A galinha, a filosofia e a evolução
Sergio Danilo Pena*

 

 


Colunista resgata a origem do dilema de quem surgiu primeiro
e o relê sob um prisma darwiniano


Uma das palavras mais preciosas para quem milita no mercado das idéias e no campo aberto do conhecimento é “academia”. As academias são entidades de elite que reúnem os maiores expoentes de um campo de atividade intelectual científica ou artística, eleitos pelos seus pares. Também falamos em "comunidade acadêmica" para nos referir às universidades e ao conjunto de professores e pesquisadores que se dedicam à produção e propagação do saber. Assim, vale a pena discutir as origens da palavra, que remontam à Grécia antiga.

A Academia (Akademeia) era um arvoredo localizado na estrada que saía do portão ocidental de Atenas, às margens do rio Cefiso. Em priscas e mitológicas eras, essas terras haviam pertencido a um cidadão chamado Academos – daí o nome do local. Academos ajudou os gêmeos Castor e Pólux, filhos de Zeus com Leda, a libertar a belíssima Helena (a mesma que mais tarde seria o pivô da guerra de Tróia), que tinha sido raptada por Teseu e levada para Ática.

Em recompensa por sua ajuda, Zeus deu a Academos o direito de falar o que bem quisesse dentro de sua propriedade sem ser castigado, mesmo que isso pudesse ofender os próprios deuses. Inspirados por essa encantadora lenda – a primeira alegoria da liberdade de expressão na história ocidental –, os cidadãos da Atenas de Péricles costumavam reunir-se na Akademeia para debater livremente assuntos importantes da época.

Lá, Platão (427-347 a.C.) fundou a sua escola de filosofia, que adotou o nome do parque. A instituição, que continuou a funcionar no mesmo lugar por 900 anos após a morte de Platão, tornou-se o berço do racionalismo, do pensamento científico e de alguns dos nossos mais preciosos conceitos sobre justiça e liberdade.

Pois bem: um belo dia, Platão, reunido com seus alunos na Academia, resolveu definir o ser humano como “um bípede implume”. Imediatamente, o cínico Diógenes (~412-323 a.C.), que tinha um penchant para o dramático, pegou uma galinha, removeu suas penas e a apresentou à turma, dizendo com ironia: “eis o homem de Platão”.

A partir desse momento os galináceos se integraram irreversivelmente à filosofia ocidental, tornando-se um importante protagonista do seu desenvolvimento.

Aristóteles, a galinha e o ovo

O filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, foi o primeiro a registrar sua perplexidade ante à dúvida do que veio primeiro, a galinha ou o ovo. Ele escreveu em sua Historia Animalum: “Se existiu um primeiro homem, ele deve ter nascido sem pai nem mãe – o que é repugnante para a natureza. Pois não pode ter havido um primeiro ovo para dar origem aos pássaros, nem pode ter havido um primeiro pássaro que deu origem aos ovos, pois um pássaro vem de um ovo”.

A partir daí a imagem da galinha e do ovo tornou-se a referência padrão em filosofia e mesmo no linguajar do dia-a-dia para se referir à futilidade de se tentar resolver dilemas de causas e conseqüências circulares. Esses dilemas envolvem auto-referência e se relacionam com o conceito de “alça estranha” (strange loop).

Uma alça estranha emerge quando, ao nos movermos para baixo ou para cima em um sistema hierárquico, nos encontramos de volta ao lugar no qual começamos (ver figura). Esse conceito foi proposto e magistralmente discutido pelo informata americano Douglas Hofstadter (1945 -) no seu maravilhoso livro Gödel, Escher, Bach (que ganhou o Prêmio Pulitzer em 1980) e, mais recentemente, no livro de 2007 Eu sou uma alça estranha (no original, I am a strange loop).

Um exemplo de uma alça estranha é a rede informacional criada pelo DNA e pelas enzimas. O DNA contém o código para a síntese das enzimas, que, por sua vez, são indispensáveis para a replicação e transcrição do DNA.

Deixando intelectualismos de lado, devemos nos lembrar que o problema da galinha e do ovo foi colocado por Aristóteles em uma perspectiva fundamentalmente evolucionária, da origem de uma espécie. Para nós, que vivemos em uma época pós-darwiniana, não há dilema algum.

Antes de se tornar uma galinha (Gallus gallus), o animal tem necessariamente de ter sido um embrião de galinha, com genoma de galinha, que forçosamente deve ter se desenvolvido em um ovo que, contendo um embrião de galinha era, ipso facto, um ovo de galinha. Q.E.D.

Obviamente existe nesse raciocínio a premissa fundamental de que o ovo deve ser definido pelo embrião mutante contido nele e não pelo animal que o pôs, que neste caso teria de ser um antecessor evolucionário de Gallus gallus.

 

* Sergio Danilo Pena Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia Universidade Federal de Minas Gerais.
 

Original completo: Ciência Hoje  <http://cienciahoje.uol.com.br/127993>

 

Fonte: Ciência Hoje, Coluna Deriva Genética, 12/9/2008.

 


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