Interesses privados e universidade pública

 

Uma das faces da privatização do financiamento universitário aparece na área da pesquisa.
A redução dos investimentos públicos em educação superior faz com que empresas passem
a financiar determinadas pesquisas, nas quais têm interesses de curto prazo. Essa prática ameaça a autonomia universitária e qualidade da pesquisa básica.
 

A mercantilização das universidades é uma realidade com muitas faces. Uma delas é a privatização do financiamento universitário. Hoje em dia, como resultado da redução do gasto público em educação superior, as empresas privadas passaram a financiar ativamente as universidades e, especificamente, determinadas atividades de pesquisa nas universidades. 

A Comissão Européia incentiva os países membros a que promovam a participação do setor privado em pesquisa e desenolvimento. Concretamente, recomenda que dois terços dos gastos em pesquisa e desenvolvimento dos países sejam cobertos a partir das contribuições das empresas. Os governos, visando incentivar o investimento empresarial na pesquisa universitária, promovem a introdução de mudanças na legislação sobre patentes para favorecer a compra e venda das descobertas, toleram (ou promovem ativamente) a subcontratação de pesquisa universitária por parte de empresas privadas, criam parques tecnológicos/industriais nas universidades (que irão beneficiar o setor privado) e outras parcerias público-privadas para criação de conhecimento, entre muitas outras medidas. 

No contexto anglo-saxão, o financiamento empresarial atingiu níveis tão elevados que, inclusive, departamentos inteiros são financiados por uma única empresa. Este é o caso da aliança entre a British Petroleum (BP) e a Universidade de Berkeley (Calfórnia) para a criação do Energy Biosciences Institute. A função principal deste novo instituto é desenvolver uma pesquisa sobre biocombustíveis criados a partir de cereais modificados geneticamente. A petroleira entra com 500 milhões de dólares para financiar o instituto durante dez anos. Em troca, tem direito de explorar comercialmente todos os resultados obtidos.

Uma relação mais acentuada entre pesquisadores universitários e empresas permite que entrem mais recursos nas universidades, mas, ao mesmo tempo, altera as funções tradicionais das universidades públicas e tem efeitos socialmente perversos. Em primeiro lugar, implica que os conhecimentos e as descobertas feitas no setor público podem passar a ser controlados por capital privado. Esta apropriação pode ocorrer de diferentes maneiras. Um modo habitual é que a empresa que subcontrata uma pesquisa com a universidade passa a ter prioridade na hora de explorar a patente resultante da pesquisa. 

Muitas vezes, as empresas, mesmo sem ter financiado o processo de pesquisa, vão à “caça de patentes” resultantes da pesquisa universitária. Deste modo, o investimento público em pesquisa não é usufruído por toda a sociedade, senão que o maior proveito fica com as empresas privadas. Outras vezes, são os próprios pesquisadores universitários que se esforçam por vender produtivamente a patente de resultante de seus estudos para empresas do setor. Seja qual for o processo, o resultado é a apropriação privada do conhecimento e, conseqüentemente, as descobertas da pesquisa não são publicadas. Assim, é enfraquecida uma função primordial da universidade: seu papel como disseminadora de conhecimento. Um conhecimento que, além disso, ao não se tornar público também não vai gerar novo conhecimento. 

Uma segunda repercussão do financiamento privado da pesquisa é que o mundo dos negócios determina as prioridades e a agenda da pesquisa universitária. Hoje em dia, muitos pesquisadores e departamentos universitários buscam obter recursos em concursos de pesquisa promovidos pelo setor privado, cujas bases estão estruturadas, principalmente, considerando os interesses da parte que dará o financiamento. Muitos pesquisadores alteram suas prioridades para adaptar-se àquilo que pode ser financiado mais facilmente. Deste modo, enfraquece-se um princípio fundamental das universidades: a autonomia universitária, uma vez que os temas de pesquisa são escolhidos em função de critérios de rentabilidade e não de critérios acadêmicos. 

Em terceiro lugar, os resultados da pesquisa podem ser alterados para favorecer (ou para não prejudicar) os interesses da entidade financeira. Isto, mais uma vez, afeta a liberdade de cátedra e a autenticidade do conhecimento que é disseminado. Diante deste risco, a revista acadêmica New England Journal of Medicine ofereceu desculpas públicas em seu número de fevereiro de 2002. Concretamente, a desculpa foi porque o comitê editorial da revista percebeu que metade dos artigos em que eram avaliados medicamentos e que haviam sido publicados desde 1997 tinham sido escritos por pesquisadores vinculados economicamente com indústrias farmacêuticas que fabricavam os produtos avaliados. Assim, a credibilidade e o rigor da entrevista eram questionáveis. 

Por outro lado, quando os resultados obtidos pelos pesquisadores contradizem os interesses da empresa que está financiando e, por esta razão, não são publicados, a situação torna-se ainda mais grave devido à introdução de censura —ou de autocensura— nas universidades. Em certas ocasiões, os acadêmicos com espírito crítico que optam por tornar públicos os resultados, mesmo quando vão de encontro aos interesses dos grupos empresariais que financiam a pesquisa, ficam expostos a perder seu posto de trabalho. 

Isso foi o que aconteceu com a Dra. Nancy Olivieri, da Universidade de Toronto. Olivieri é especialista em uma estranha doença do sangue, a talasemia, e teve que enfrentar a farmacêutica Apotex quando divulgou que um fármaco dessa companhia podia provocar efeitos colaterais letais. A empresa acossou a Dra. Nancy com uma descomunal campanha de desprestígio e sua universidade, que mantém vínculos financeiros com Apotex, tentou destituí-la. Finalmente, não conseguiram fazê-lo graças a uma campanha de pressão do movimento estudantil e de seus companheiros e companheiras da universidade. 

Finalmente, uma última repercussão é a perda de qualidade e excelência acadêmica no âmbito da pesquisa. É preciso considerar que as empresas costumam financiar pesquisa aplicada, mas não mostram tanto interesse pela pesquisa básica. Os resultados da pesquisa aplicada podem ser explorados em prazos mais curtos e seus objetivos são, como explicita o nome, a aplicabilidade dos resultados. Em compensação, a pesquisa básica tem como objetivo aprofundar em discussões teóricas e não pode ser instrumentalizada de maneira tão imediata. Contudo, a pesquisa básica é fundamental para o avanço do conhecimento e para a futura criação de nova e melhor pesquisa aplicada. 

Para concluir, gostaria de lembrar que o vínculo universidade-sociedade é um dos pilares da universidade moderna e com ele se busca favorecer a extensão do conhecimento universitário para todos os âmbitos da sociedade. Contudo, devido ao aumento do gasto privado nas universidades existe o risco de que o vínculo universidade-sociedade fique restrito ao vínculo da universidade com a empresa privada. Conseqüentemente, a atividade e as funções da academia estariam sendo subordinadas aos objetivos de lucro do mundo dos negócios.

 

Toni Verger - Observatório da Dívida na Globalização.

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

 

Fonte: Ag. Carta Maior, 15/4/2008.

 


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