A ilusão dos zeros
 

A idéia de zerar o déficit por lei é como o Fome Zero:
uma expressão sonora e vazia

 

Desconfie de qualquer política pública ligada à palavra zero. O Fome Zero, devaneio social de Lula, teve fim melancólico, uma antevisão do que ocorreria com o governo do PT como um todo. Também deram errado as cômicas tentativas de importar o Tolerância Zero, programa de combate à violência que fez despencar as taxas de criminalidade em Nova York. Pelo mesmo caminho seguirá a tolice de zerar a produção de armas de fogo no Brasil. "Tudo que tem zero sugere uma solução milagrosa. Isso é sempre perigoso. Os governos já tentaram salvar o Brasil umas 500 vezes com exorcismos mágicos. Não dá certo", diz o antropólogo Roberto DaMatta. Nas últimas semanas, tem circulado com alarde uma nova proposta com o sugestivo número no nome. É o "déficit nominal zero". Uma vez atingida essa meta, o Brasil entraria de vez no paraíso econômico, com juros baixos, forte crescimento, qualidade de vida, e tudo isso sem inflação. Pena que se trata de mais uma mágica.

À primeira vista, a sugestão parece ter apenas méritos. Ela visa a obrigar o governo a poupar o suficiente para pagar toda a conta de juros que deve a cada ano. Em 2005, por exemplo, União, estados e municípios precisam pagar 155 bilhões de reais de juros, mas vão economizar apenas 83 bilhões. O rombo será de 72 bilhões de reais. Se a meta já existisse, o governo teria de fazer o que estivesse a seu alcance para fechar esse buraco. Em vez de se comprometer a economizar 4,25% do PIB, o que faz atualmente, o governo cortaria gordura da máquina administrativa e faria a economia necessária – seja ela do tamanho que for – para zerar o déficit em três ou quatro anos. Por trás da idéia, está a crença de que, tão logo se obrigue o governo por lei a perseguir a meta de déficit nominal zero, o mercado financeiro teria certeza de que o corte de despesas é real, e tudo conspiraria para que os juros baixassem.

A proposta, de autoria do deputado federal Delfim Netto, do PP, recebeu muita atenção por ter sido elogiada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente teria dito que encamparia o projeto desde que o ex-ministro obtivesse apoio de empresários, políticos e formadores de opinião. Mesmo com o aceno presidencial, no entanto, a idéia não decolou. Felizmente. Embora acerte ao focar no principal problema da economia brasileira – o gasto público em excesso –, a criação de uma meta formal de déficit zero não é, na opinião dos especialistas, mais eficaz que a atual estratégia do governo de elevar o superávit primário. Bastaria manter o atual esforço fiscal, o que tem feito com relativo sucesso, para que o governo chegue inevitavelmente ao déficit zero. Ou seja, a manutenção da atual política econômica reduzirá mais rapidamente a proporção da dívida sobre o PIB – indicador de vulnerabilidade de uma nação (ver o quadro) – do que a adoção de um novo caminho.

Mas esse não é o principal problema da proposta de Delfim. Por criar uma meta formal, ela embute ameaças ocultas. A mais óbvia delas decorre do fato de que o déficit zero exige duas premissas principais: o corte de gastos do governo e a diminuição dos juros por meio de uma penada do Banco Central. Ora, como todo mortal adivinha, tão certo como dois e dois são quatro, ocorreria a derrubada artificial dos juros por decreto, mas os gastos públicos continuariam a crescer, como vêm crescendo sem interrupção há meio século. "Ao invés de diminuir os gastos, o que é politicamente complexo, o governo será tentado a tomar medidas populistas como baixar os juros e deixar a inflação disparar", explica o economista Roberto Padovani. O resultado disso seria um desastre, uma abdicação das duras conquistas recentes da sociedade brasileira. Ao impedir o Banco Central de usar os juros livremente para combater a inflação, o novo sistema, se adotado, deixaria o país à mercê de seu antigo vício inflacionário. Como diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, um pouco de inflação no Brasil tem o mesmo efeito que um gole de uísque para um alcoólatra. Começa com pouco. Não pára mais.  

"Prefiro superávit maior à meta de déficit zero", diz o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que discutiu a adoção da medida com empresários na semana passada. Palocci reconheceu que parte da proposta não serve ao país, mas acha que não se pode desprezar o que ela tem de melhor: o corte de gorduras na administração pública. Justamente o que o governo anda prometendo sob o nome de "choque de gestão". A idéia é reduzir a porcentagem das chamadas verbas vinculadas, aquelas que são obrigatoriamente repassadas para áreas sociais em uma proporção que cresce sempre mais do que a arrecadação – independentemente de produzir resultados positivos. Ou seja, mesmo que não melhore o atendimento médico-hospitalar ou aumente o número de vagas nas escolas públicas, o Ministério da Saúde e o da Educação têm direito assegurado a um naco crescente no Orçamento da União. "É um bom momento para o Congresso mostrar à sociedade que não é apenas palco de mensalão, mas também de medidas que contribuem para o crescimento do país", disse Delfim Netto.

O mérito da proposta do déficit zero fica mesmo por conta de ter trazido à tona a necessidade de, pela primeira vez na história brasileira, fazer com que o governo caiba dentro do PIB, na expressão brilhante criada por Delfim Netto. Por não conseguirem fechar suas contas no fim do ano, União, estados e municípios devem, juntos, quase 1 trilhão de reais. É tanto dinheiro que a dívida já representa metade do produto interno bruto. Ninguém se importa com isso. Quem paga somos nós. Quem gasta são eles. É hora de reverter essa perversidade, sem mágicas. Se não fosse uma condenação ao fracasso, o ideal seria exigir enganação zero por parte dos políticos e do governo.
 

Fonte: Rev. Veja, Carina Nucci, Ed. n. 1913, 13/07/2005.


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