História
A segunda morte de Castello Branco

 

Documento secreto obtido por ISTOÉ coloca sob suspeita investigações sobre desastre
aéreo que matou o presidente. Promotor defende reabertura do caso. Foi atentado? 

A colisão aérea que matou um presidente da República e mudou o rumo da história política do País vai sair das sombras dos arquivos para ser reaberta à luz do dia, quase 40 anos depois. ISTOÉ teve acesso com exclusividade ao relatório secreto feito pelos oficiais do regime militar (1964-1984) sobre a queda do avião em que viajava o marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Produzido pelo Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, datado de 21 de novembro de 1967, o documento de dez páginas jamais viera a público. Suas apurações repletas de falhas e conclusões superficiais fizeram com que o procurador da República Alessander Wilson Cabral Sales, do Ceará, entrasse com uma ação civil contra a União para obter informações mais detalhadas sobre o caso. “O Ministério Público não acredita que um acidente que vitimou um presidente da República tenha sido analisado de forma tão superficial”, diz ele. As falhas na apuração do acidente permitem a interpretação de que o que houve foi, de fato, a tentativa de acobertar um atentado – e não o de elucidar um acidente.

 

AJB
Colisão de interesses: ele faria um pronunciamento criticando Costa e Silva. Morreu dias antes, quando o avião em que viajava foi atingido por um caça.

“Os militares construíram uma mentira”, definiu à reportagem o comandante Emílio Celso Chagas. “Esse caso tem de ser esclarecido. Ainda é possível.” Ele tinha 20 anos de idade e era o co-piloto do bimotor Piper Aztec PA 23 com sete pessoas a bordo. Tratava-se do marechal Castello Branco, quatro acompanhantes, o próprio Chagas e seu pai, Celso Tinoco Chagas, que pilotava o avião. À exceção de Chagas, que sobreviveu milagrosamente, todos morreram. O avião caiu na manhã de céu azul de 18 de julho de 1967. Foi abalroado em pleno vôo por um caça militar. Nas vésperas de morrer, Castello Branco anunciara a realização de um pronunciamento à Nação. Aguardava-se, na fala que não chegou a acontecer, um posicionamento do chefe militar sobre o destino do País. A tensão era crescente. Havia tortura nos quartéis, protestos civis fora deles e uma luta interna entre os militares da chamada linha dura contra a corrente dos moderados. Castello Branco fora escolhido pelos generais para ocupar a Presidência da República a partir do golpe militar de abril de 1964. Considerado um moderado, favorável até mesmo à volta do poder político às mãos de um civil, retirou-se do Palácio do Planalto em 15 de março de 1967. No processo sucessório, foi pressionado a passar a faixa presidencial para o general da linha dura Arthur da Costa e Silva. Inimigo de seu sucessor, Castello Branco estava resolvido a contra-atacar. Uma palavra pública dele contra Costa e Silva poderia rachar a tênue unidade entre os militares, aquecer os ânimos da oposição civil e, assim, sacudir a história.  

Na clara manhã de 18 de julho, porém, o avião que levava o marechal da cidade de Quixadá, no interior do Ceará, onde ele visitara a romancista Rachel de Queiroz, a Fortaleza, foi atingido na cauda por um caça militar T-33. Naquele instante, outros três T-33 da mesma esquadrilha voavam em sua companhia. O caça militar conseguiu retornar à sua base e pousar com uma leve avaria. O bimotor com Castello Branco a bordo caiu em “parafuso chato”, na linguagem aeronáutica, de uma altura de 1,5 mil pés (450 metros). Chagas lembra-se nitidamente a agonia e pânico antes do impacto com o solo. “O marechal gritou para meu pai: comandante, pelo amor de Deus, faça alguma coisa”. Foi em vão. Os ocupantes, à exceção do que escapou por milagre, morreram quando a aeronave atingiu o solo. O marechal Castello teve seu corpo compactado.

O documento que, segundo a Aeronáutica, reúne toda a investigação sobre o caso é assinado pelo tenente-brigadeiro-do-ar Araripe Macedo. Em lugar de esclarecimentos, a peça abre lacunas suspeitas. Entre os pilotos da esquadrilha da fumaça, o único nome que aparece no relatório é o do estagiário de pilotagem Alfredo Malan D’Angrone. Com apenas 29 horas de vôo naquele tipo de avião, ele foi responsabilizado singularmente pela colisão. D’Angrone depôs por oito horas sobre o caso, numa única interpelação, mas a íntegra de suas declarações nunca foi divulgada pela Aeronáutica. Tudo o que se sabe é que D’Angrone admitiu que foi o avião em que ele estava que se chocou contra a aeronave civil. Muitos fatos estão sem explicação. Por que os militares que conduziram as investigações não tomaram depoimentos dos outros pilotos da esquadrilha? Eles, muito provavelmente, foram testemunhas oculares da colisão, uma vez que, quase sempre, voam agrupados. Igualmente é um mistério o motivo de os nomes deles jamais terem aparecido ao longo das investigações. Como os caças T-33 têm espaço para co-piloto, será que os comandantes das aeronaves voavam com parceiros a bordo? Não se entende, ainda, por que os controladores de vôo que estavam de serviço naquele dia nunca foram ouvidos sobre a colisão.

Do relatório oficial, retira-se que o caça atingiu o avião civil num ponto nevrálgico. O próprio caça, porém, estava com um de seus tanques vazio no momento do choque, justamente o que se localiza na asa que bateu no Piper Aztec. Fotografias em poder de ISTOÉ indicam que o avião em que Castello Branco viajava não caiu na vertical, como sustenta o relatório, mas “de barriga”. Nelas vê-se que o aparelho ficou com muitas de suas partes intactas. Outras fotos, porém, captadas numa espécie de galpão, mostram que o que sobrou do Piper foi destruído a golpes de marretas, com suas partes descontinuadas e despedaçadas.

O historiador cearense, Pedro Paulo, que há 20 anos pesquisa o desastre, acredita que a colisão tenha sido caso pensado. Há no campo das teorias conspiratórias os que creêm que o estagiário pode ter sido usado como o bode expiatório de um complô militar. Duvidam até mesmo que ele tenha sido o piloto do caça, com chances de estar apenas no papel de co-piloto. Por esta linha de hipóteses, o avião em que Castello Branco viajava foi abatido propositadamente, num típico atentado. Para que o avião agressor pudesse pousar em segurança, o movimento de ataque teria de ser efetuado por um piloto experiente, o que renova as suspeitas sobre a não identificação dos demais integrantes da esquadrilha da fumaça que voavam no dia.

Como se sabe, os participantes desse tipo de esquadrilha são peritos em shows aéreos, nos quais manobras radicais são executadas com precisão milimétrica. Ases e heróis. As enormes brechas na investigação oficial, que incluem a falta de explicação para o choque num dia de céu claro e sem nuvens, levantam a suspeita de que, em plena ditadura militar, alguns deles tenham se transformado em pilotos de guerra. As falhas no relatório não foram suficientes para tirar o prestígio do brigadeiro Araripe Macedo entre os militares da linha dura. Ele tornou-se ministro da Aeronáutica durante as gestões dos presidentes Emílio Médici e Ernesto Geisel. Ou será que foram exatamente aquelas brechas que contribuíram para aumentar-lhe o moral? Araripe Macedo morreu em 1993.

“Tenho procurado, todos esses anos, mais explicações oficiais para o acidente, mas jamais a Aeronáutica me deu qualquer tipo de informação”, reclama o comandante Chagas. Tudo o que chegou às mãos dele, mesmo assim informalmente, foi um documento com poucas páginas, quase 40 anos depois de ter perdido seu pai na queda. “Há mais informações oficiais”, acredita o procurador Cabral Sales. É para que elas venham à luz que ele resolveu entrar com a ação civil pública para a União dizer se há mais arquvos secretos. Neles podem estar os nomes dos integrantes da esquadrilha da fumaça que não aparecem no relatório de Araripe Macedo. Talvez estejam vivas. Certamente sabem a verdade.

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Fonte: Rev. IstoÉ, Alan Rodrigues, 13/12/2006.


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