Empreguismo e trambicagens
 



A Câmara anuncia demissão de 1 200 funcionários e diz que é para cortar excesso.
(...) há uma teia de bandalheiras

Depois de se tornar palco de mensaleiros e sanguessugas, a Câmara dos Deputados tem feito um esforço para recauchutar sua imagem diante da opinião pública. Recentemente, aprovou o fim do voto secreto, uma medida que, na hora da cassação do mandato de parlamentares enrolados, poderá ajudar a evitar a corrente de impunidade que se viu no caso do mensalão. Na semana passada, em mais uma iniciativa simpática aos olhos dos eleitores, o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, anunciou que vai cortar pela metade o número de ocupantes dos chamados "cargos de natureza especial", apelidados pela burocracia de CNEs. Atualmente, existem 2 365 funcionários nessa categoria, recebendo salários que variam de 1 500 a 8 200 reais mensais. Até o dia da eleição, em 1º de outubro, 1 163 serão demitidos, proporcionando uma economia anual de 47 milhões de reais para a Câmara. O anúncio merece aplausos, mas, mesmo com a demissão de quase 1 200 funcionários, a Câmara dos Deputados brasileira permanecerá na vexatória condição de ser um dos parlamentos mais inchados das democracias modernas.

No fim da década de 50, a Câmara dos Deputados tinha um funcionário para cada deputado. Esse número só tem crescido desde então, mas, depois de 1984, quando o país começa a voltar ao regime democrático, deu-se um salto estratosférico. Naquele ano, a Câmara tinha nove funcionários por deputado. Hoje, a relação disparou para 32 por deputado. No México, com sua economia de porte semelhante ao da brasileira, há seis funcionários por deputado. Na Índia, com sua imensa população de 1 bilhão de pessoas, há 5,5 funcionários por deputado (veja quadro). Um combustível para a explosão do empreguismo na Câmara foi justamente a criação dos tais "cargos de natureza especial", em 1992. Originalmente, esses cargos seriam ocupados por técnicos, como economistas que ajudam na análise do Orçamento da União ou advogados que orientam na confecção de projetos de lei. No princípio, seriam menos de 800 funcionários, mas logo os parlamentares perceberam a brecha para montar um cabidão de empregos de apaniguados. Por isso, a lista hoje beira os 2.400 nomes.

Apesar da saudável decisão de demitir metade, a lista dos CNEs ainda é um dos segredos mais bem guardados da Câmara. No dia 26 de julho passado, o procurador da República Paulo José Rocha Júnior solicitou a lista completa à direção da Câmara. Deu um prazo de dez dias. A Câmara até hoje não forneceu os dados e, para garantir o sigilo, chegou a editar uma portaria na surdina determinando que apenas o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, teria competência para pedir a lista. Um mês atrás, respeitando a mudança de última hora, o procurador-geral refez o pedido – e, até agora, nada. Há seis semanas, VEJA também pediu a lista, cujos dados são oficialmente públicos. Até a última semana, o pedido ainda estava sob "apreciação" da cúpula da Câmara. Apesar da embromação das autoridades, VEJA teve acesso à lista completa atualizada até o dia 24 de junho passado. Lendo-se o documento, é possível entender a razão de tantos segredos e manobras para impedir a divulgação: a lista é um catálogo de bandalheiras.

Existem casos de nepotismo, desvio de função e funcionários fantasmas, envolvendo desde simples assessores até membros da alta cúpula de partidos políticos. Na lista, há pelo menos 37 dirigentes de dez partidos (veja quadro). É gente que recebe salário da Câmara, mas trabalha para sua respectiva legenda, o que é irregular. O recordista é justamente o PCdoB do presidente da Câmara, Aldo Rebelo. O PCdoB tem oito dirigentes empregados na Câmara, mas todos moram em São Paulo. Um dos membros da bancada dos comunistas-fantasma é Walter Sorrentino, secretário de organização do partido. "Apesar de morar em São Paulo, exerço todas as funções que a liderança do partido me atribui", diz. "Fantasma eu não sou. Estou bem vivo." O fato de um líder partidário efetivamente trabalhar para sua legenda, no entanto, não resolve o problema nem desfaz a irregularidade do caso. Os partidos recebem dinheiro público do fundo partidário – neste ano, serão 120 milhões de reais – exatamente para custear despesas, inclusive a remuneração de dirigentes. Pendurá-los na Câmara é trambique.

O PDT escorou cinco dirigentes, incluindo membros de sua cúpula nacional. O presidente Carlos Lupi está lotado na liderança do partido na Câmara, mas mora no Rio de Janeiro. "Minha produção é intelectual. Não pode ser medida pelo espaço físico que ocupo", diz ele, que garante ter deixado o cargo há três meses para se dedicar à sua campanha ao governo do estado. O secretário-geral, Manoel Dias, também recebe para trabalhar em Brasília, mas mora em Florianópolis, onde é candidato ao governo. Na semana passada, estava em casa, recuperando-se de uma crise no nervo ciático, e não respondeu ao pedido de entrevista de VEJA. O PTB emprega quatro dirigentes, entre eles seu secretário de comunicação, Honésio Pimenta Pedreira Ferreira, que recebe cerca de 5.000 reais mensais em Brasília, mas mora em Petrópolis, a terra do inesquecível ex-deputado Roberto Jefferson, que denunciou o mensalão – e, indefeso diante dos encantos do nepotismo, presenteou sua irmã, Rosane Monteiro Francisco Zappala, com um carguinho de natureza especial.

A velha chaga do nepotismo, é claro, também está espalhada pela lista dos cargos de natureza especial. VEJA identificou pelo menos vinte casos de parlamentares e ex-parlamentares que empregam mulher, filhos, irmãos e primos. Um dos casos envolve o senador José Jorge, do PFL de Pernambuco, candidato a vice-presidente na chapa do tucano Geraldo Alckmin. Até maio passado, sua mulher, a médica Maria do Socorro Guimarães de Vasconcelos Lima, constava da lista. Estava lotada na 1ª Vice-Presidência da Câmara, ocupada pelo correligionário José Thomaz Nonô, do PFL de Alagoas. Ganhava 2.800 reais mensais. Maria do Socorro fez sua estréia em cargos de natureza especial em 1997 e, desde então, passou por quatro setores da Câmara. No seu último posto, os funcionários nunca a viram trabalhando. O senador garante que não lhe deu o emprego e, por coincidência, no mês em que foi escolhido vice de Alckmin, sua mulher resolveu deixar Brasília e voltar ao Recife. "Nepotismo seria se ela estivesse empregada no meu gabinete", acredita o senador. "Ela mais foi atrapalhada do que beneficiada por ser casada comigo. O pessoal olha torto."

O pessoal também olha torto para o senador Ney Suassuna, do PMDB da Paraíba, enroladíssimo no escândalo dos sanguessugas. Sua prima, Deborah Suassuna Brilhante, desfruta um cargo na liderança do partido, embora esteja presentemente ocupada com sua faculdade de direito em Mossoró, no interior do Rio Grande do Norte. Talvez a faina acadêmica a mais de 2.300 quilômetros de Brasília explique o fato de que, consultados por VEJA, os funcionários da liderança do PMDB tenham sido unânimes em informar que jamais ouviram sequer falar no nome da moça. O PMDB garante que ela já foi exonerada, mas seu nome consta da lista atualizada até 24 de junho. O senador Efraim Morais, do PFL da Paraíba, que ganhou seus minutos de fama ao presidir a CPI dos Bingos, é outro que se rendeu ao nepotismo. Na lista, aparece sua mulher, Ângela Maria, e seu filho George. Os dois trabalhavam na secretaria comandada pelo deputado sanguessuga João Caldas, do PL de Alagoas. Os dois, apesar do emprego em Brasília, têm endereço em João Pessoa, na Paraíba. Os dois jamais foram vistos no local de trabalho.

Além de parentes e dirigentes, a lista está crivada de fantasmas, digamos assim, comuns. Na semana passada, VEJA foi à Câmara tentar localizar 78 ocupantes de CNEs cujos endereços residenciais não são de Brasília. Dos 78, apenas dois eram conhecidos pelos colegas de trabalho. Há fantasmas de todos os tipos. Elizer Bernini, que deveria trabalhar na liderança do PTB em Brasília, passa seus dias úteis em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Questionado por VEJA sobre seu trabalho, foi lacônico: "Não vou poder te responder. Preciso antes consultar algumas pessoas". Getúlio Lins Marques é funcionário da liderança do PP em Brasília, mora em Salvador e não gosta de falar de sua situação funcional. "São questões de foro íntimo", arrisca. Lindolfo Canedo Machado deveria trabalhar na liderança do PFL na capital federal, mas admite que não é possível encontrá-lo na cidade. "Só vou a Brasília quando preciso", diz. E Maria Edwiges de Oliveira Souto pode ser encontrada no PTB? "Ela mora no sítio, no interior do estado", informa um familiar da funcionária localizado por VEJA em Curitiba, no Paraná.

Por que o Parlamento brasileiro chegou a esse nível de degradação? A curva do empreguismo mostra que o problema se agravou mesmo depois que, com retorno à democracia, o Congresso Nacional voltou a ganhar relevância – e, naturalmente, precisava contratar pessoal especializado, sobretudo quando enfrentou a tarefa de elaborar uma nova Constituição, em 1988. "Mas a forma como isso se deu foi errada. Temos um número de funcionários espantoso", afirma a cientista política Maria Dalva Kinzo, da Universidade de São Paulo (USP). Nem se pode alegar que isso seja uma marca de democracias periféricas ou de países mais pobres. "O inchaço não é uma particularidade de países subdesenvolvidos, mas uma particularidade do Brasil, que não consegue mexer no tamanho do Estado, não consegue fazer reforma administrativa", comenta Maria Dalva Kinzo, para completar: "E tudo isso acaba alimentando a corrupção".

 

Fonte: Rev. Veja, Diego Escosteguy, ed. 1974, 20/9/2006.


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