Com a faca e o queijo

 

Nas democracias, o governo faz e a imprensa critica.
O governo brasileiro quer fazer e ele mesmo se auto-avaliar

A anunciada criação de um Ministério da Comunicação Social e de uma rede nacional de televisão estatal dedicada a fazer propaganda do Executivo sinaliza uma visão de mundo equivocada e, potencialmente, perigosa. A iniciativa do governo Lula tem defeitos graves. O principal é subverter a ordem posta de pé pela democracia grega sobre o papel da liberdade de expressão nas sociedades abertas. O governo pretende fazer políticas e, ao mesmo tempo, se auto-elogiar através de sua imprensa estatal. Os gregos já ensinavam que não se pode colocar a faca e o queijo nas mãos dos governantes. Um governo legítimo tem o poder de fazer guerras, usinas nucleares, pontes, programas sociais, nomear ministros, definir o comércio exterior, determinar o que as escolas devem ensinar e muito mais. Perfeito. A imprensa tem total liberdade para criticá-lo. Ponto.  

Em Atenas, no século de Péricles, o quinto antes de Cristo, esse princípio foi enunciado por diversos dos muitos sábios daquele período áureo. Ele pode ser resumido na frase: "Algumas poucas pessoas atingem o poder de fazer políticas públicas. Todos podem criticá-las". Os gregos desconheciam, por elitistas, a parte vital dessa equação: a opinião pública. Hoje em dia, nas grandes democracias, o princípio grego teria uma formulação diferente: "O governo faz, a imprensa avalia e o público julga". É cegueira acreditar que o governo possa fazer, avaliar e julgar os próprios atos. É mistificação vender a idéia de que o governo fará e o público julgará – sem os olhos e os ouvidos da imprensa.  

Com seu ministério do jornalismo e sua rede estatal de televisão, o Executivo brasileiro segue o rastro de governos que se deram muito mal, acabaram em tragédia, bancarrota, humilhação pela história ou simplesmente no anacronismo e na irrelevância. Os exemplos são os de sempre. São ditadores que inflaram suas máquinas de propaganda governamental ao tempo em que reprimiam, inviabilizavam ou simplesmente destruíam a imprensa livre. Eles foram Adolf Hitler, Josef Stalin e Mao Tsé-tung. Exemplares liberticidas prosperam nos trópicos. Casos de Fidel Castro e de Hugo Chávez.  

França e Itália têm redes de rádio e televisão estatais não-educativas. Elas competem com as redes privadas e oferecem uma programação eclética, com shows, eventos esportivos e notícias. Na Itália, elas são loteadas pelos partidos, mais ou menos como na partilha dos ministérios. Seguem levemente a linha partidária. Nenhuma obedece caninamente ao governo.  

Na França funcionam mais como cabides de emprego para jornalistas. A Inglaterra é exceção. Tem a British Broadcasting Corporation (BBC), emissora estatal mas não do governo. Ela tem seu próprio orçamento (pago direta e voluntariamente pelos cidadãos ingleses). A BBC é subordinada a uma agência composta de doze pessoas indicadas pelo governo com a aprovação do Parlamento. A cada ano, duas delas saem e entram outras duas, de modo que um determinado governante precisaria de seis anos para colocar apenas indicados seus na agência que manda na BBC. Os membros dessa agência – que não podem ser demitidos pelo governo – nomeiam o diretor da BBC. Isso garante liberdade de ação.  

No passado, a BBC fazia apenas propaganda das políticas do governo. Até o grande Winston Churchill foi censurado pela BBC no começo dos anos 30, quando, fora do governo e do Parlamento, pregava a guerra contra Hitler. O governo inglês ainda preferia a política do apaziguamento. Em 1934, depois de quase dois anos de censura, Churchill conseguiu furar o bloqueio. Ele se vingou dizendo no ar que imaginava como o diretor da BBC devia estar suando frio, com as mãos nos interruptores, com medo de que ele dissesse "alguma coisa desagradável contra Hitler". Arrematou com humor: "Fosse pelo governo e sua BBC, São Jorge (santo padroeiro da Inglaterra) não teria matado o dragão, mas o convidado para uma conferência de paz".  

Com todos os amplos recursos informativos que já possui, como a Radiobrás, o governo brasileiro precisa de uma estrutura nova de 250 milhões de reais para fazer propaganda de si mesmo? Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, incentivador da idéia, acha que sim. "O presidente decidiu que vamos ter uma rede. Para mim, está claro que será uma rede pública, que tratará com destaque questões que canais privados não tratam, como fazem as principais TVs públicas do mundo, da RAI à BBC", diz Dulci.  

Jorge da Cunha Lima, presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), discorda: "É mais uma tentativa de aparelhamento do estado bem de acordo com as idéias da ala radical do governo petista". Bons são os governos que garantem o bom funcionamento da sociedade, e não aqueles que querem substituí-la – seja na economia, seja na imprensa. O exemplo a evitar existe e é clássico – 1984, de George Orwell. Está lá, todo pimpão, o Ministro da Verdade, encarregado de fazer com que tudo que não esteja de acordo com o governo seja suprimido como mentira.

 

Fonte: Rev. Veja, Marcelo Marthe, ed. 2000, 21/3/2007.


O debate sobre a TV do Executivo
 

Editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 409, exibido em 20/3/2007.  

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Entre as diversas novelas que estão no ar, uma talvez não dê muito ibope, mas é de suma importância para a sociedade brasileira. Exatamente há uma semana, o Estado de S.Paulo anunciava em manchete o anteprojeto apresentado pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, para a criação da Rede Nacional de TV Pública, para divulgar as ações do Executivo.  

Em nossa última edição (13/3), no mesmo dia da divulgação do anteprojeto, lembramos que alguma coisa estava errada a partir do próprio nome: se a rede será pública ela não poderia estar a serviço do Executivo. Prometemos voltar ao assunto. 

Aqui estamos. Com vantagem de que, no intervalo, o assunto rendeu – o que é bom sinal: sinal de que a imprensa não está engavetando os debates.  

O teor e a qualidade da televisão são estratégicos. Quando se fala em desenvolvimento não se pode esquecer a difusão massificada e diversificada de conhecimentos. E, neste caso, tivemos um avanço didático: doravante será difícil que alguém volte a confundir o que é público e o que é estatal. 

Desde a sua fundação, há mais de dez anos, este Observatório da Imprensa tem se preocupado e se ocupado com a questão da rede pública de radiodifusão. Hoje damos mais um passo e, quem sabe, tiramos esta novela das ambigüidades com que começou.

 ***

Em nome da sociedade
 

O programa contou com a presença do ministro Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência da República, que esclareceu o que será a nova TV, qual sua função e que modelos de postura adotará.  

Dulci disse que o debate da TV pública já existe há vários anos e que o atual governo só deu prosseguimento a ele. O projeto surgiu de um pedido do presidente Lula ao ministro das Comunicações, Hélio Costa, para que examinasse as possibilidades da criação de uma nova TV pública. O que está havendo agora é uma tentativa do Estado de tornar a atual rede pública que já existe, e cobre apenas 30% do território brasileiro, em uma TV de âmbito nacional.  

O ministro deixou claro que a intenção é fundar uma TV sem interesses comerciais, para fazer avançar a cultura do país. Mas sem ser partidarista ou mero divulgador do Executivo – assim, ela perderia sua credibilidade.  

Luiz Dulci criticou os juízos antecipados sobre o que será a TV. Esclareceu que o que existe até agora é apenas um projeto, sem maiores detalhamentos. As decisões só terão tomadas depois de ouvidos os diversos ministérios envolvidos. E lembrou que o projeto também está livre para ser debatido na sociedade.  

Outra afirmação de Dulci foi que não havia condições de implantar a TV sem os recursos públicos, até porque a intenção não é competir por publicidade. E justificou a criação da nova rede dizendo que o Estado tem um papel democrático importante no conjunto da sociedade, cujos interesses deve defender. A nova TV pública é um dos instrumentos para isso. (Karla Candeia)

 

Fonte: Observatório da Imprensa, Alberto Dines – ed.. chefe, 21/3/2007.

 


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