Educação na fila de espera
Eduardo Portella*
 

Entra governo, muda governo, mudam-se os tempos e a educação não muda. Continua mais ou menos a mesma, apesar dos discursos triunfalistas de eventuais dirigentes. Não diria que a educação está na UTI, mas que pode ser vista no corredor do hospital esperando atendimento, isso é evidente, e há muitos anos. Não são só os pais e os filhos que se encontram nas filas de espera das escolas de todos os lados e de todos os níveis. é a própria educação -abandonada umas vezes, desestimulada outras, desmotivada quase sempre.

Vale a pena insistir que o crescimento do país passa necessariamente pela escola. Passa e não raro fica, se levarmos em conta o imprescindível dinamismo de uma pedagogia aberta e as demandas atuais pela educação continuada. é claro que consciente de que a sala de aula faz parte da nação e do mundo. O que somente acontecerá quando se distribuir eqüitativamente, pelas pessoas e pelas nações, sem distinção de cor, cultura e credo, a obrigação ética. Caso contrário estaremos reduzindo o espaço da construção da personalidade e alimentando as patologias da sociedade de massa nesta nossa baixa modernidade. Porque parece que caminhamos na direção oposta e que a qualidade, até segunda ordem, foi para o brejo.

Ainda agora, aqui mesmo, Antônio Ermírio de Moraes predicava pela "Educação: prioridade nº 1 da nação" (Opinião, pág. A2, 1º/8), lembrando que estamos "longe das nossas necessidades quando se considera a trajetória da economia globalizada na nova sociedade de conhecimento". Realmente a nossa educação não acompanhou o passo da história. As chamadas estruturas básicas se vêem desestruturadas, perdidas no jogo de empurra entre a Federação -aliás, muito pouco federativa-, os Estados e os municípios. As ocorrências do dia-a-dia colidem com as estatísticas produzidas ou fraudadas pela contabilidade fantasiosa que multiplica o ingresso do aluno na escola, sem levar em conta as altas taxas de evasão escolar, repetência, abandono, mortalidade e conclusão desqualificada. A desqualificação não é nada mais, nada menos do que a proscrição da qualidade, como se ela pudesse ser dispensada, ou ignorada como artigo de primeira necessidade. A qualidade é o dever ético-social da educação.

Nesse quadro adverso fizemos uma pequena pausa para reverenciar os alunos familiarmente desamparados. Tudo bem. As famílias devem fazer a sua parte, mas isso não desobriga o Estado de fazer a sua. Avaliações e acompanhamentos, precários e conflitantes entre si, jamais melhoram a situação. Só terceirizam responsabilidades e interesses.

As universidades, sobretudo públicas, parecem abandonadas ou entregues aos riscos dos terrenos baldios. A universidade já foi universidade da consciência e, conforme os ditames da época, encarnou os grandes ideais da humanidade. Foi em seguida a universidade do trabalho, e quase se transformou numa escola técnica, destinada a atender às estritas demandas do mercado. Mais recentemente, quando se preparava para ser também uma entidade cidadã e propositiva, foi seqüestrada ou entregue às baratas.

Francamente, no caso específico, não sei o que é pior: se o seqüestro ou a entrega às baratas. é natural, portanto, que professores salarialmente aviltados, alunos desencantados, funcionários marginalizados estejam inconformados. Tudo isso em meio a instalações e equipamentos em geral estragados, laboratórios e bibliotecas inviáveis. Daí os efeitos perversos do sistema revelados, por exemplo, nos "diplomas de aluguel", expressão tão bem cunhada, aqui na Folha, por Gilberto Dimenstein, a propósito das avessas faculdades de direito. Fenômeno, como ele próprio alerta, que se estende a outras áreas profissionais.

O Estado necessita se convencer de que cabe priorizar a educação, numa escala sensata de investimentos públicos. Ou seja, nem perdulária, nem mesquinha. Em vez de investir no marketing, conviria canalizar esses recursos para empreendimentos educacionais. O marketing vem a ser a produção de verdades falsas, e o marqueteiro o subproduto do puro capital financeiro. O marqueteiro não é apenas uma individualidade reclusa, porém um estado de espírito que, contaminado, contamina com freqüência preocupante os verdadeiros gestores públicos. O ensino, ao contrário do comércio, vive de não se expor, de saber e ensinar quase silenciosamente. Mas essa é outra história, e fica para outra vez. Agora é a hora e a vez da educação.

 * Eduardo Portella, 71, escritor e professor emérito da UFRJ, é presidente do Comitê Caminhos do Pensamento, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo), diretor-geral-adjunto da Unesco (1988-1993) e presidente da Conferência Geral da Unesco (1997-1999).
 

Fonte: Folha de S.Paulo - 16/08/2004.


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