Vencedor do Prêmio Capes de Teses diz que estudou por teimosia 

  

Cientista lutou para abandonar o roçado e conquistou reconhecimento nacional

O Natal deste ano será bem diferente da maioria dos que Claudio Teodoro de Souza já teve. Ele é o ganhador do Grande Prêmio Capes Carl Peter von Dietrich 2006.

Sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, foi considerada a melhor do País em Ciências Biológicas.

Ela descreve a ação da proteína PGC-1alfa, fundamental no processo de secreção e na eficiência da insulina, ligada ao desenvolvimento da diabete tipo 2. Sua pesquisa se transformou na patente de um possível futuro medicamento.

Futuro era tudo o que Souza sempre quis ter. Criado no Sítio São José, na zona rural de Clementina, região de Araçatuba, noroeste do Estado, lutou contra a pobreza para mudar sua vida.

Estudou graças a uma bolsa concedida a alunos carentes e sabe mais do que ninguém a importância dessa oportunidade. Chega a se irritar quando comenta sobre a demagogia associada à educação.

“O crescimento do País depende de pessoas envolvidas com a educação que deixem de criar procedimentos eleitoreiros e comecem a investir em algo sólido”, diz. “O que deveríamos ter é um ensino médio e fundamental de altíssima qualidade.”

Souza estudou para sair de Clementina e mudar sua vida. Ganhou reconhecimento. Recebeu em novembro, das mãos do ministro da Educação, Fernando Haddad, uma bolsa de pós-doutorado no exterior e US$ 15 mil da Fundação Conrado Wessel.

Foi a primeira visita de Cafu (como é conhecido pelos amigos) a Brasília, um dos muitos locais que nunca sonhou poder conhecer. “Hoje estou vendo a resposta, pois estou aqui por teimosia.”

Metade dos seus 34 anos passou no sítio. O oitavo de uma família com 11 filhos cresceu roçando milho, arroz e café - a única produção que rendia algum dinheiro. Em suas mãos é possível ver as marcas do contato diário com a enxada.

Por repetidas vezes, após um dia de trabalho pesado com os pais, José Teodoro de Souza e Rita Jacinta de Brito, quase analfabetos, baianos de Caculé, cidade na região de Vitória da Conquista, não tinham nada além de mandioca para dar aos filhos.

Pesada também era a rotina de quem queria estudar. Ônibus escolar, só quando tinha combustível ou não chovia.

Nos outros dias, Souza e os dez irmãos acordavam às 5 horas, com a ajuda da mãe, para percorrer a pé os 6,5 quilômetros até a escola. Saíam pela estrada de terra ainda no escuro.

O sol só ia nascer no meio do caminho. “Gostava muito de estudar, mas gostava mais ainda porque saía do sítio e ia ver gente diferente.”

Até os 14 anos, a televisão mais próxima estava a um quilômetro de casa. Energia elétrica só em 1986, quando a safra de café se transformou num Fusca 1974 e eles puxaram a rede de eletricidade. Até então, luz só de lamparina.

Nessa época, ele estava convencido: não queria aquela vida. “O trabalho na roça, de sol a sol, é muito duro, acaba com a pessoa. Não tinha como gostar de uma vida como aquela.”

Na primeira oportunidade tentou mudá-la. Em 1989, terminado o 2º grau na escola estadual, foi trabalhar na usina de álcool da cidade. O emprego durou o período da safra, seis meses.

Souza se define naquela época como um “bicho do mato” e alguém que não sabia de nada, “mas tinha muita vontade de mudar as coisas”.

Bolso vazio

Foi para a cidade vizinha de Birigüi, com pouco mais de 100 mil habitantes, morar com uma das quatro irmãs mais velhas e trabalhar em fábricas de calçados, de onde foi dispensado duas vezes.

Com 20 anos, vendo amigos que estudavam em melhores condições, surgiu a vontade de estudar. Apaixonado por esportes, queria prestar vestibular para Educação Física. O problema é que não tinha dinheiro e estava desempregado. 

A solução foi voltar para casa. Arranjou livros usados com os colegas. No princípio, o pai foi contra. Para ele, “essa história de estudar” não daria certo.

Em 1993, de volta ao sítio, Souza via os dias passarem pela janela do quarto onde se trancava para estudar. De lá saía apenas para almoçar e dormir. Mas tanto esforço quase não dá em nada.

Chegada a época da inscrição para o vestibular da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o problema de sempre rondava a família. Como pagar a inscrição?

A resposta veio da mãe, que lhe emprestou o que podia, e do velho aparelho de som comprado com a safra de café anos antes. Souza não vendeu o aparelho, mas o que tinha de mais valioso dentro dele, um LP da banda Sepultura. “Como ninguém na cidade tinha, vendi por mais do que valia”, conta.

O disco pagou a inscrição num curso da Unesp no campus de Rio Claro, e mais nada além disso. Dito e feito. Passou em 12º lugar no vestibular, sua maior conquista até então, mas não tinha dinheiro para se manter em Rio Claro. Pior, o curso era integral, o que diminuía suas chances de arranjar um emprego.

Assim mesmo resolveu ir, sem certeza de quanto tempo agüentaria. “Um mês já era grande coisa”, conta. O destino lhe deu outra chance. Um amigo da escola em Clementina morava em Rio Claro e lhe ofereceu abrigo até se arranjar.

Assim que chegou à universidade, Souza tratou de se virar. “Procurei saber o que o Estado poderia fazer por mim, além de pagar meus estudos”, diz.

Inscreveu-se no Programa de Auxílio ao Estudante da Unesp e conseguiu uma bolsa com a qual poderia pagar o aluguel em uma república e sobreviver com o que sobrava.

Voltava para a casa dos pais nas férias, duas vezes por ano, de carona em algum caminhão. Numa dessas vezes, “acabou escurecendo” e dormiu na beira da estrada. “Olhando para trás, vejo que estudei por teimosia, pois não tinha nenhuma condição para isso.”

A ajuda do Estado não durou muito. Trabalhou à noite como garçom em um bar freqüentado por universitários. Nessa época veio sua segunda conquista: uma moto usada em estado duvidoso, àquela altura a melhor do mundo.

Arranjou tempo para trabalhar como recreador infantil nos fins de semana e assim foi driblando o destino e a falta de dinheiro até se formar, em 1997.

Já não era mais o mesmo garoto saído da roça. Apesar de gostar, não se encantara pela profissão de professor de Educação Física. Queria fazer mestrado, na própria Unesp de Rio Claro.

Assim foi. Passou 1998 se preparando para a prova e a seleção, sobrevivendo do emprego ocasional de recreador. No mestrado, feito de 1999 a 2000, com bolsa apenas no segundo ano, deu os primeiros passos para a pesquisa que mais tarde iria mais uma vez mudar sua vida.

Aconselhado por sua orientadora, Maria Alice Rostom de Mello, estudou os efeitos dos exercícios físicos em ratos obesos e diabéticos.

A pesquisa, defendida em 2001, rendeu o conselho de Maria Alice para tentar o doutorado na Unicamp. Estava indo muito mais longe do que jamais sonhara.

Procurou o imunologista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp Lício Velloso como novo orientador, mas sem garantia de que passaria pela prova e com uma situação econômica novamente ruim.

Souza fez o exame em junho de 2001 e mais uma vez foi aprovado. A bolsa de estudos veio apenas no final do ano. Como precisava de dinheiro, já era hora de se desfazer de uma das conquistas. “Comi a moto.”

A salvação veio da mesma pessoa que lhe ajudava a levantar e ir à escola, sua mãe. O pouco que tinha mandou para o filho perseguir seu sonho. Hoje é impossível para ele não se emocionar ao relembrar a ajuda incondicional de Rita.

As coisas continuaram mudando. Casou-se em 2002 com Laura Gianolla, também formada em Educação Física, com quem teve Théo, de 1 ano e meio. Sua pesquisa de doutorado foi eleita a melhor do País neste ano e rendeu um convênio com um laboratório brasileiro.

“Ele é o que esperamos que todo brasileiro possa fazer algum dia: sair de uma situação de pobreza, estudar e vencer na vida”, diz Velloso, seu orientador.

O sítio em Clementina ainda está lá, mas os pais de Souza não. Mudaram-se há três anos para Birigüi, por causa da preocupação dos filhos - seu pai está com Alzheimer e praticamente não se locomove mais.

Um a um, os irmãos deixaram a roça para tentar a vida na cidade. Alguns deles trabalham nas mesmas fábricas de calçados em que Souza foi se empregar. Rita, sua mãe, de alguma forma ainda está pronta para colocá-lo de novo de pé no caminho da escola.

Tese já rendeu patente e produziu medicamento em fase de testes

A tese vencedora do Grande Prêmio Capes de Tese Carl Peter von Dietrich é um exemplo do potencial da produção científica nacional. Após cinco anos de pesquisa, rendeu uma patente da Unicamp e atraiu a atenção do laboratório farmacêutico Aché.

Em outubro, foi fechado um contrato para desenvolver um medicamento para a diabete tipo 2. Ainda em fase preliminar de teste, o composto sintetizado por Claudio Teodoro de Souza e por seu orientador, Lício Velloso, teve resultados surpreendentes.

Os pacientes que desenvolvem esse tipo de diabete apresentam resistência à ação da insulina. E, após algum tempo, a produção da insulina pelo pâncreas também é afetada. Com isso, os níveis de glicose no sangue sobem ainda mais.

“Esses pacientes têm dois problemas básicos: a diminuição da secreção de insulina pelas células do pâncreas e a resistência das células a essa insulina”, diz Antonio Chacra, endocrinologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Essa é a grande promessa da pesquisa de Souza. Em testes com cobaias, o composto mostrou bons resultados nos dois problemas. Tem dupla ação, age na produção e na absorção de insulina pelos tecidos.

A opção hoje é recorrer ao uso de dois medicamentos de classes diferentes, um para cada problema, mas não totalmente eficazes.

O alvo da ação do futuro medicamento é uma proteína chamada PGC-1 alfa, produzida quase em todos os tecidos do corpo. Os testes feitos com ratos e camundongos diabéticos mostraram que, reduzindo-se os níveis dela no organismo, as taxas de glicose também diminuem.

Ou seja, em altas concentrações, ela pode ser a responsável pela regulação dos níveis de atuação e eficiência da insulina. O composto sintetizado na Unicamp, chamado de antisense PGC-1 alfa, age “desligando” o gene responsável pela produção da proteína.

“Quando ele entra na célula, se liga ao RNA do PGC-1 alfa impedindo a produção da proteína”, diz Velloso.

Apesar de estar em fase de testes, a expectativa de Souza e Velloso é que o medicamento chegue logo ao mercado, uma vez que o laboratório também é brasileiro. “Para o paciente brasileiro, o custo certamente será menor”, diz Velloso.

A diabete tipo 2 pode causar cegueira e afetar os rins e o sistema circulatório. Normalmente está associada a problemas como a hipertensão e a obesidade.

Para quem é obeso e tem casos de diabete na família, Chacra chama a atenção: “O principal desafio é mudar o estilo de vida, acabar com o sedentarismo e diminuir a ingestão de carboidratos”. “Procurar fazer exercícios e a dosagem de glicose no sangue anualmente.”

 

Fonte: O Estado de S. Paulo, Emilio Sant’Anna, 24/12/2006.


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