação”. Não pretendi ser completo nem exaustivo. Não pretendo dar respostas definitivas. Com esse pequeno texto introdutório pretendo apenas iniciar um debate sobre as perspectivas atuais da educação. Não tenho a intenção de, com isso, encerrá-lo. Estou ciente de que existem muitos outros desafios para a educação. A reflexão crítica não basta, como também não basta a prática sem a reflexão sobre ela. Neste pequeno texto indiquei apenas algumas pistas, dentro de uma visão otimista e crítica – não pessimista e ingênua – para uma análise em profundidade daqueles e daquelas que se interessam por uma educação voltada para o futuro, uma educação apropriada para o século XXI.

 

* Moacir Gadotti professor titular da USP, diretor do Instituto Paulo Freire e autor, entre outras obras, de A educação contra a educação (Paz e Terra, 1979), Convite à leitura de Paulo Freire (Scipione, 1988), História das idéias pedagógicas (Ática, 1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas, 2000), Pedagogia da Terra (Peirópolis, 2000) e Os mestres de Rousseau (Cortez, 2004).

 

Fonte: Coleção Memória da Pedagogia, revista Viver Mente & Cérebro,
publicado na internet, seção Educação no Portal Estadão.


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