O dique transbordou

Supersalário a deputados e senadores foi a gota d’água    

Artífices do supersalário parlamentar dão fecho a legislatura calamitosa; só reação popular é capaz de alterar esse roteiro

 

 

Ópera-bufa, chanchada, vaudeville. O ato derradeiro daquela que foi uma das piores legislaturas federais não negou sua filiação ao espetáculo circense. Ao menos se encerra agora o ciclo. Não deixará saudades.  

Os luminares que quiseram dobrar o salário parlamentar já garantiram lugar no memorial desta turma legislativa.  

Lá estarão – do de mensaleiros e sanguessugas, do monumento ao congressista anônimo que absolveu a delinqüência e do boneco de cera de Angela Guadagnin congelado em "pirouette" – as efígies de Renan Calheiros, Aldo Rebelo e dos líderes partidários responsáveis pelo último acinte.  

Agiu bem o Supremo Tribunal Federal ao frustrar a operação subterrânea destinada a alçar de R$ 12.847 para R$ 24.500 os vencimentos mensais de senadores e deputados federais.  

Se quiserem levar o desatino adiante, os parlamentares terão agora de fazê-lo à luz do dia, aprovando uma nova lei. Por onde andarem, terão de dar satisfações à maré montante do repúdio popular.  

A condenação enérgica e unânime da sociedade vem deixando estupefatos os artífices da manobra. Afinal, se a bênção aos colegas mensaleiros e sanguessugas feriu, mas não matou, por que haveria de ser diferente agora?  

Porque a desfaçatez, a sem-cerimônia e a covardia contidas num aumento salarial de 91% auto concedido no apagar das luzes funcionaram como a gota d'água que faz o dique transbordar.  

As doses de impunidade e desrespeito que os nobres parlamentares vieram servindo ao público encontraram um limite de tolerância.  

Denotam-no manifestações nas ruas e na internet, mensagens a mancheias direcionadas às assessorias do Congresso, contestações judiciais e propostas de projetos de iniciativa popular para conter a escalada na remuneração de legisladores.  

Que a indignação prossiga.  

Que não se dê por satisfeita diante de um possível recuo de deputados e senadores na intenção de duplicar seus vencimentos.  

Que sirva como diapasão, daqui por diante, para os parlamentares eleitos em outubro, que assumirão seus postos em fevereiro.  

A fim de redimir-se dos estragos deixados pela legislatura que termina, o Congresso deve passar a ser governado pelo espírito da reconstrução, do rigor ético, da sobriedade administrativa e da prestação de contas.  

Mas quando, em nome de suas ambições eleitorais, os presidentes das duas Casas mandam às favas a responsabilidade pública e se tornam porta-bandeiras dos supersalários, é o segundo ato da tragédia que estão a rascunhar.  

Apenas a sociedade mobilizada pode mudar esse roteiro.
 

Fonte: Folha de S. Paulo, Editorial, 20/12/2006.


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