Jayme Tiomno, o físico brasileiro que viu o Prêmio Nobel passar 

  

Fundador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, sua carreira é parte
da história da ciência do País

“Eu não sou emotivo”, diz o físico Jayme Tiomno, de 86 anos, enquanto a voz lhe sai trôpega e os olhos umedecem, para espanto até de sua mulher, Elisa Frota Pessôa, também física, de 85 anos, 56 de vida comum.

Tiomno respondia a uma pergunta sobre seus pais, judeus russos que imigraram para o Brasil depois da Revolução de 1917. “Meu pai costumava dizer...” e então a emoção o interrompeu.

Em poucos segundos ele se recupera e, apontando o indicador para a têmpora, continua: “... que a fortuna está dentro da cabeça.” Dentro da cabeça de seu filho havia, de fato, um tesouro: Jayme Tiomno se tornou um dos maiores físicos do Brasil - tanto que, há cerca de 50 anos, passou perto daquilo que o país desconhece até hoje: o Prêmio Nobel.

Tiomno é o último remanescente do trio que em 1949 fundou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o lendário CBPF, ao lado de José Leite Lopes, morto neste ano, e César Lattes, morto no ano passado - outro nome que passou perto da conquista de um Nobel brasileiro.

Com Mário Schemberg (1914-90), de quem Tiomno foi aluno, e Roberto Salmeron, hoje com 84 anos, eles são os maiores físicos da história do Brasil.

Mais tarde, em 1966, Tiomno também seria um dos responsáveis pela criação da Sociedade Brasileira de Física. “Era preciso fazer a Física no Brasil”, diz, em entrevista em seu apartamento na Barra da Tijuca, no Rio.

No ano anterior, 1948, tinha ido para Princeton, nos Estados Unidos, onde estudou e fez parceria com John Archibald Wheeler.

Ali, com apenas 29 anos, desenvolveria uma teoria que, por um erro de cálculo, não lhe daria o Nobel recebido em 1957 pelos chineses Chen Ning Yang - com quem também trabalhou - e Tsung-Dao Lee.

A teoria tratava de uma questão importante da física quântica: a simetria entre partículas subatômicas nas “interações fracas”, que ajudam a unir, por exemplo, elétrons e neutrinos.

Para Tiomno e Wheeler, a paridade entre partículas de cargas opostas funcionaria também nesse tipo de interação. Yang e Lee, dispondo de novas observações experimentais, mostraram que não.

Isso mudou agudamente o conhecimento do comportamento das forças dentro de um átomo e possibilitou descobertas importantes sobre a formação do universo.

O irônico é que Tiomno só não teve acesso a esses experimentos porque voltou dos EUA para realizar o sonho de ver a pesquisa e o ensino da Física tomar corpo em seu país.

Doutorado em 1950, retornou e seguiu seu trabalho sem saber que colegas como os famosos Murray Gell-Mann (hoje com 77 anos) e Richard Feynman (1918-1988) vinham mostrando os estranhos comportamentos do mundo quântico, em que assimetrias são comuns.

Mais irônico ainda: cinco anos antes já se havia sugerido a desintegração da paridade nos trabalhos de uma física experimental brasileira - uma tal de Elisa Frota Pessôa.

“Os amigos até hoje fazem piada conosco por causa disso”, conta a mulher de Tiomno.

Trajetória

Nada disso, claro, lhe retira as conquistas. Nascido em 16 de abril de 1920 no Rio e criado em Muzambinho (MG), Tiomno sempre foi ótimo aluno em ciências e matemática.

Curiosamente, quando voltou ao Rio para concluir o secundário, no Colégio Dom Pedro II, era Medicina que planejava estudar. E de fato entrou no curso. Um ano depois, porém, começou a cursar Física; mais dois e a Medicina foi abandonada.

Aos 22 já era físico formado pela Faculdade Nacional de Filosofia. Mas, como Lattes e Lopes, Tiomno tinha o que chama de “inveja” do ensino de Física na Universidade de São Paulo (USP), coordenado por Gleb Wataghin (1899-1986), outro filho de russos que vieram para o Brasil. 

Em 1945, obteve o que queria: uma bolsa para fazer pós-graduação na USP com Schemberg, o célebre cientista e crítico de arte - quem Tiomno descreve como egocêntrico e autoritário.

Melhor sorte Tiomno teria com Wheeler, que, ao lado de Niels Bohr e Enrico Fermi, era uma das maiores autoridades em fissão nuclear naqueles anos pós-guerra (e tinha estado em Los Alamos, no projeto que desenvolveu a bomba atômica para os EUA).

Wheeler, hoje com 95 anos, não só acolheu o jovem pesquisador brasileiro, como também reconheceu sempre que veio dele a idéia da “universalidade das interações fracas”, a qual teria grande repercussão e, por ser representada com três pares de partículas nos vértices de um triângulo, passaria a ser conhecida como “triângulo de Tiomno-Wheeler” - e por alguns anos aceita como a mais avançada teoria da área. Até hoje Tiomno conserva na sala a pequena placa de prata dedicada a ele pelo ex-professor.

“A criação (da teoria) foi minha, modéstia à parte”, diz, revelando depois que Wheeler chegou a escrever carta para os organizadores do Nobel indicando o nome de Tiomno.

Outro aluno de Wheeler era o genial Feynman, que Tiomno conheceu num curso de eletrodinâmica quântica em 1955.

Feynman estava estudando espanhol porque pretendia passar seu ano sabático no México, mas Tiomno o convenceu a ir para o Brasil e dar aulas no CBPF. Emprestou um livro de português e em alguns meses Feynman já falava o idioma.

“Ele era muito expansivo e muito rápido”, conta Tiomno. “Eu me lembro do orgulho dele quando se tornou o primeiro frigideira (instrumento de lata para bateria) de samba.

Depois que ganhou o Nobel (em 1965), voltou ao Brasil e foi recebido no (aeroporto) Galeão com uma faixa: ‘O primeiro Nobel da Escola de Samba Copacabana’.

Dona Elisa diz que Feynman se irritava nas aulas e dizia: “Aluno brasileiro não pergunta”.

Princeton concentrava gênios como nenhum outro endereço. Tiomno também se lembra de Gell-Mann, o rival de Feynman; um era fechado e modesto, o outro inquieto e vaidoso, e ambos dividiam os estudantes de Princeton.

Tiomno foi alvo do temperamento difícil de Gell-Mann, que, contestado num encontro, se referiu a ele como “the previous speaker” (o palestrante anterior) sem dizer o nome.

Tiomno recorda com maior admiração E.P. Wigner (1902-95), o físico húngaro com quem também pesquisou a questão da simetria nas partículas subatômicas e que ganharia o Nobel em 1963 pelas descobertas sobre neutrinos.

“Ele tinha uma inteligência impressionante”, diz. O comportamento tampouco era dos mais ortodoxos: segundo Tiomno, Wigner imitava índio para debochar dos alunos que faziam perguntas fracas.

Os anos 50

Tiomno também conheceu Albert Einstein (1879-1955), em sua casa no campus do Instituto de Estudos Avançados, que visitou em companhia de Wheeler com a intenção de receberem algum conselho sobre o caminho a seguir nas teorias.

“Ele foi muito cordato e simples”, diz. Mas a impressão não foi das melhores - até porque Einstein não se sentia à vontade com a física quântica, a qual lhe motivou a frase “Deus não joga dados com o Universo”. Naquele momento, brinca o ateu Tiomno, “Deus não o ajudou”.

Ficar em Princeton era o desejo de Tiomno assim que tirou o doutorado em 1950. Mas o Brasil o chamava. O namoro com Elisa, que já era casada com o biólogo Oswaldo Frota Pessôa e tinha dois filhos, ficou sério e ela decidiu ficar com Tiomno.

A década foi produtiva: Tiomno, agora professor titular do CBPF, publicou 20 trabalhos nos anos 50, quase sempre na área da física de partículas.

Numa conferência nos EUA em 1960, previu a existência de ressonância nos mésons (partículas das “interações fortes”, que asseguram a estabilidade do núcleo do átomo), mais tarde comprovada experimentalmente.

Sua vida mudaria de novo a partir de 1965, quando aceitou o convite para ser professor da Universidade de Brasília, a UnB, que na época era dirigida por Darcy Ribeiro e propunha um ensino menos preso à memorização e mais voltado à observação, à solução gradual de problemas concretos - uma antiga luta do educador Tiomno, cansado de testemunhar o descaso brasileiro com a disciplina em favor da inspiração.

Uma frase sua sobre o assunto ficaria célebre: “Gênio é trabalho”. Em 1968, depois de receber um doutorado da USP, começou a ter problemas com o autoritarismo militar. 

Apartidário, foi parar numa lista com Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso como um simpatizante da esquerda. No ano seguinte, com a promulgação do AI-5, foi afastado do cargo.

Decidiu então voltar para Princeton, onde, novamente ao lado de Wheeler, voltou a trabalhar com gravitação e eletromagnetismo.

Graças à Pontifícia Universidade Católica (PUC), em 1973, conseguiu voltar para o Rio. O CBPF estava “deteriorado”, dominado por “um pessoal incompetente”, e mesmo depois da anistia (1979) não voltaria a ser o mesmo.

O regime militar prejudicou uma geração inteira de cientistas? “Com certeza”, responde. “Houve uma queda forte da produção.” Mesmo assim, Tiomno fala com orgulho dos alunos que formou, aos quais trata como filhos - ele que nunca teve o seu, além dos dois enteados e de um filho de criação.

O orgulho não é menor quando conta que uma das netas (como se refere) é biofísica nos EUA, na Carolina do Norte, e um dos bisnetos está estudando Física na mesma Princeton.

Tiomno pertence a uma geração que viu a fissão do mundo da física em dois campos: a Teoria da Relatividade, de Einstein, e a física quântica - e uma geração que sonhou conciliar essas duas teorias, ainda que em doses distintas.

Quase meio século depois, as incompatibilidades permanecem, mas Tiomno diz que isso não lhe traz nenhuma sensação ruim. “É assim mesmo; a ciência vai e vem”.

Diz que já não acompanha as descobertas da área, como a recente observação de que os neutrinos teriam, sim, massa, ao contrário do que se pensava.

Também pertence a uma geração que sonhou com um Brasil democrático e civilizado, em que as ciências fossem apoiadas a sério. Diz que o País progrediu, ainda que não confie tanto na atual “estabilidade” econômica, mas que falta muito para realizar aquele sonho.

Aposentado, às vésperas de uma cirurgia no rim, sentado na cadeira de balanço com vista para o mar, cercado de quadros - entre os quais se destacam uma pintura de Iberê Camargo e gravuras de Fayga Ostrower - e ocupando o tempo com romances policiais como os de Luiz Alfredo Garcia-Roza, ele leva uma rotina tranqüila ao lado de Elisa, senhor das riquezas que a cabeça acumulou.

Em tempo: a Wikipedia, a enciclopédia “livre” feita pelos navegantes da internet, tem um verbete de duas linhas e meia sobre Tiomno, além de uma bibliografia de seis títulos.

Em inglês, o texto diz: “Jayme Tiomno (n. 16 de abril de 1920, Rio de Janeiro), físico nuclear teórico e experimental. Ele é membro da Academia Brasileira de Ciências e recebeu a Ordem Brasileira do Mérito Científico”.  

Interações mais fortes se fazem necessárias.

 

Fonte: O Estado de S. Paulo, Daniel Piza, 19/11/2006.


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