Os juízes e a reforma da Previdência

 

Cláudio Baldino Maciel (*)

A maneira como está sendo conduzida a discussão acerca da previdência pública brasileira traz a marca do amadorismo e da ignorância, ou da má-fé. A enorme e indesejável confusão estabelecida na opinião pública tem origem na inexistência de estatísticas confiáveis, que possibilitem opções seguras para o longo prazo, estendendo-se à ausência de uma proposta oficial apresentada para debate.

Numa sociedade de comunicação, na qual tudo é repercutido e amplificado muito rapidamente, nenhuma informação é inofensiva. Nesse sentido, duas são as certezas, vendidas com impressionante competência: a) a reforma é imprescindível, sob pena de o país quebrar; b) os responsáveis pelo déficit são (mais uma vez) os servidores públicos. Quer dizer, não fossem os privilégios concedidos ao funcionalismo estatal, teríamos condições de redistribuir riqueza, melhorando a qualidade de vida dos demais aposentados, investindo em hospitais, saneamento, escolas.

O discurso é sedutor, mas as premissas são falsas, resultado de grotesca manipulação de dados. Primeiro: a reforma não é imprescindível! Os números do Ministério da Previdência demonstram que inexiste déficit no orçamento da seguridade social, mas extraordinário superávit, o qual não redundou na elevação dos benefícios pagos pelo INSS. Seu destino é desconhecido. Segundo: o funcionalismo público não é responsável pela crise fiscal brasileira. A especulação, a má-gestão e o fisiologismo é que explicam o fenômeno.

Assim, a contribuição previdenciária dos servidores se aplicada, por exemplo, em um fundo de pensão a taxas conservadoras renderia, ao cabo dos mesmos 35 anos, valores muito superiores aos percebidos a título de aposentadoria integral. Que privilégio é esse, para o qual se paga com sobras? Numa palavra: há algo estranho nas contas divulgadas, o que deveria ser apurado com coragem e seriedade. É o mínimo que se pode esperar de um governo legitimado pelas urnas, que não aja com leviandade ou cinismo, e que se elegeu com discurso político incompatível com a idéia de que previdência deve ser mero seguro privado em que somente os valores das contribuições devem sustentar o sistema.

A fim de se apresentar um quadro de caos e ingovernabilidade, partiu-se para a deformação de conceitos jurídicos, representativos da própria história da humanidade, construídos ao longo dos séculos, o que não deixa de ser burlesco e malicioso. Prega-se a isonomia, a sustentabilidade do sistema previdenciário e o fim dos ‘‘privilégios adquiridos’’, apontando distorções apenas nas aposentadorias do regime próprio, dos servidores.

Esquecem de dizer no noticiário que os servidores não possuem fundo de garantia, ao contrário de qualquer trabalhador da iniciativa privada, nem horas extras remuneradas ou direito de participar de dissídios e acordos coletivos, não têm direito a greve ou seguro desemprego, e têm idade mínima para jubilação (o que não ocorre no regime geral), além de contribuírem (os da União) com 11% sobre a totalidade de seus vencimentos e não sobre um teto fixo.

Omitem, também, que, anualmente, são concedidos R$ 25 bilhões em benefícios e favores fiscais, que a fraude não é combatida com rigor, que a sonegação gerou uma dívida ativa conhecida de R$ 140 bilhões (isto é, empresas que não pagam a previdência), que apenas 6,5% dos brasileiros pagam imposto de renda e que, do total arrecadado, 70% correspondem a salários e somente 10% decorrem da tributação dos lucros (ganhos de capital). Também se omite que os valores que poderiam estar acumulados e que, capitalizados devidamente, sustentariam com folga o sistema, foram utilizados em outras áreas estranhas à previdência social.

Escondem do grande público, ainda, que dados da Secretaria da Receita Federal revelam fortunas pessoais de US$ 90 milhões declarando-se isentas do tributo. Que igrejas, partidos políticos e entidades filantrópicas estão imunes ao pagamento de impostos. Não mencionam, por fim, o próprio regime de aposentadoria dos demais agentes políticos, integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo.

Diante de um povo que só conhece a face punitiva do Estado-polícia e do Estado-fiscal, propositadamente desinformado e sistematicamente violentado pelas elites deste país — sempre associadas ao capital especulativo internacional —, o efeito perverso daí resultante é a provocação à intolerância para com o servidor público e para com a magistratura, em particular, deliberada e equivocadamente identificada como detentora de privilégios de difícil justificação ética. O objetivo aí buscado é por demais evidente.

Ocorre que para a edificação de um país com maior justiça social, não bastam argumentos panfletários. Ou bem há espaço e oportunidade para o contraditório, tão saudável ao debate e indispensável à democracia, ou insistimos no discurso único, totalizante e asinino.

Por formação nós, os juízes, estamos acostumados a pensar a verdade do outro, a ponderar suas razões, a buscar o equilíbrio, numa lógica que, obviamente, não é e não pode ser a da política nem a do mercado. Isso, por vezes, gera exasperadas mas compreensíveis reações daqueles que imaginam que as políticas necessárias prescindem da clareza do debate com dados transparentes e públicos.

Dessa forma, para a garantia do respeito à autoridade da lei e mantença da ordem, do direito das minorias, dos excluídos pelo poder econômico, quer dizer, da própria sociedade e de um sistema de direito que a ela dê condições de mínima civilidade, todo o mundo ocidental protege o Poder Judiciário, tratando de não vulgarizá-lo economicamente, possibilitando que seus membros exerçam suas funções com a retidão e imparcialidade esperadas, sem sofrer as injunções habituais dos sistemas econômico, político e da mega-criminalidade. Merece desconfiança o movimento tendente à mediocrização de tão importante função estatal porque, sem essas garantias, instituídas em favor da sociedade, não se teria ouvido falar na ‘‘operação mãos limpas’’, que levou centenas de mafiosos e corruptos — inclusive do Tribunal de Roma e conhecidas personalidades dos Poderes Executivo e Legislativo — à prisão na Itália. Também o exemplo da Suprema Corte norte-americana, no início do século XIX, com o justice Marshall desafiando o Executivo e o Legislativo, ao se entender legitimado para revisar e anular seus atos, é paradigmático. Nos EUA, o paraíso dos fundos privados de previdência e pensão, os membros do Poder Judiciário se aposentam com valores pagos pelo poder público. Lá, no templo do mercado — inspiração maior do laissez-faire brasileiro, há carreiras de Estado que são protegidas das influências dele, mercado, porque a lucidez política e a renúncia ao discurso de ocasião ditam a necessidade de blindagem de certas funções estatais com a couraça da irredutibilidade de vencimentos e proventos, para que se preservem da sanha do crime organizado, dos poderosos que crêem que o dinheiro e a influência tudo podem, com ousadia em ascensão visível. Naquele país, mesmo os empresários ávidos em colocar a mão nessa suculenta fatia do mercado, acatam como correta a proteção e segurança econômica de determinadas atividades públicas, porque assim também protegem a si próprios contra a influência ou a ação ilegal dos demais. Só os levianos, os grosseiramente desinformados ou os civicamente tacanhos podem pensar que tal proteção funciona em favor dos próprios juízes ou dos titulares da funções típicas de Estado.

É hora de os condutores da reforma da previdência deixarem de lado o fetichismo das estatísticas de conveniência, com as quais, pelo seu poder de síntese e dramatização, querem transformar a realidade da vida econômica e social omitindo as nuances de uma sociedade altamente complexa, e sintonizarem o discurso com a prática no resgate da ética prometida, a começar pela correta transparência e divulgação de dados, pela não demonização do setor público, que já foi satanizado demais pelos governos anteriores e que sempre paga o preço das mudanças, pela compreensão democrática da necessidade estratégica de proteção de setores da atividade essencial do Estado e pela criteriosa correção das inúmeras falhas do sistema de seguridade social do Brasil, após um indispensável diagnóstico preciso e correto do problema, o que até aqui pura e simplesmente não existe.

(*) Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

 

Fonte: Direito & Justiça, Suplemento do jornal Correio Braziliense, 31/03/2003 & ANDES-SN.


 

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