Do fracasso à humilhação

 

Com a questão da Bolívia, a política externa do governo Lula
desceu a seu ponto mais baixo

Uma instalação brasileira foi tomada manu militari por um governo estrangeiro, pela penúltima vez, no distante 12 de novembro de 1864, quando o governo paraguaio apreendeu o navio brasileiro Marquês de Olinda. Deu em guerra. A última vez ocorreu na segunda-feira, 1º de maio, quando o governo de Evo Morales despachou tropas para ocupar os campos de gás da Petrobras na Bolívia. Deu numa nota em que o governo brasileiro afirma reconhecer a decisão boliviana como "ato inerente à sua soberania".  

Não. Não se está dizendo que, à semelhança do governo imperial brasileiro, o governo Lula devesse enviar seus Urutu ao altiplano boliviano. Mesmo porque a subida é íngreme, as curvas no caminho são perigosas e o ar rarefeito que se respira por lá costuma tontear os forasteiros. Mas a evocação daquele outro momento histórico serve para enfatizar a enormidade que é recorrer à ocupação militar, ainda que simbólica, ainda que sem disparar um tiro, numa disputa com outro país. Se não é ato de guerra, é um gesto de hostilidade profunda. Em resposta, o governo Lula apresentou uma das reações mais tíbias, tímidas e tatibitates já produzidas pela diplomacia brasileira. Com isso, pôs em campo uma nova modalidade de reação aos desafios externos – a política de oferecer a outra face. Eis no que resultou a política externa "altiva" que o governo do PT julga ter implantado.  

Poucos governos brasileiros ostentaram tanta exuberância em sua política externa. Não bastou, ao presidente operário, ter realizado o sonho de virar presidente. Imaginou-se um líder para o continente, talvez até para o mundo, ao qual ensinaria o caminho de relações mais equitativas. Amparava-o, no devaneio, um Itamaraty cheio de ardor terceiro-mundista. Para os vizinhos mais próximos, Lula e o Itamaraty imaginaram uma Comunidade Sul-Americana de Nações que, juntando o Pacto Andino e o Mercosul, as duas estruturas supranacionais já existentes, uniria os Estados associados em torno de uma moeda, um passaporte e um Parlamento comuns. A Comunidade Sul-Americana foi lançada numa reunião em Cuzco, realizada sob inspiração brasileira, em dezembro de 2004. Em abril do ano seguinte, num de seus arroubos característicos, Lula diria: "Eu tenho a convicção de que o que nós fizemos na América do Sul nesses dois primeiros anos foi um avanço maior do que o que foi conquistado nos últimos quarenta ou cinqüenta anos".  

O panorama da América do Sul, hoje, é de luta de todos contra todos. O Pacto Andino se desfaz nas brigas entre a Venezuela, de um lado, e o Peru e a Colômbia, de outro. O Mercosul, que já vinha cambaleante em razão das eternas querelas entre Brasil e Argentina, sofre agora a ameaça de retirada do Uruguai, para assinar tratado de livre-comércio com os Estados Unidos. Lula, coitado, que imaginou ser o natural condutor do processo sul-americano, virou cego no meio de tiroteio. O fracasso no continente soma-se ao de conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, ao de estabelecer relações privilegiadas com a China e a Índia e a tantos outros que fazem da diplomacia de Lula uma campeã de trapalhadas.  

Na semana passada mudamos de patamar. Não é mais de fracasso que se trata, mas de humilhação. O secretário-geral e ideólogo-mor do Itamaraty terceiro-mundista, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, esteve na Bolívia nas vésperas da investida de Evo Morales. Não lhe contaram nada. Também não contaram nada a Lula. Seguiram-se a ocupação militar e a pífia nota brasileira. Para culminar, uma reunião quadripartite arranjada às pressas e realizada na quinta-feira terminou com os presidentes Lula, Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Evo Morales com as mãos juntas, umas em cima das outras, Lula e Evo Morales lado a lado, mão na mão, o presidente brasileiro posando de amiguinho daquele que dois dias antes tomara militarmente instalações de uma empresa-símbolo do Brasil. Lula oferecia mais que a mão. Entregava a outra face.  

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Por falar em Guerra do Paraguai... Para azar dos bolivianos, Evo Morales tem um traço em comum com Solano López, o caudilho que arrastou seu país àquela conflagração. Não, não é que ambos sejam líderes "antiimperialistas", segundo uma tola fantasia criada nas últimas décadas em torno do presidente paraguaio, na verdade um tiranete vulgar, que tipicamente administrava o país como um fazendão particular, degolava os generais de que desconfiasse e mandava meninos de 10 anos para as batalhas. O que os une é a vocação suicida. López julgou que podia estender seus domínios aos vizinhos Brasil e Argentina. Levou seu país à ruína e acabou morto. Evo Morales escolheu hostilizar o único comprador possível de sua maior riqueza natural. O que vai provocar de mais duradouro no Brasil é a corrida pelas alternativas a seu gás. A curto prazo, pode até conseguir aumento de preço. A longo prazo, arrisca ficar sem outra utilização para seu produto senão queimá-lo em bonitos espetáculos pirotécnicos ou encher balões.
 

Fonte: Rev. Veja, Roberto Pompeu de Toledo, ed. 1955, 10/05/2006


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