E a cultura, presidente?
Jorge da Cunha Lima* 

  

Os problemas estão aí. Educação sem cultura é o mesmo que catecismo sem fé,
um utensílio para enganar as estatísticas

Em todo o tempo utilizado pelos candidatos na campanha presidencial, tanto no primeiro quanto no segundo turno, nenhum espaço foi destinado à cultura. A discussão surgiu apenas quando algum jornalista colocou diretamente a questão ao candidato. O problema foi sempre respondido com a velocidade e a superficialidade em geral destinadas a assuntos sem nenhuma importância. 

No entanto, os problemas da cultura estão aí, visíveis, a começar pelo fato de que educação sem cultura é o mesmo que catecismo sem fé, um utensílio para enganar as estatísticas. 

Vejamos, presidente. Os valores culturais da identidade nacional ficam sempre escondidos na absoluta falta de divulgação, enquanto o entretenimento e os produtos consagrados no mercado comercial da arte, produzidos pela industria cultural, têm toda a cobertura do mundo, não poucas vezes à custa do dinheiro público. 

Os produtos eruditos (teatro, ópera, concertos, bienais) se destinam quase sempre a uma elite rica, sobrando para o resto da sociedade cardápios que dispensam a mediação da inteligência, produtos que são dirigidos diretamente às entranhas. 

Assim, castramos o enorme contingente criativo do país, um dos mais ricos do mundo, e barramos o acesso a utensílios e produtos artísticos resultantes dos valores da identidade. 

Os museus públicos estão fazendo água. Literalmente. Bibliotecas públicas estão sendo pilhadas. Arquivos nacionais e estaduais não cuidam do que possuem, não atentam ao que perdem nem se ocupam de arquivar documentos relevantes. 

A instituição legal e a prática de sistemas nacionais de arquivo, bibliotecas e museus é medida simples e já deu certo em muitos países e Estados. 

Apesar de a cultura ser a atividade que produz mais retorno para pessoas, governos e empresas, isso ainda não foi politicamente percebido. 

Desde a promessa de Tancredo Neves, se espera o valor de 1% do Orçamento federal para o Ministério da Cultura. Ainda estamos em 0,6%. As leis de incentivo, teoricamente bem-vindas, esperam o aperfeiçoamento prometido desde o começo da gestão. 

O brasileiro não tem o hábito de contribuir como pessoa física. Caridade, benesse e responsabilidade social são atitudes de pessoas jurídicas. Assim mesmo, com incentivo fiscal. 

Assim, a consciência e a prática de investimentos em cultura devem ser inercialmente públicos. Todos os grandes homens da história agiram assim: Péricles, na Grécia, Marco Aurélio, em Roma, Lourenço de Médici, em Florença, Napoleão, De Gaulle e Mitterrand, na França, Kennedy, nos Estados Unidos, Juscelino Kubistchek, no Brasil. Cultura não é ornamento, mas a substância do poder. 

Após Collor destruir as instituições culturais públicas, o entusiasmo pela gestão pública da cultura, iniciado por Mário de Andrade, Afonso Arinos, continuado por Aloísio Magalhães e José Aparecido, diminuiu consideravelmente. 

Gilberto Gil postulou um projeto nacional de cultura. Sofreu reveses, mas insistiu, tentando executá-lo mais pelo esforço próprio e de uma equipe abnegada que pelos meios, escassos. Ainda não conseguiu melhorar a lei de incentivos fiscais, mas já qualificou a destinação do magro orçamento. 

Na área da televisão pública, a desatenção do poder é muito grande. São 19 geradoras distribuídas por todo o Brasil, 1.559 transmissoras próprias, 88 geradoras afiliadas e 218 retransmissoras afiliadas, atingindo 3.063 municípios. Todas em situação bastante difícil, sobretudo neste momento de transição para a TV digital, que em boa hora o governo determinou. 

Podemos informar com segurança que o único aparelho eletrodoméstico que existe em maior número que a TV na casa dos brasileiros é o fogão. No Brasil, as crianças ficam mais de quatro horas diárias na frente da TV. 

Assim, o gosto, o patriotismo, a sexualidade, a opção política, o desejo de consumo e outros sentimentos da vida são promovidos prioritariamente pela televisão comercial para adultos e, sobretudo, para os jovens, já que a influência da família (mesa da sala de jantar) e da escola são hoje diminutas. Chegou a hora da TV pública. 

Felizmente, o ministro Gil convocou a sociedade e as instituições envolvidas na questão da cultura televisiva para um Fórum Nacional de Televisão Pública, a ser realizado a partir de novembro deste ano. 

Julgamos, senhor presidente, que a questão cultural é fundamental. O mercado comum europeu, muito antes de estabelecer uma moeda comum, realizou uma grande política de aproximação cultural entre a Alemanha e a França e entre os demais países-membros. 

A intenção de Carlos Magno e de Napoleão de unificar a Europa pela fé ou pela força só foi conseguida muito depois, pela paz e a partir de um acerto cultural. 

O Brasil, o presidente sabe melhor que ninguém, assim como a Europa, é um continente a ser unificado. Não pode ser medido apenas pela macroeconomia, pelos juros, pelo câmbio e pela infra-estrutura. Precisa de um desenvolvimento que não seja apenas um percentual do PIB, mas do seu produto cultural bruto.

 

* Jorge da Cunha Lima é jornalista e escritor, presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e da Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais) e vice-presidente do Itaú Cultural.

 

Fonte: Folha de S. Paulo, 16/11/2006.


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