Finanças públicas anti-sociais
Marcio Pochmann*

 

No Brasil de hoje, há sinais cada vez mais claros de retrocessos no compromisso das finanças públicas para com o bem estar do conjunto da população. Parcela significativa do fundo público tem sido drenada para o financiamento do patrimônio dos ricos.
 

Ao longo do século 20, algumas reformas foram capazes de alterar uma das vertentes selvagens que se sobressaem do modo de produção capitalista. A reforma tributária embalada pelo princípio da justiça fiscal terminou por onerar progressivamente os ricos, assim como constituiu a base dos fundos públicos voltados para o desenvolvimento do Estado de bem estar social.

Dessa forma foi possível constituir a universalidade do acesso ao ensino público e gratuito, bem como o avanço da saúde pública, juntamente com a ampliação considerável dos serviços públicos de transporte, previdência e assistência social, habitação de interesse coletivo, entre outros. A elevação do padrão de vida do conjunto da população teve na ação das políticas públicas um de seus principais esteios de sustentação.

Essa foi a experiência dos países desenvolvidos que ousaram realizar reformas civilizadoras do capitalismo. O Brasil, mesmo sem ter realizado as reformas clássicas do capitalismo contemporâneo, registrou alguns avanços nas políticas públicas favoráveis à elevação do padrão de vida. Mas isso não ocorreu para todos. As estreitas bases fiscais sempre foram um dos limites do financiamento de políticas universais no país, uma vez que os ricos praticamente não pagam impostos, que têm nos pobres a base regressiva da arrecadação tributária.

No Brasil de hoje, contudo, há sinais cada vez mais claros de retrocessos no compromisso das finanças públicas para com o bem estar do conjunto da população. Por conta do atual ciclo de financeirização de riqueza, parcela significativa do fundo público tem sido drenada para o financiamento do patrimônio dos ricos.

Trata-se, em síntese, da gestão das finanças públicas contra o bem estar do povo, ou simplesmente das finanças anti-sociais. A razão disso está no padrão de ajuste das finanças públicas que visa valoriza o atendimento dos compromissos com o pagamento de juros e encargos do endividamento estatal. Para isso, buscou-se, durante o plano real a ampliação das receitas governamentais. A privatização do setor produtivo estatal serviu para a transferência às famílias financeirizadas o dote equivalente a 25% do Produto Interno Bruto (PIB) anual do país, enquanto a elevação da carga tributária bruta possibilitou aumentar a receita governamental em mais 10% pontos percentuais do PIB.

Mesmo que essas ações governamentais fossem importantes para elevar a arrecadação do Estado - em meio ao baixo crescimento econômico -, elas se mostraram insuficientes para atender o total dos gastos com juros e encargos financeiros. É bom lembrar que o Ministério da Fazenda poderia mudar de nome tranqüilamente de Ministério dos Juros, pois representa a segunda maior despesa pública nacional. Por conta disso, diversas medidas foram adotadas com o objetivo de cortar o gasto público, especialmente nas áreas sociais, como forma de aumentar os recursos a serem transferidos ao pagamento dos juros.

Pode-se constatar, por exemplo, que durante o governo de FHC houve distintas situações na evolução das despesas governamentais. Entre 1995 e 2002, as despesas sociais do governo federal decresceram 13,8% como proporção do total do gasto público, enquanto o dispêndio financeiro aumentou 13,4% como proporção da despesa total.

Com recursos relativamente menores para atender a área social, cresceu a dívida social, especialmente aquela vinculada ao financiamento do custo de reprodução das classes trabalhadoras no país. Ou seja, faltam recursos para educação, saúde, assistência, previdência social, entre outros gastos fundamentais ao bem estar do povo. 

Em contrapartida, uma minoria de ricos não tem o que reclamar. Diante do enorme esforço realizado pelo governo federal no interior das finanças públicas tem sido possível atender parcialmente o pagamento dos encargos do endividamento público no Brasil.

A proposta de déficit público nominal zero consiste em mais uma medida de corte explícito do gasto público, sobretudo social. Há vários caminhos para o país alcançar o equilíbrio nas finanças públicas. O rápido crescimento econômico é uma alternativa consistente, uma vez que a arrecadação de impostos cresce num ritmo superior à própria elevação do PIB. Também o corte drástico dos juros permitiria ainda mais rapidamente a redução dos gastos com juros, uma vez que 1 ponto percentual da taxa de juros do país equivale a uma despesa anual equivalente a 10 bilhões de reais. Para isso, contudo, o governo precisa enfrentar os detentores da riqueza financeirizada.

Talvez por isso, ganhe destaque a proposta do déficit nominal zero que visa cortar gasto público, especialmente com a desvinculação das receitas sociais. Esse parece ser o caminho de menor resistência política, pois se refere, mais uma vez, à socialização do prejuízo entre os pobres, com prosseguimento da prática das finanças anti-sociais.
 

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.  

Fonte: Ag. Carta Maior, 19/07/2005.


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