TRANSPOSIÇÃO - O governo Lula foi uma decepção

Às margens do Velho Chico, a água que nem chega à casa do povo será desviada para abastecer o agronegócio.

 


Resina, povoado na foz do Rio São Francisco, em Sergipe: modernização do campo empurrou os antigos camponeses meeiros para a pesca e a miséria

O ano de 2005 será lembrado como aquele em que uma greve de fome conseguiu frear um projeto do governo federal apoiado por diversas oligarquias e pelo capital internacional. Nos 11 dias de jejum, frei Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese de Barra (BA), atraiu a atenção do Brasil para a sua causa: impedir o início das obras de transposição do Rio São Francisco. Passados três meses do protesto e uma audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto está paralisado e o governo prometeu realizar um amplo debate sobre o tema.

Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, frei Luiz explica que não aceita a megaobra porque ela não vai beneficiar os pobres e sim grandes empresários e latifundiários. Para ele, faz-se necessário promover o desenvolvimento do Nordeste brasileiro por meio de políticas de convivência com o clima local. Por outro lado, a população que vive às margens do Rio São Francisco vê a sua sobrevivência ameaçada pela falta de consciência do poder público e irresponsabilidade das grandes empresas que poluem as águas. Ao não interferir neste quadro, o presidente Lula frustrou a esperança de frei Luiz. Pior, trouxe decepção com a retomada do projeto de transposição, uma proposta colocada na pauta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. 

Brasil de Fato - Como começou sua história com o Rio São Francisco?

Frei Luiz Flávio Cappio - Minha ligação começou quando vim para o sertão da Bahia, há 32 anos. Devagarinho fui percebendo como o São Francisco é importante para a vida do povo que depende, para a sua sobrevivência, da vida do rio. A vida do rio foi ganhando importância na medida em que para o povo ele passou a ser uma questão de vida e de morte. Dessa forma, lutar pelo rio era lutar pelo povo. E fomos percebendo que o São Francisco estava ficando cada vez mais doente e que isso seria fatal para a população. Sendo assim, assumimos a causa pela vida do rio e pela vida do povo.  

BF - O que o senhor pode contar da caminhada que fez da nascente até a foz do Velho Chico?

Frei Luiz - Levamos dois anos nos preparando. O projeto era fazer um trabalho realmente bem-feito. A caminhada começou no dia 4 de outubro de 1992, na nascente, e terminou em 4 de outubro de 1993 na foz. O cronograma já tinha sido feito. Sabíamos onde estaríamos todos os dias daquele ano e obedecemos à risca essa programação. Foram atividades muito intensas nos colégios, nas igrejas, comunidades e associações. Tivemos contato com crianças, jovens, adultos, com o poder público, com meios de comunicação... Foi um ano de missão ecológica e religiosa muito intensa e que tinha por objetivo conscientizar a população sobre a importância do rio e a necessidade de preservá-lo. 

BF - E quais foram as suas impressões desse período?

Frei Luiz - Por um lado, reforçamos a consciência do valor do rio para a vida do povo. De outro, ficamos estarrecidos diante do processo de morte em que o São Francisco se encontra. 

BF - O que aconteceu com o rio nesses 32 anos?

Frei Luiz - As condições físicas pioraram muito. No entanto, o nível de consciência da população melhorou bastante. Hoje vemos que existe uma preocupação generalizada com suas águas. A criança na escola já estuda isso, o povo do interior sabe... enfim todos se preocupam com o São Francisco. Infelizmente, o poder público não acompanhou essa mentalidade. As grandes empresas também não. Falta de consciência do poder público e sobra irresponsabilidade das indústrias que jogam toneladas de dejetos químicos na água, causando graves transtornos na vida do rio. Contudo, por parte do povo isso mudou muito. Ele tem outra concepção, tem amor pelo rio e luta por ele.  

BF - A vitória de Lula nas eleições presidenciais mudou esta postura "inconsciente" do poder público?

Frei Luiz - A grande esperança era que a chegada do Lula ao governo federal representasse uma mudança. Tínhamos essa esperança porque o projeto de transposição já vinha sendo cogitado desde o mandato do Fernando Henrique. Mas qual não foi nossa surpresa quando no primeiro semestre do governo Lula o projeto se tornou prioridade. A decepção foi muito grande.

BF - E quando foi que o senhor optou pela greve de fome?

Frei Luiz - Quando vimos que toda a nossa contribuição não foi levada em conta. Não apenas nossa contribuição mas também a sociedade como um todo foi ignorada. Quem sabe, um grito de desespero poderia sensibilizar as autoridades. Foi isso que levou ao jejum e a oração. Dar um grito em defesa do rio porque os argumentos da razão não tinham sido suficientes.  

BF - Como o senhor enxerga, hoje, aqueles dias de greve de fome?

Frei Luiz - Foi muito doloroso mas muito bonito. Conseguimos unir todos aqueles que têm amor ao rio e ao seu povo. E todos que são contrários a transposição e que almejam o bem e o desenvolvimento do Nordeste brasileiro. Portanto, apesar da dor, o protesto teve um lado muito profícuo e fértil pois gerou toda essa luta que agora estamos travando. Luta que não é apenas minha, é de todos que amam o Nordeste.  

BF - Por que a transposição?

Frei Luiz - Esse projeto é absurdo. Somos totalmente contrários a transposição porque a água não será para os pequenos. Além disso, o rio não tem condições de fornecer essa água. Se fosse para os pequenos, para dessedentação do povo e animal, poderíamos até pensar duas vezes. Mas o destino das águas são as grandes empresas, é o capital e o hidronegócio. Por isso, não podemos aceitar de maneira alguma.  

BF - O que deveria ser feito em oposição à transposição?

Frei Luiz - Fundamentalmente, a proposta é levar água para o povo. O povo e os animais devem estar em primeiro lugar no caminho das águas. Mas só água não é suficiente, é preciso terra. Uma reforma agrária. Só a terra não é suficiente, são necessários meios de produção. Os meios de produção exigem educação. Para que se tenha educação, é preciso saúde. Sendo assim, apresentamos um projeto abrangente, contemplando todas as dimensões humanas. Ele é muito rico já que abrange o ser humano como um todo. A água é fundamental mas é apenas um dos elementos. Ela é necessária mas ao lado de outras medidas igualmente importantes e que realmente gerem um projeto de desenvolvimento.  

BF - Para que o senhor convocou um seminário nos dias que antecederam sua audiência, do dia 15 de dezembro, com o presidente Lula?

Frei Luiz - Não quisemos fazer da visita ao Lula apenas um encontro social ou formal. A gente quis ter uma reunião de trabalho e apresentar algo de concreto para o presidente. Tinha que ser algo com sustentabilidade, com força, que tivesse massa e consistência. Por isso, achamos por bem reunir aproximadamente 50 autoridades do São Francisco e do Semi-Árido para opinar e dar sua contribuição. E alcançamos este objetivos. Os documentos que elaboramos estão muito densos e ao mesmo tempo são simples. Tanto é que eles satisfazem os especialistas ao mesmo tempo em que são compreensíveis para os leigos. Por isso, estamos felizes com o trabalho realizado e acredito que os documentos e as informações apresentadas tenham sido muito elucidativos para o presidente Lula. Acho que ele não sabe dessas coisas. Ele só sabe o que lhe dizem. E nós fomos lá para explicar uma visão totalmente contrária daquela que ele sempre escuta. Dessa forma, percebemos que a conversa gerou muita curiosidade no presidente Lula. Tanto é que a nossa entrevista durou duas horas e meia, o que não é comum. Percebemos o interesse dele em saber mais. Embora o presidente estivesse do outro lado, ele queria aprender a nossa concepção uma vez que apresentamos dados com os quais acredito que ele não está familiarizado - não lhe dizem. Portanto, fazse necessário que alguém lhe diga, "não, Lula, é assim, assim e assim...", para que ele saiba o outro lado da questão. 

BF - Dessa audiência também participou o ministro Ciro Gomes (Integração Nacional), o principal interessado na transposição. Qual sua opinião sobre ele?

Frei Luiz - Depois que eu expus os nossos documentos, o Ciro interveio querendo defender a transposição. Ele falou bastante e quando terminou eu disse: "Olha presidente Lula, com todo respeito ao ministro, nós não viemos aqui para discutir a transposição. Não é esse o objetivo da nossa vinda. Estamos aqui para discutir alternativas de convivência com o Semi-Árido. Nesse estágio do debate, nós descartamos de ante mão a transposição. Não viemos aqui para discuti-la. Os dados que Ciro Gomes apresenta todos nós conhecemos, aliás, estamos cansados de conhecer. Não queremos perder tempo com isso. A intenção é ir direto ao objetivo do nosso encontro que é estudar as possibilidades de convivência com o Semi-Árido, independentemente da transposição".  

BF - Com isso, Lula prometeu realizar um amplo debate. A palavra do presidente o animou?

Frei Luiz - Para eles (do governo), esse nosso encontro encerraria o debate. Porém, para nós foi a inauguração. Escrevi uma carta para todos aqueles que participaram do seminário em Brasília, onde explico as três conquistas da reunião. Primeiro, ela representou o início dos debates. Segundo, o projeto de transposição foi paralisado. E terceiro, devemos formular uma agenda de convocação dos vários setores da sociedade brasileira para discutir o assunto. 

BF - Quais serão os próximos passos?

Frei Luiz - O governo deve nos convocar e espero que, ao lado dele, possamos formular uma agenda para vários encontros de discussão. Queremos confrontar nossas idéias. Na reunião, o presidente Lula disse "eu quero que vocês me convençam. Na hora em que fi zerem isso, vou aderir ao lado de vocês". Então, pelo menos, ele deu demonstração que está aberto para conversar. 

BF - No entanto, o professor João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, acha muito difícil haver esse debate. Para ele, o governo não tem como discutir a transposição pois toda a sua argumentação em defesa do projeto está baseada em mentiras. O senhor concorda?

Frei Luiz - A posição deles é essa mesmo. Mas nós vamos com a nossa. E a gente vai se reunir, discutir e conversar. Não quero deixar morrer a esperança. Quero alimentar a chama que fumega. E quero usar de todos os meios possíveis para mostrar a verdade dos fatos. Agora, que eles estão firmes no pensamento deles, isso estão. E nós estamos firmes no nosso. De todo modo, eu acredito que vão honrar as propostas que fizeram porque, afinal de contas, foram eles mesmos que as apresentaram. Se não atenderem ao que propuseram, a gente verá o que fazer 

Quem é

Frei Luiz Flávio Cappio nasceu em 1946 no dia de São Francisco de Assis, 4 de outubro. Paulista de Guaratinguetá, ele foi ordenado frade franciscano em 1971 e trabalhou por três anos na periferia de São Paulo (SP) pela Pastoral Operária. Há mais de três décadas, frei Luiz foi para o sertão nordestino apenas com a roupa do corpo. No dia de seu aniversário de 48 anos, iniciou uma peregrinação de seis mil quilômetros da nascente até a foz do Rio São Francisco, onde chegou exatamente no dia 4 de outubro de 1993. A experiência está retratada no livro O Rio São Francisco - Uma Caminhada entre Vida e Morte. Tornou-se bispo da Diocese de Barra (BA) em 1997, escolhido por não ter outro que se dispusesse a viver na região.

Fonte: BrasildeFato, Luís Brasilino, Ed. n. 149, S. Paulo, 4 a 10/1/2006.


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