A educação como negócio
 

EUA querem enquadrar o ensino como serviço dentro das normas da Organização  Mundial  do  Comércio  e  cobram  apoio  de  países  membros  

O que você acharia se pudesse escolher entre cursos de nível superior nacionais e importados da mesma maneira como se estivesse trocando de eletrodoméstico? Hoje, isso ainda não é possível. Mas poderá vir a ser, caso uma discussão no cenário mundial se concretize em regulamentações de comércio exterior. "O discurso da banalização do ensino superior pode ser um blefe porque sempre envolve interesses. O ensino não pode ser banalizado, ele não é um produto qualquer, como um parafuso", sentencia a educadora Nilda Teves. Deslocado desta forma, o alerta soa óbvio demais. Por isso, cabe aqui uma contextualização: o ensino superior poderá, sim, se equiparar a um parafuso, pelo menos no plano dos negócios, caso prevaleça a vontade dos Estados Unidos, da Nova Zelândia e Austrália. Estes três países, interessados no crescimento de escolas particulares na educação de nações em desenvolvimento, solicitaram a inclusão do ensino superior entre os 12 serviços comerciais inseridos no Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (Gats), da Organização Mundial do Comércio (OMC), "com o menor número possível de restrições aos fornecedores".

O Gats reconhece quatro formas de oferta de serviços educacionais como livre comércio:

• Fornecimento além de fronteiras, que prevê a atuação das instituições de ensino em outros países que não os de origem;

• Ensino no exterior, para alunos estrangeiros que aderem a programas de intercâmbio;

• Estabelecimento de uma presença comercial, que implica na abertura de um campus no exterior ou na fusão com outras escolas;

• Oferta de especialistas para cursos especiais, palestras ou equipes de pesquisas.

A intenção é de que o ensino superior entre na roda do comércio mundial como um produto qualquer, riscando o principal do texto da Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século XXI, aprovada durante a Conferência Mundial de Ensino Superior, em 1998, que diz que a educação superior é um serviço público. A previsão é de que este mercado se amplie de forma acelerada nos próximos anos, especialmente se forem levadas em conta as possibilidades do ensino a distância, da universidade virtual e dos cursos abertos. Aqui no Brasil, mudança tão radical no conceito de ensino esvaziaria a função reguladora do Ministério da Educação (MEC), prevalecendo as regras internacionais de transações comerciais. Neste caso, a pasta ficaria impedida de impor regras e controles de qualidade aos cursos oferecidos e, o mais grave, de implementar projetos educacionais. Isso porque medidas restritivas ou de direcionamento político representariam um desrespeito às regras do mercado internacional, abrindo espaço a ações contestatórias por outros países na OMC. A educação superior estaria, portanto, enquadrada definitivamente na lei da oferta e da procura.

Áreas de interesse

As discussões para tanto começaram na IV Reunião Ministerial da OMC, realizada em Doha, no Catar, em novembro de 2001. Naquela oportunidade, foram apresentadas as propostas sobre as normas que deveriam ser mantidas ou aplicadas em todos os campos de negócios para a liberalização do comércio internacional. Pelas regras deste fórum, cada país participante apresenta a outros demandas de abertura de mercado, segundo áreas de interesse. O Brasil elencou as suas, recebendo outras em troca, como a de abertura do setor de ensino superior. "Vamos supor que isso venha a ocorrer. Neste caso, imagino uma concorrência muito grande entre cursos de MBA (Master in Business Administration), tanto entre instituições públicas quanto privadas. Por se tratar de um segmento bastante promissor e rentável, os MBAs deverão ser o principal foco de instituições que possam se beneficiar desta possível liberalização", prevê Sérgio Gil Marques dos Santos, professor de Relações Exteriores das Faculdades Tancredo Neves, em São Paulo. Recentemente, uma escola de São Paulo que ofereceu 25 vagas para seu curso de MBA de 15 meses, no valor de US$ 38,5 mil, revelou ter recebido fichas de inscrição de 900 interessados, refletindo a procura por cursos de especialização.

Para ele, não está claro como as escolas estrangeiras irão se estabelecer no país. Fora o fato do MEC ficar de mãos atadas, o professor se pergunta como será o recrutamento de professores. "A  preferência seria por profissionais estabelecidos no país ou de mestres trazidos do exterior pelas próprias escolas?" Durante o 4o Fórum Nacional: Ensino Superior Particular Brasileiro, realizado em outubro do ano passado, em São Paulo, Galvão Flôres Jr., da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e assessor da OMC, disse que "a educação não é produto nem serviço". Segundo ele, "é necessário um movimento unificado para estudar a questão da liberalização, que não impõe restrição aos alunos e à circulação internacional de professores". Flôres Jr. disse ainda aos mantenedores e gestores que compareceram ao avento que todos precisam se preparar para a concorrência, sugerindo que a qualidade deverá ser a maior arma.

"Inerente à cultura"

Vale lembrar que a posição dos países que demonstram maior interesse na proposta parece ser a de buscar a abertura de mercados, mas resguardando seus próprios interesses. Esta posição pode ser observada com clareza numa declaração de Pierre Lamy, comissário para comércio e serviços da União Européia (UE): "Não estamos exigindo a privatização ou a desregulamentação generalizada na área da UE. Na verdade, em áreas dependentes do apoio do Estado, como a Energia, Serviços Postais, Educação, Cultura e Saúde, buscamos a preservação de nossas prerrogativas de legislação, nossa identidade cultural e social e nossos elevados padrões de segurança e proteção ao consumidor. Ao mesmo tempo, buscamos acesso justo e negociado para nossos provedores de serviços nestes setores em terceiros países. Não há contradições neste ponto." Para Édson Franco, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes) e reitor da Universidade da Amazônia, "a educação é algo inerente à cultura de uma nação e não deveria ser objeto de globalização". Embora veja a globalização como inexorável, o reitor entende que há limites a serem observados. "Creio no intercâmbio de experiências. Mas, pura e simplesmente, imaginar concorrência de outras escolas de outros países não parece o mais adequado." Franco lembra que o brasileiro tende a aceitar com mais rapidez o que é feito lá fora do que aqui no Brasil.

Durante seminário promovido pelo Projeto Columbus (criado pela Conferência de Reitores Europeus – CRE e por um grupo de universidades latino-americanas há 16 anos), em Lima, Peru, também no ano passado, aproximadamente 60 reitores latino-americanos e europeus presentes se mostraram contrários à mercantilização do ensino superior. Na ocasião, uma das poucas de caráter global desde que foram lançadas as propostas na OMC, Jane Knight, professora da Universidade do Canadá e especialista em internacionalização e educação superior, chamou a atenção para uma eventual proliferação de cursos a distância na hipótese de prevalecerem as demandas estudadas na OMC.

Desregulamentação

Os cursos a distância são uma das principais preocupações de educadores. Respeitada a lógica do "com o menor número possível de restrições aos fornecedores", as escolas estrangeiras poderiam simplesmente oferecer seus "produtos", independentemente de qualquer análise do conteúdo do curso. Hoje, os cursos de graduação a distância só podem ser ministrados com autorização do MEC, e são poucas as escolas legalmente credenciadas. O ministério conta com uma legislação específica para este modelo de aprendizado, disponível no site da Secretaria de Educação Superior (www.mec.gov.br/sesu), mas ela perderia efeito no caso das instituições estrangeiras.

"Quem vai se responsabilizar por esta educação aberta? A iniciativa privada é uma opção e o Estado, uma obrigação. A grande questão é saber quem irá gerenciar este modelo, que até poderá reforçar as desigualdades regionais. É um assunto que deve ser tratado com muito cuidado", adverte Nilda Teves. No relatório Geografia da Educação Brasileira, recentemente divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), está escrito que "apesar da redução da participação da população em idade de freqüentar os níveis de ensino básico e superior, as regiões e unidades da Federação tendem a apresentar grandes diferenças em relação à demanda por vagas na escola.

Nem sempre haverá diminuição, em números absolutos, da população destes grupos etários, o que exigirá estratégias diferenciadas no que diz respeito às políticas educacionais". A projeção reforça o que diz Nilda Teves, ou seja, o país precisará de ações regionais nos próximos anos, de acordo com a oferta de cursos. O excesso de cursos já prejudica o setor, provocando a concorrência entre escolas e influenciando na escolha de muitos estudantes que acabam optando pelos de mensalidades mais baixas, em troca, muitas vezes, de um ensino de boa qualidade. Um dado: de 1997 a 2001, a disputa nas instituições particulares caiu de 2,6 inscrições para 1,8 inscrição por vaga, segundo a pesquisa do Inep.

Data-limite

Além das propostas em andamento na OMC, já existe um cronograma a ser observado. Até 31 de março de 2003, espera-se que os países interessados já tenham agendado reuniões e seminários para o debate da questão. Por sua vez, os países demandados deverão se posicionar até esta data – o Brasil ainda não definiu sua posição. "A sensação é de que deveremos postergar as discussões, fazendo a mesma coisa que outros países em desenvolvimento convocados para abrir seus mercados: barganhar leis de protecionismo agrícola mais brandas em troca de qualquer concordância", presume o professor Marques dos Santos. Caso não seja alcançada a base para um amplo acordo internacional, uma nova rodada de negociações deverá ser promovida antes de janeiro de 2005, para quando se espera a conclusão de um tratado. Nesse meio tempo, a maioria dos educadores e profissionais atentos à questão considera  que será essencial um debate mais intenso. Guardadas as devidas proporções, ele deverá ganhar na mídia o mesmo espaço ocupado hoje pela polêmica em torno da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Uma das oportunidades será a Paris+5, prevista para julho, com organização da Unesco, em que instituições de todo o mundo revisarão as propostas lançadas na Conferência Mundial de Ensino Superior.

 

 

Fonte: Revista Ensino Superior, Edição 54 - Leandro Rodrigues .


 

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