Mais vivo que nunca
Sidarta Ribeiro*

 

Muitas vezes agredido por quem nunca leu suas obras, Freud tem teorias
corroboradas pela comunidade acadêmica

 

Único cientista além de Einstein a virar ícone pop, Sigmund Freud entendeu cedo que o abismo entre biologia e psicologia era intransponível com os métodos experimentais do século XIX. Voltando-se para a psiquiatria, Freud questionou a existência do "germe" da doença mental, obsessão de sua época. Ao buscar causas mentais para sintomas comportamentais, descobriu que a análise do pensamento em fluxo livre revela a formação, associação e repressão de memórias. Descobriu também que o sonho é portal privilegiado para acessar memórias inconscientes, gerando uma obra original de vastas implicações.

Embora na infância se acreditasse destinado a grandes feitos, Freud experimentou críticas e insegurança durante boa parte da idade adulta. Incomodou muita gente, dos neuroanatomistas aos puritanos, dos nazistas ao Vaticano. Mesmo em seu círculo íntimo enfrentou o afastamento freqüente de colaboradores. Controvertidas na Europa, suas idéias impactaram a psiquiatria americana, interessada na relação entre sonho e delírio psicótico. Mas o advento das drogas antipsicóticas nos anos 50 acabou por solapar o último bastião científico da psicanálise. Se o bloqueio da ação da dopamina controla crises psicóticas, psicose não é sonho e sim excesso de dopamina... Desde então tornou-se comum ver Freud agredido por quem nunca leu nada dele. Por outro lado, o movimento neo freudiano de Erich Fromm e Karen Horney propôs a eliminação de todas as conexões com a biologia. E assim foi que a psicanálise, concebida por um sagaz neurobiólogo, cresceu restrita às ciências humanas.

Hoje vemos que a grande contribuição de Freud talvez não seja a clínica. É claro que ouvir o paciente ajuda, mas ioga, Prozac ou uma nova paixão também aliviam sintomas neuróticos. Um biólogo diria que há mil maneiras de alterar o equilíbrio fino dos neurotransmissores que regulam a percepção e a emoção. Um psicanalista retrucaria que compreender a mente em (dis)função é tão ou mais interessante que a cura em si.

Inofensiva discórdia, pois é a ciência que converge célere para Freud, reconhecendo que várias de suas metáforas correspondem a processos neurais concretos. O inconsciente é o conjunto de todas as memórias, que reverberam durante os sonhos e são reprimidas por regiões específicas do cérebro quando muito desagradáveis.

Acaba de ser aceito no Journal of Neuroscience um artigo que corrobora a relação entre sonho e psicose. O estudo do ganês Kafui Dzirasa e colaboradores (entre os quais me incluo), realizado no laboratório de Miguel Nicolelis na Universidade Duke, Estados Unidos, demonstra que o aumento dos níveis de dopamina em camundongos gera estados psicóticos na vigília que se parecem com o sono REM, fase em que os sonhos ocorrem. Se psicose é dopamina e dopamina é sonho... então psicose é sonho!

No Congresso Europeu de Neurociências de 2006, às margens ensolaradas do Danúbio, Freud foi mencionado algumas vezes. Coisa impensável até outro dia, os 150 anos de nascimento do mestre anunciam seu regresso triunfal à biologia.  

* Sidarta Ribeiro é Ph.D. em neurobiologia pela Universidade Rockefeller e pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN). Fez pós-doutorado na Universidade Duke (2000-2005) investigando as bases moleculares e celulares do papel do sono e dos sonhos no aprendizado.

 

Fonte: Rev. Mente&cerebro, ed. 164, setembro/2006.


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