O risco da involução

 

  Será o triunfo do atraso se vingarem as tentativas petistas de oficializar a cultura, controlar a imprensa, barrar o inglês, asfixiar a universidade...

Depois de dois anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil é um país melhor. A economia vive seu mais longo período de estabilidade em tempos democráticos. O governo, num exercício de sensatez, já demonstrou a seriedade de sua adesão aos instrumentos universalmente aceitos de estabilização econômica. A política, depois da mais civilizada transição entre adversários políticos que Brasília já viu, foi exorcizada das fantasmagorias disseminadas contra o país e a moeda toda vez que um candidato de esquerda – Lula, em resumo – surgia com chance real de chegar ao poder. Deve-se ao governo petista o fato de que, hoje, o Brasil é um país com uma economia ainda mais estável e uma democracia ainda mais vigorosa. Mas, por trás desse panorama geral cuja tônica é o avanço, há sinais desconexos, que apontam para a aversão ao debate, a sovietização do conhecimento, o desprezo do mérito. Do embate entre esses dois vetores do governo resultará a direção pela qual o país vai seguir. Por enquanto, está-se no rumo evolutivo correto. Mas, dada a constelação de disparates que o governo anda produzindo, especialmente no que diz respeito à cultura e à educação, não é exagero dizer que o Brasil corre sério risco de involução.

O governo já tentou controlar a produção cultural do país, quando quis fundar uma agência para direcionar os rumos do cinema e da televisão, a famigerada Ancinav. Já quis coibir a liberdade de imprensa ao propor a criação de um Conselho Federal de Jornalismo. Agora, pressionado a limar as protuberâncias autoritárias da Ancinav e enterrar por inteiro o tal conselho de jornalismo, o governo acaba de sair-se com a idéia de criar a Lei Geral dos Meios de Comunicação de Massa. O estatuto nem começou a ser feito, mas – mau presságio – está sob os cuidados da mesma equipe do Ministério da Cultura que concebeu as amarras para o cinema e a TV. Numa aparente guerra aberta contra o conhecimento, o governo também propôs uma reforma universitária de tirar o fôlego: solapa a autonomia da universidade colocando-a sob o jugo de corporações, faz tábula rasa da meritocracia e, a pretexto de aprofundar vínculos da universidade com a comunidade, cai num democratismo de base incompatível com a vida acadêmica.

Em 1858, a palavra "misologia", que significa aversão à lógica, ao raciocínio e ao conhecimento, fez sua primeira aparição formal na língua portuguesa, conforme datação do dicionário Houaiss. Na semana passada, o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas, criou o neologismo "misologocracia", querendo referir-se aos regimes que têm horror à lógica, ao raciocínio e ao conhecimento. E aplicou seu neologismo na testa do governo petista. "Vivemos sob uma misologocracia", decreta ele. Não parece exagero quando se tem em conta que o Itamaraty, nicho de excelência da burocracia brasileira, tem uma direção que acha o conhecimento da língua inglesa "dispensável". Não por implicância com William Shakespeare, Jonathan Swift ou Alexander Pope. A encrenca do Itamaraty com o inglês é que se trata da mesma língua falada pelos cowboys texanos (cujo sotaque, dizem os especialistas, é muito parecido com o inglês falado à época de Shakespeare), entre eles o notório presidente George W. Bush. O Itamaraty é só o exemplo mais acabrunhante do nivelamento por baixo que, pelas mais diversas deformações ideológicas, vem sendo aplicado pelos chefes petistas na educação e na cultura. Com acertos tão notórios em áreas vitais do metabolismo econômico do país, o governo do PT não deveria correr o risco de trair a tradição da esquerda democrática, de estar sempre ao lado da ciência, do progresso e do conhecimento. Numa frase: a favor da inteligência.
 

  Fonte: Revista Veja, André Petry, Edição 1889, 26 de janeiro de 2005


O grande salto para trás

Depois de tentar oficializar a cultura e coibir a liberdade de imprensa, o governo investe no aparelhamento das agências reguladoras e anuncia uma reforma universitária que agride o bom senso, a economia de mercado e o mérito acadêmico

O presidente Lula fará um favor a seu governo e um bem ao país se der ao projeto de reforma universitária produzido pelo MEC o mesmo destino que deu ao texto original de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), a lata de lixo. O documento de reforma do ensino superior tem 35 páginas, 100 artigos e nenhuma luz. A peça constitui talvez o mais frontal ataque à sociedade aberta já tentado por um órgão de governo no Brasil. O documento combina agressões ao bom senso, ao mérito acadêmico, à economia de mercado e à ordem jurídica, com um desprezo solene pela busca do conhecimento e da propriedade privada. "O conceito de meritocracia, base da produção acadêmica, é massacrado pela proposta petista de reforma", diz Claudio de Moura Castro, especialista em educação superior e articulista de VEJA.

Bastaria isso para que o projeto fosse rapidamente esquecido. Mas o fato de ele ter sido pensado, produzido e oferecido à sociedade é alarmante e torna obrigatória a sua dissecação mais detalhada. Especialmente agora, um momento em que outras ações de menor calibre, mas igualmente obscurantistas, têm brotado aqui e ali nos escalões intermediários do governo petista. Entre elas a ojeriza ao idioma inglês na cúpula da diplomacia e a nomeação de fiscais ideológicos do PT para as agências reguladoras da economia – justamente as instâncias que exigem alto preparo técnico e isenção acima de tudo.

Isoladamente essas ações seriam estrelas sem brilho. Juntas, elas formam uma constelação de péssimo desenho que não combina com a orientação geral dada por Lula a sua administração. Desde que o PT, em junho de 2002, rasgou os empoeirados códices leninistas que orientavam sua atuação e deu publicidade à sua Carta ao Povo Brasileiro, o partido tem sido uma força civilizatória no país. Aderiu à condução responsável da economia e aprofundou-a, deu os primeiros passos para conter os destruidores déficits da Previdência que ameaçavam quebrar os cofres públicos. Combateu como nenhum outro governo a corrupção oficial com megaoperações da Polícia Federal. Enfim, acenou ao mundo seu compromisso de continuar trabalhando na criação de uma nação pacífica, soberana, moderna e democrática.

Essa tem sido a locomotiva do governo Lula. Por isso, destoam tanto as tentativas de oficializar a cultura pela criação da Ancinav e a abortada idéia de coibir a liberdade de imprensa. Somam-se a elas agora a reforma universitária de orientação soviética e a total falta de entendimento do papel das agências reguladoras. Diz Luiz Schymura, ex-presidente da Anatel: "O governo faz uma política macroeconômica sólida, mas na área regulatória emite sinais contraditórios que assustam os investidores. Isso é um tiro no pé". São ações que não têm força para tirar o comboio dos trilhos, mas acabam sendo iniciativas desgastantes, que demandam energia, criam tensões inúteis e por meses a fio levam o país a discutir se quer mesmo voltar ao passado. O projeto da Ancinav encontrou o seu lugar na lata de lixo quase cinco meses depois de ter sido ventilado pela primeira vez. O de censura à imprensa morreu no Congresso, por acordo dos líderes partidários, sem nem mesmo ter tido seus, digamos, méritos apreciados.

O que as iniciativas obscurantistas recentes dos petistas têm em comum é sua burrice na acepção mais brasileira da palavra, que não é apenas ignorância – é também teimosia, cegueira ideológica, preguiça, casmurrice e empacamento. As iniciativas refletem uma espécie de autismo nacionalista. Mas também, em um tom mais generoso, expressam desejo legítimo de reverenciar o homem comum que, como o presidente Lula, pode ser capaz de fazer coisas incomuns e extraordinárias. Maravilhoso no mundo ideal. Um desastre no Brasil deste começo do século XXI, em que a economia e a sociedade estão cada vez mais expostas aos rigores do mundo globalizado, cujos benefícios, para ser desfrutados, exigem preparo acadêmico sólido, conhecimento de idiomas e cultura.

A proposta de reforma universitária é a mais assustadora pelo delírio, pela intenção de elevar as massas ao estágio superior do pensamento apenas pela boa vontade, como em um passe de mágica. Por seu motor totalitário, a reforma só funcionaria em um regime forte como a antiga União Soviética. Para ser implantada ela exigiria a ação coesa de um governo plenipotenciário, disposto até mesmo a desprezar a Constituição. Como se sabe, um governo forte o bastante para dar aos cidadãos tudo de que eles precisam é, sempre também, um governo forte o bastante para tirar deles tudo o que eles possuem. Diz o filósofo Roberto Romano, da Unicamp: "Com raríssimas e maravilhosas exceções, como o Ministério da Ciência e Tecnologia, o governo não tem apreço pela universidade, pela ciência nem pela cultura. Hoje as universidades federais são elementos de troca entre o poder central e as oligarquias regionais. Valem mais pela influência política do que pelo conhecimento que produzem".

O Brasil tem um sério, complexo e verdadeiro problema no campo do ensino superior. Em proporção a sua população, é um dos países emergentes com menos gente cursando faculdades. A reforma nada faz para minorar esse problema. Ao contrário, em nome de combater questões que só existem nos escaninhos da mente esquerdizante dos autores do projeto, a reforma, se vier a ser implantada, vai restringir ainda mais o acesso dos brasileiros – pobres, ricos ou remediados – à universidade. O Brasil tem cerca de 3,5 milhões de pessoas matriculadas em cursos superiores. Isso equivale a 1,9% da população. Na Argentina esse número é de 4,6%, no Chile, de 4,3%, e na Coréia do Sul, de 7,4%. Para alcançar o padrão mínimo de seus concorrentes diretos no mundo globalizado, o Brasil precisaria criar cerca de 8 milhões de vagas adicionais nas universidades públicas e privadas.

E o que propõe a reforma? Mudanças que, ao inibir a iniciativa privada, eliminarão milhares de vagas. O projeto asfixia as instituições particulares, submetendo-as ao "controle da sociedade" – que já se tornou o eufemismo preferido do petismo para expressar sua desconfiança para com a atividade empresarial e com o capitalismo. Ou seja, em vez de incentivar a criação de mais vagas nas universidades e cuidar para que elas sejam de boa qualidade, com inspeção rigorosa e incentivos ao mérito e punições severas às arapucas, o projeto simplesmente dá vazão a sua ideologia antinegócios e procura afogar as instituições privadas em regras e proibições. Obviamente, o trabalho diuturno de fiscalizar e garantir a qualidade dos cursos superiores é árduo, incógnito e não tem nenhum charme revolucionário. Atraente mesmo é promover com alarde a intervenção branca nas instituições privadas de ensino superior em nome dos excluídos, entregando seu controle a "representantes da comunidade". Pelo projeto do MEC, os donos das universidades terão sua participação nos comitês que decidem a vida acadêmica e comercial da instituição reduzida a 20%. Os demais assentos, segundo a proposta, seriam destinados a "representantes da comunidade", estudantes, professores, funcionários. "Isso significa uma expropriação, pois tira dos empresários a condução de seus próprios negócios", diz o ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza.

Expropriar as instituições privadas é burro, mas rende aplausos e reverências no Fórum Social de Porto Alegre. Serão mais aplaudidos os que disserem coisas como "o problema da educação superior no Brasil só será resolvido com a mudança radical do modelo neoliberal importado dos Estados Unidos". Mas atacar as instituições privadas de ensino já é um consolo para os autores da proposta do MEC. Também o é proibi-las de ter sócios estrangeiros com mais de 30% de participação ou impedir a vinda para o Brasil de universidades estrangeiras. O pretexto é a preservação do "nosso pensamento", da cultura nacional. "Resolvemos incluir esse artigo porque o governo acredita que a universidade deve ter uma clara identidade nacional", disse a VEJA o ministro da Educação, Tarso Genro. O projeto do governo também proíbe que estrangeiros ocupem cargos de comando nas universidades brasileiras, quando nas melhores instituições do mundo o critério para a seleção de quadros é o currículo – e não a cor do passaporte. Na Coréia do Sul, por exemplo, o reitor da Kaist, uma das mais respeitadas faculdades do país, é um Prêmio Nobel americano. O próprio Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o prestigiado ITA brasileiro, teve por muitos anos departamentos dirigidos por professores estrangeiros – que o ajudaram a tornar-se referência internacional na área de engenharia. Vale lembrar ainda que a Universidade de São Paulo (USP), o melhor centro de ensino superior do país, foi criada com a contratação de um robusto time de luminares europeus. Aqui eles deixaram milhares de discípulos que hoje estão entre os mais destacados intelectuais brasileiros.

Itália, Espanha, França, Alemanha e Argentina têm campi de universidades americanas de primeira linha como Yale, Harvard e Universidade de Chicago. Desafiam a imaginação as razões pelas quais italianos, espanhóis, franceses, alemães, argentinos, coreanos e outros povos não vêem na presença de instituições estrangeiras de ensino nenhum risco para sua cultura e seu pensamento. Já os autodenominados guardiães da cultura brasileira ficam temerosos. Será que haveria assim tanta interferência externa impura nas danças típicas, nos passes de capoeira e nos cantos afro-brasileiros? Provavelmente não é isso que preocupa os autores da reforma. O texto da proposta mostra que o medo deles é da civilização, da competição, da busca incessante pela inovação, pelo aumento da produtividade por meio da rigorosa aceitação do método científico e de suas exigências elitistas. Não elite econômica. Elite de pensamento, de inteligência e de dedicação profunda e obcecada, o que gera patentes e novos candidatos ao Prêmio Nobel.

Falta aos autores do projeto a compreensão do que seja o conhecimento e sua obtenção. O filósofo Roberto Romano acredita que muitos dos petistas envolvidos com o obscurantista projeto de reforma são pessoas cultas, que apreciam uma boa leitura e sabem o mal que estão propondo ao país. As pessoas dessa categoria, na análise de Romano, teriam, no entanto, pouca força política para fazer valer suas idéias. "Eles sabem pensar, têm cultura, mas estão desprovidos de poder. São obrigados a dizer sempre amém aos incultos", diz ele, referindo-se ao próprio ministro Tarso Genro.

A inclusão do regime de cotas nas universidades públicas prevista no projeto do MEC é igualmente uma jogada para a platéia. O governo quer reservar 50% das vagas nessas instituições a alunos vindos de escolas públicas, negros e indígenas. Da maneira como foi apresentada, a proposta pode até abrir espaço na universidade para pessoas que de outra maneira não conseguiriam cursar o ensino superior. A experiência mundial em iniciativas desse tipo, porém, mostra que o mais lógico – mas, de novo, o mais difícil, complexo, anônimo e politicamente neutro e, por isso, pouco atraente para a militância – é universalizar o ensino básico e secundário gratuito de modo a dar chances iguais a quem quer tentar a aventura intelectual de cursar uma universidade de alto nível. O debate sobre cotas é complexo e está apenas começando no Brasil e, nesse ponto, o projeto de reforma tem pelo menos o mérito de ter levantado a questão (...).

São bons augúrios o arquivamento do projeto da Ancinav e a vitória obtida, na semana passada, pelo ministro Roberto Rodrigues, da Agricultura, contra um grupo de militantes que estava desfigurando uma instituição de primeira linha como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Rodrigues demitiu toda a diretoria, que considerava sua missão a pesquisa voltada para a agricultura familiar, pequenos produtores e assentados da reforma agrária – e havia premiado pelo menos dez militantes petistas com a direção de centros de pesquisa. A presidência da Embrapa será assumida pelo físico e funcionário de carreira da empresa Silvio Crestana, que deve priorizar a biotecnologia e a pesquisa com transgênicos.

A Ancinav sobreviveu no noticiário e pairou como uma ameaça sobre a cultura brasileira durante quase cinco meses, mesmo contendo artigos claramente inconstitucionais. No primeiro projeto, o artigo 8 estabelecia, por exemplo, que "o poder público observará a exigência de mínima intervenção na vida privada, assegurando que a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do poder público". Ou seja, a liberdade de expressão, cláusula pétrea da Constituição Federal, passava a depender do humor de um burocrata da Ancinav. "Qualquer setor da iniciativa privada deseja uma política de fomento à atividade, mas o que o governo queria fazer era algo diferente. Uma coisa é criar uma política para a indústria de salsichas. Outra é determinar que, a partir de agora, só serão fabricadas salsichas de frango", diz a advogada Ana Paula de Barcellos, professora de direito constitucional da Uerj.

A história não avança como uma flecha disparada no céu azul, rumo ao progresso e aos mais elevados estágios da inteligência humana. Ao contrário, está cheia de idas e vindas, saltos e retrocessos, momentos de brilho sublime entremeados a dolorosas eras de trevas. A mais emblemática de todas essas involuções é a Revolução Cultural promovida na China comunista entre 1966 e 1976, que impôs padrões de vida medievais e transformou intelectuais e professores em inimigos do regime. Foi vedado aos chineses o uso de técnicas e máquinas de origem estrangeira. O resultado foi o caos socioeconômico, com perdas pesadas na indústria e na agricultura. Felizmente, no Brasil do PT as iniciativas dantescas raramente saem da esfera das más intenções. É uma esperança. Mas é também a mostra de que em países onde a burocracia governamental não funciona, os surtos de obscurantismo oficial também não vingam. Dá muito trabalho. Melhor mesmo é constituir uma comissão interministerial. Já existem duas centenas delas no governo Lula. Uma se dedica a estudar a Sardinella brasiliensis, ou sardinha-verdadeira, como efetivamente foi feito no Planalto. O grupo é integrado por representantes do Ministério da Defesa, do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, do Ministério do Trabalho, da Secretaria da Pesca, dos Conselhos de Pesca e até de uma Pastoral da Pesca. Além de verdadeiras, as sardinhas devem ser pecadoras.

Reportagem de Monica Weinberg e Sérgio Martins, de São Paulo,
Marcelo Carneiro, do Rio de Janeiro, e Otávio Cabral, de Brasília

  Fonte: Revista Veja, Edição 1889, 26 de janeiro de 2005


Críticas 
Reforma do Ensino Superior: Quem não chora, não mama

Osvaldo Coggiola*

 

Dentro do bando de “madonas choronas”, não explicitamente nomeadas pelo presidente Lula da Silva em seu discurso de Aparecida de Goiânia (25 de janeiro), encontram-se, sem dúvida, os críticos de direita do Projeto de Reforma Universitária (ou de “Lei de Educação Superior”), que receberam recentemente ampla acolhida nas páginas da Veja e do O Estado de S. Paulo, velhos porta-vozes do mais retrógrado pensamento burguês e oligárquico do Brasil. Quem ler direito, no entanto, poderá constatar que o “choro” esconde a ameaça.

 

A coisa pode parecer estranha, já que o projeto do MEC coincide no fundamental com as agendas do Banco Mundial e do BID para as instituições de educação superior públicas: racionalização do acesso não por medidas universais, mas por cotas; programas de estímulo à docência; avaliações padronizadas da “qualidade” (ENAD), inspiradas na famigerada teoria do “capital humano”; vinculação entre os planos de desenvolvimento institucional (estabelecidos com participação empresarial), avaliação (SINAES) e financiamento (orçamento global), e associação estreita entre eficiência acadêmica e pragmatismo universitário. Para completar, o anteprojeto admite, pela primeira vez na história do país, que a educação é um campo específico de investimentos estrangeiros: admite-se uma participação de até 30% de capital estrangeiro, criando a “segurança jurídica” que os “investidores” tanto reclamam nos tratados comerciais.

Articulista da Veja (edição de 26 de janeiro de 2005) declara que o projeto “constitui o mais frontal ataque à sociedade aberta já tentado por um órgão do governo no Brasil”, nada menos. E proclama que o MEC evidencia “um desprezo solene pela busca do conhecimento e da propriedade privada” (sic) como se ambos fossem sinônimos (historicamente, ambos têm sido, em geral, antônimos), o que retrata o “nível” do suposto arauto, que se arvora em defensor do “nível” das universidades.

Um dos alvos da crítica é a proposta criação de conselhos, nas universidades e faculdades privadas, com certos direitos acadêmicos e administrativos, conselhos nos quais a participação dos empresários ficaria limitada a 20%. Isso tolheria a “liberdade empresarial”. O conteúdo do “choro” é claro. Depois de terem obtido todo tipo de concessões em matéria de isenção fiscal e previdenciária, isto é, ampliado consideravelmente a sua margem de lucro, os tubarões do ensino pago querem agora plena liberdade para “administrar” a nova taxa de lucro que conquistaram, em troca da sua adesão ao ProUni, isto depois de outros “choros”, com os quais conseguiram modelar o projeto original lulista em direção de uma feição decididamente empresarial, como foi reconhecido em matéria paga publicada pela associação das mantenedoras.

Com efeito, a completa isenção de impostos, e ainda de parte significativa da contribuição previdenciária, no caso das filantrópicas, deverá impulsionar um novo ciclo de crescimento do setor, hoje correspondente a 88% das instituições de ensino superior e a 72% dos estudantes. Atualmente o setor privado movimenta cerca de R$ 15 bilhões: as filantrópicas gozam de isenções da ordem de 25% e as empresariais de 15%. Caso todas venham a se converter em empresariais, as isenções corresponderiam a R$ 2,3 bilhões. No futuro próximo, considerando que as filantrópicas não recolhem a contribuição previdenciária patronal (cerca de R$ 460 milhões), as privadas poderão receber mais de R$ 2,7 bilhões em “troca” de menos de 150 mil vagas, de duvidosa qualidade, grande parte delas pulverizadas em bolsas parciais de 50% e 25%. Isso sem contar os R$ 1 bilhão do FIES. Cabe lembrar ainda que o ProUni previa em sua primeira versão 25% da vagas de todo o setor privado, percentual que despencou para ínfimos 8,5%. Por essas e outras, o jornalista Josías de Souza chamou o ProUni de “Promamata”.

Mas os articulistas da Veja insistem, e acusam o MEC de “inibir a iniciativa privada”, “asfixiar as instituições particulares, submetendo-as ao ‘controle da sociedade’”, e até de “dar vazão a sua ideologia anti-negócios” (sic), pérola esta merecedora de entrar nos anais das contribuições brasileiras à história das ideologias. Como se vê, o único que interessa a Veja é ampliar o escopo dos “negócios”, de qualquer natureza, não importando-lhe que o alvo pretendido seja um bem público, a educação, de importância estratégica para a existência e desenvolvimento da Nação, a educação superior.

O Estado de S. Paulo coincide com a Veja em que o projeto teria características “soviéticas” (re-sic). Pela pena de Denis L. Rosenfield (O Estado de S. Paulo, 24/01/05), declara que o projeto de lei “pretende abolir o mérito como critério de conhecimento” (?) e, para que fique claro não se tratar de um lapsus linguae, insiste, no final do artigo, em criticar uma orientação que estaria “rebaixando o seu nível e desconsiderando o mérito como valor universitário central”. Na verdade, o único nível rebaixado é o do articulista. Segundo sua concepção, a universidade seria, essencialmente, um campo concorrencial meritocrático. Dizer que o conhecimento é função do famigerado “mérito” é ver o mundo de ponta-cabeça, qualquer que seja a teoria do conhecimento que se defenda. O pior é que se diz que o mérito, assim (in)compreendido, seria “o valor universitário central”. E dizer que a universidade não possui nenhuma função social, perante a sociedade que a sustenta, o que tem claras implicações tanto para a produção de conhecimento quanto para a gestão institucional, significa proclamar o parasitismo intelectual, a serviço objetivo da situação, como o nec plus ultra do fazer universitário.

Maria Helena de Castro, apresentada como “ex-braço direito do ex-ministro Paulo Renato”, afirma (O Estado de S. Paulo, 23/01/05) “não saber de onde vai sair tanto dinheiro” (para financiar o projeto). O dinheiro, que nem é tanto assim, está diante dos nossos olhos, como fração reduzidíssima dos gastos estatais no financiamento dos juros e ganhos especulativos do setor financeiro (leia-se bancos), por meio do pagamento das dívidas externa e interna. Mas é claro que para a “ex do ex”, isso também constituiria uma expressão da “ideologia anti-negócios”.

O fato de o MEC tentar regulamentar, timidamente, a expansão selvagem de cursos sem condições de qualidade mínima, determinando que novos cursos somente poderão ser abertos se comprovada a sua necessidade social, leva Maria Helena a concluir que está em marcha “um neo-corporativismo, que o Brasil está inventando para definir o que é necessidade social”. Preocupada com a suposta “mediocridade” das universidades federais (somente resgata como “sérias” a UFRGS e a UFMG) propõe, no entanto, luz verde para a livre expansão de cursos privados nas mais diversas áreas, para os quais o qualificativo de “medíocre” seria um caloroso elogio. Isso já mede a “seriedade” dessa crítica.

Amplo destaque, no mesmo jornal e no mesmo dia, foi dado a artigos do ex-ministro Paulo Renato, e de Cláudio de Moura Castro e Simon Schwarzmann. O primeiro releva algumas evidentes incoerências, no entanto secundárias, do projeto, para finalmente defender uma linha central: a aplicação da “lei de responsabilidade fiscal”, nas IES, o que implicaria num achatamento salarial generalizado e, para implementá-lo, a eliminação da isonomia salarial de professores e funcionários, generalizando as “diferenciações por mérito ou desempenho”. Igual critério deveria ser aplicado para o financiamento das universidades públicas, que deveria depender da concorrência meritocrática entre elas. Do que estariam livres, felizmente, as universidades privadas, que têm outros mecanismos de financiamentos, as mensalidades sem limite e as isenções fiscais e tributárias, que em nada dependem do seu famigerado “desempenho”, e em tudo dependem da sua força como lobby corporativo capitalista. E essa gente tem a empáfia de se arvorar em crítica do corporativismo (nem que seja por meio de seu “braço direito”) e em defensora de uma universidade pública dotada de “liberdade acadêmica”! Que liberdade acadêmica poderia existir quando pesar sobre cada universidade pública a espada de Dámocles do des-financiamento, em função de um “desempenho” medido segundo critérios impostos de modo autoritário e violatório da própria autonomia da instituição?

Cláudio de Moura Castro e Simon Schwarzmann, no outro artigo mencionado, batem nas mesmas teclas citadas, e acrescentam alguma que outra pérola de leur propre accabit. As cotas, por exemplo, “entram em cena quando já é muito tarde” (teriam sido úteis em tempos da Abolição?); defendem as fundações de direito privado (mecanismo de “privatização branca” das universidades públicas), ainda que reconhecendo “problemas (em) algumas” (“problemas” – em quase todas - que, no caso das estaduais paulistas, motivaram a intervenção do Tribunal de Contas e a quase instalação de uma CPI!).

Arremetem contra qualquer mecanismo de gestão democrática, denunciado como uma peculiaridade latino-americana, responsável pelo “desempenho precário” das universidades de nosso continente. Será que essas pessoas fazem alguma idéia ou pensam um pouco sobre o que estão falando? Preferiam as universidades em mãos do clero ultra-montano anteriores à Reforma Universitária de 1918? E pedem “liberdade”, sim, consistente na “liberdade e estímulo ao crescimento da educação superior privada” (sic). Ou seja, que o Estado deveria se des-responsabilizar da mesma, e repassar seus minguados caraminguás aos coitados dos empresários educacionais, que andam precisando de “estímulos” para “crescerem” e serem “livres”.

A enxurrada de críticas da direita burguesa ao Projeto de Reforma Universitária do governo Lula está a serviço de uma pressão parlamentar-institucional para torná-lo mais privatista e anti-democrático do que já é. Por isso, são todas do (baixíssimo) nível exposto. O ANDES-SN declara sua oposição ao projeto por motivos radicalmente opostos: por estar em defesa de uma universidade pública, gratuita, laica e de qualidade, autônoma, democrática, socialmente responsável e que, em pleno uso da sua liberdade acadêmica, discuta interna e externamente, as melhores vias, em todos os aspectos da sua atividade, para estar a serviço das necessidades da Nação e das maiorias populares. O ANDES-SN não chora, luta.

* Vice-Presidente do ANDES – Sindicato Nacional. 

Fonte: ANDES-SN, 26/01/2005.


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