Extrativismo: entre os limites do mercado e da natureza 

 

Especialistas sugerem caminhos para o sistema extrativista vegetal, combinando cultivo comercial das espécies com inclusão socioeconômica, preservação ambiental e manutenção da cultura local

 

O sistema extrativista vegetal esbarra em algumas fragilidades, tais como o baixo retorno financeiro aos extratores, o freqüente desequilíbrio entre oferta e demanda dos produtos, e a limitada capacidade de regeneração da natureza. O desafio é combinar inclusão socioeconômica, preservação ambiental e manutenção da cultura local, sem ingenuamente perder de vista o componente “mercado”. Os caminhos sugeridos por especialistas variam do suporte governamental às famílias extratoras, passando pela adoção de certas tecnologias, e chegando ao cultivo comercial das espécies. A luta pela sustentabilidade do sistema ganhou repercussão nos anos 80 com a atuação de Chico Mendes, que permanece um marco na história do extrativismo amazônico (leia ao final da reportagem quem foi Chico Mendes).

Para Mário Augusto G. Jardim, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, essa fragilidade é relativa e cada caso deve ser analisado individualmente, sem generalizações. Ele cita o exemplo do açaizeiro, que oferece reflexos diferentes quando se trata da extração de frutos ou de palmito. No caso da fruta do açaí, segundo Jardim, “o aumento da demanda não interfere no processo, tampouco causa problemas ao meio ambiente e às populações de açaizais. A extração de frutos não tem nenhuma ação que poderíamos classificar de predatória. Ao contrário disto, a demanda apenas incentivaria a extração e valorizaria o produto, além de garantir a preservação dos açaizais em seu habitat natural”. Por outro lado, no sistema extrativista de palmito, “o aumento da demanda causa interferência nas populações de açaizais, pois causa a morte da planta na retirada do palmito”, complementa o pesquisador. Ele se mostra mais preocupado com outros fatores ligados ao processo de extração do palmito do que, propriamente, com o aumento da demanda. Como exemplo, cita a instalação de fábricas clandestinas, o baixo valor pago (hoje em torno de R$ 0,80/cabeça – pedaço do tronco que contém o palmito) por atravessadores, marreteiros e donos de fábrica, além da derrubada de palmeiras cujo diâmetro do palmito é inferior ao aceito pelo mercado.

Jardim defende a manutenção do modelo extrativista na região amazônica, mas ressalta a necessidade de mais incentivos do governo federal para a implantação de cooperativas, e formação de recursos humanos por meio de cursos e treinamentos sobre ecologia e manejo da palmeira açaí. Ele destaca a necessidade de uma ação mais efetiva dos órgãos fiscalizadores em relação à extração do palmito e, ainda, de incentivo para a implantação de fábricas comunitárias para produção de suco e palmito, o que agregaria valor aos produtos ainda nas mãos das comunidades locais.

Raimundo Cláudio Gomes Maciel, pesquisador do Departamento de Economia da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutorando em economia aplicada no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que o extrativismo de qualquer espécie vegetal é extremamente frágil diante de um aumento contínuo e consistente de sua demanda, principalmente quando se tenta transformar a cultura numa commodity. A domesticação da espécie seria, portanto, um caminho natural. Mas ele alerta: “normalmente esse processo é conduzido por grandes empreendimentos que dispõem de recursos humanos e financeiros suficientes para a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias, adequadas às reais necessidades produtivas dessas culturas emergentes. Além disso, a tecnologia desenvolvida é freqüentemente inadequada para os padrões da população extrativista tradicional, que fica à margem de todo o processo e, portanto, excluída dos potenciais benefícios desse mercado promissor”.

Para superar as limitações do extrativismo, respeitando o contexto sociocultural da população, Maciel propõe modelos de produção denominados neoextrativistas, que incorporam novas tecnologias ao extrativismo tradicional. São exemplos de neoextrativismo os Sistemas Agroflorestais (SAFs), que implicam no cultivo de espécies lenhosas perenes em conjunto com culturas agrícolas e/ou criações, e as Ilhas de Alta Produtividade (IAPs), que representam o cultivo de espécies nativas em pequenas áreas cercadas pela floresta. “O grande entrave na disseminação dessas experiências é a manutenção de arranjos institucionais que as apóiem maciçamente por um longo tempo, especialmente em relação a recursos humanos e financeiros, pois a maioria dos produtos florestais tem um período de maturação extenso desde o plantio até a estabilização da produção”, diz. E adiciona: “todo processo de inovação leva tempo para produzir os efeitos desejados e, portanto, políticas públicas efetivas devem seguir nessa direção”, ou seja, devem ser de longo prazo, assegurando recursos e pessoal para que os projetos se consolidem e se sustentem.

No artigo "Amazônia: do extrativismo ao neoextrativismo", José Fernandes do Rêgo, também da Universidade Federal do Acre, afirma que o neoextrativismo vai além do extrativismo puro, porque envolve os componentes “agro” e “florestal”, harmonizados com valores, crenças e costumes da população extrativista, respeitando as características naturais do ambiente. Desta forma, inclui os conceitos de diversificação, consórcio de espécies, imitação da estrutura da floresta e uso de técnicas desenvolvidas pela pesquisa a partir dos saberes e práticas tradicionais, do conhecimento dos ecossistemas e das condições ecológicas regionais.

Raimundo Maciel destaca experiências nesse sentido que têm obtido sucesso na região amazônica. Um exemplo são os SAFs, compostos pelas culturas do cupuaçu, castanha e pupunha (palmeira), com mais de 15 anos de implantação, numa comunidade de produtores da Vila Nova Califórnia, em Porto Velho (RO). O projeto denomina-se Reflorestamento Econômico Consorciado Adensado (Reca) e contempla, inclusive, agroindústrias para o beneficiamento dos produtos extraídos na comunidade. Outro exemplo são as IAPs implantadas em seringais da Reserva Extrativista Chico Mendes, em Xapuri (AC), que têm gerado acréscimo de renda às famílias e promovido o reflorestamento.

Outras direções

Algumas iniciativas sinalizam para outras direções, entendendo que os limites do extrativismo quanto ao mercado e à natureza, abrem espaço para outros modelos de produção agrícola (notadamente o de cultivo comercial), que ora tentam coexistir, ora tentam substituir o modelo extrativista.

Em novembro de 2004, por exemplo, a Embrapa Amazônia Oriental lançou uma cultivar de açaí de terra firme, chamada BRS Pará, visando, sobretudo, o aumento da oferta da fruta. Suas principais características são alta produtividade, precocidade no início da produção, rendimento de polpa superior e pouco variável. A árvore frutifica em baixas alturas, reduzindo os riscos de acidentes de trabalho durante a coleta. Além disso, a qualidade do produto tende a ser melhor porque, em terras firmes, a fruta não é arrastada por áreas alagadas e sujas.

A Embrapa também desenvolve pesquisas com o melhoramento genético e germinação da castanha, para a obtenção de variedades precoces e técnicas mais aprimoradas de manejo e cultivo, além da modernização dos modos de beneficiamento da produção e armazenagem.

No Instituto Agronômico de Campinas (IAC), o Programa Seringueira promove, coordena e executa pesquisas com a planta, tendo como princípio básico elevar a produtividade e a produção da seringueira no estado de São Paulo. Segundo a instituição, os objetivos das pesquisas em andamento compreendem, entre outros aspectos, a obtenção e adaptação de cultivares às diferentes condições de solo e clima, bem como o desenvolvimento de técnicas de cultivo que permitam a redução no período de imaturidade da cultura (diminuição em cerca de dois ou três anos no início da extração de látex).

Chico Mendes

Nascido em Xapuri (AC), Chico Mendes tornou-se referência mundial da luta pelo extrativismo e contra o desmatamento da Amazônia. Sindicalista e principal líder dos seringueiros nas décadas de 70 e 80, defendia a reforma agrária na região. Envolveu-se em muitos conflitos com fazendeiros e, após várias ameaças de morte, foi assassinado em dezembro de 1988, aos 44 anos, na mesma cidade em que nasceu.

Em 1985, liderou o 1o Encontro Nacional dos Seringueiros e encabeçou a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), dando força à causa. Seus ideais ganharam repercussão no Brasil e no exterior, principalmente com o surgimento da proposta de "União dos Povos da Floresta", que buscava criar reservas extrativistas que conciliariam a preservação de áreas indígenas, da própria floresta e garantiriam a reforma agrária desejada pelos seringueiros. Em 1987, Chico Mendes denunciou mundialmente a devastação da floresta amazônica e a expulsão dos seringueiros, causadas por projetos financiados por bancos internacionais, resultando na suspensão de vários desses financiamentos. Por sua atuação, recebeu vários prêmios e reconhecimentos, nacionais e internacionais, inclusive da ONU.
 

Fonte: SBPC, ComCiência, Mariana Perozzi, julho/2006.


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