Homenagem ao professor Octavio Ianni
Samira Feldman Marzochi*

 

Octavio Ianni era irreverente sem jamais perder a lucidez. Tinha um grande senso de responsabilidade e relevância. Atentando sempre para as conexões, virava idéias de cabeça para baixo, fazia malabarismos, bagunçava e reorganizava o mundo. Octavio Ianni faleceu no dia 4 de abril último, em S. Paulo”.

Diante da enorme importância que o professor Octavio Ianni teve para a sociologia e para a cultura, não poderemos registrar, aqui, mais que palavras modestas. Na verdade, nosso professor surpreendeu mais uma vez. Embora convivesse com um grave problema de saúde, não se deixava abater, movido por uma grande paixão pelo trabalho intelectual e acadêmico.

Foi, sem dúvida, um dos professores mais dedicados, um dos orientadores mais competentes e um dos sociólogos mais produtivos, sem que isso comprometesse a qualidade e a beleza de suas aulas.

Além dos clássicos da sociologia, dominava um vasto conhecimento sobre a filosofia, a história, as várias correntes das ciências sociais, passeava pela literatura, pelas artes e imprimia a seus discursos uma perspectiva invariavelmente universalista.

Era sensível, sobretudo, às questões relacionadas à desigualdade social, à dominação do capital, aos abusos de poder, mas não se deixava fechar numa visão restrita da realidade, muito menos parar no tempo. Assimilava com precisão e rigor tudo o que acontecia de novo, quando apontava problemas, limites, ou quando se empolgava, acreditando que a novidade deveria conter algum 'germe de transformação'.

Sua visão era predominantemente marxista. Mas o Marx de Octavio Ianni era o próprio Ianni: era o jovem, o velho, o filósofo, o historiador, o erudito e, principalmente, o idealista. Fazia do trabalho intelectual algo de importância revolucionária. 'Genuinamente' revolucionária.

Sempre de pé, falando pausadamente mas de modo enfático e olhando para cada aluno, lançava frases desconcertantes, inesperadas, como se dialogasse com o nosso pensamento e, ao mesmo tempo, com o mundo.

A reflexão sempre fazia sentido e era como se, ironicamente, tivesse um valor sagrado de deslindamento das 'relações, processos e estruturas' ou do 'movimento das coisas, gentes e idéias', expressões que costumava usar em seus textos.

Octavio Ianni era irreverente sem jamais perder a lucidez. Tinha um grande senso de responsabilidade e relevância. Atentando sempre para as conexões, virava idéias de cabeça para baixo, fazia malabarismos, bagunçava e reorganizava o mundo, brincava de 'pequeno deus', dava o braço a torcer a Weber, entrava e saía de gaiolas de ferro, tirava de letra sistemas e estruturas.

Era às vezes um clown em alto estilo, às vezes um monge, às vezes profeta. Interpretava criativamente autores, correntes, teorias, conceitos. Interpretava na medida certa, sem exageros, egocentrismo ou vaidade aparentes.

Entrar e sair da aula do professor Ianni, especialmente na graduação, era passar por um processo de transformação. A gente entrava depois do almoço e saída ao entardecer, as cigarras e a penumbra ajudavam a compor um cenário novo, nosso vasto mundo da Unicamp, cheirando à queimada de cana. As cigarras que uma vez o fizeram abrir um parêntese em aula para dizer que elas cantavam. Acontecia uma mágica.

Era possível pensar sociologicamente sem pensar de modo compartimentado, bitolado como na maioria das vezes. Tudo o que se referia à realidade social, inclusive a natureza, podia ser compreendido como um conjunto, compunha uma totalidade.

Do mesmo modo, seu discurso não deveria ser tomado por partes, frases isoladas. Era preciso compreender o concerto geral para não cair em interpretações injustas e pequenas do tipo 'Octavio Ianni disse que o Estado acabou' ou 'Octavio Ianni não quer que o sociólogo ajude a sociedade', entre outras afirmações de má vontade.

Daí ter sido problemática sua relação com a mídia. Embora fosse há muito um imortal das ciências sociais, aparecia bem menos do que poderia em jornais, TV e revistas de grande circulação. Até porque era um grande crítico da mídia e nunca precisou dela para se afirmar profissionalmente. Formou-se num tempo em que a academia se bastava e ele se bastava como acadêmico.

Defendia a independência da atividade intelectual a todo o custo. Independência que era, para ele, a única maneira de preservar o potencial crítico e transformador da ciência.

Por isso atribuía tanta importância à disciplina, aos fundamentos, ao método, ao trabalho ininterrupto. Abominava a mercantilização das ciências sociais e tudo o que se assemelhasse à mercantilização. Abominava a apropriação da ciência pelo poder político e a ciência como um 'trampolim' para o poder político.

Não acreditava que o mercado ou o poder institucional fossem lugares adequados à produção de idéias. Tudo o que saísse de um ou de outro seria conhecimento interessado, distorcido segundo critérios de mais dinheiro ou mais poder. Para ele, mercado e poder apenas produzem idéias que dificultam a autoconsciência da sociedade, fundamental para a sua transformação.

Por isso, também, incomodava-se tanto com o descaso governamental em relação à Universidade Pública, com a desvalorização dos professores, com a 'parceria público-privado', com a transformação da Universidade em laboratório para a grande indústria e com os alunos que não puderam encontrar na Universidade um espaço de realização profissional.

Pode-se dizer que ele era, neste aspecto, um verdadeiro militante pela Universidade Pública. A única militância a que realmente se permitiu. 

 

* Samira Feldman Marzochi é doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp e teve aulas de Octavio Ianni na graduação e mestrado. Artigo enviado pela autora ao "JC e-mail".

Fonte:JC e-mail, 7/4/2004.


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