Multiversos
Marcelo Gleiser*

 

Nosso Universo pode ser apenas um entre muitos numa sopa cósmica

Nebulosa de Órion    

O título da coluna de hoje parece sugerir alguma relação com a poesia, um poema de versos múltiplos ou algo do gênero. Bem, se existe poesia na idéia de multiverso, ela vem mais da metafísica do que das artes literárias. Ou da física.

Um dos objetivos da física é descrever os fenômenos observados na natureza por meio de leis gerais, aplicáveis em situações aparentemente distintas.

Um exemplo famoso é o da gravidade: a lei da gravitação universal de Newton explica como uma maçã cai no chão e a órbita de planetas e cometas em torno do Sol.

Que a queda de maçãs e a órbita de planetas resultem dos mesmos princípios físicos ilustra o poder e a mágica da ciência.

A teoria de Newton, assim como todas as outras, usa "constantes fundamentais", números que regem o comportamento das forças e dos sistemas físicos, dos elétrons às galáxias.

Existem apenas algumas constantes fundamentais. Uma delas é a constante gravitacional, "G", que estabelece a intensidade da força gravitacional; outra é a carga do elétron, "e", que estabelece a intensidade mínima da força elétrica entre objetos. Todas as constantes fundamentais têm seus valores medidos em laboratório.

Físicos são ambiciosos; gostam de explicar tudo o que podem. Será possível construir uma teoria que explique o valor das constantes fundamentais? A possibilidade é sedutora.

Em vez de simplesmente usarmos os valores de "G" e "e" medidos no laboratório, poderíamos explicar por que têm os valores que têm. Seria uma espécie de metateoria, a teoria que explicaria todas as outras teorias.

Durante as duas últimas décadas, nosso conhecimento do Universo teve um salto.

Sabemos qual a sua idade (cerca de 14 bilhões de anos) e sua geometria (plana, com 1% de precisão); sabemos que está em expansão acelerada, embora não saibamos qual é a causa dessa expansão.

Uma das suas conseqüências, no entanto, é a criação de "horizontes". Dado que a velocidade da luz, "c", outra constante fundamental, é a velocidade máxima com que informação pode viajar, num Universo com um tempo finito de vida podemos apenas receber informação de uma porção limitada do espaço: fontes de luz além desse horizonte passam despercebidas.

O mesmo ocorre com pessoas à beira-mar, que não podem ver além do horizonte. O Universo estende-se muito além do que podemos medir.

Outra conseqüência da expansão cósmica é que, muito perto da origem do tempo, o universo era minúsculo, com proporções comparáveis às de um átomo.

A física que descreve átomos é bem diferente da física do dia-a-dia. Elétrons nunca ficam parados: sua posição e, conseqüentemente, sua energia, flutua o tempo todo.

Se o cosmo tinha dimensões atômicas, obedecia às mesmas leis; sua energia também flutuava. Flutuava tanto que poderia até gerar outro Universo.

A imagem usada é a de uma sopa de Universos, o nosso sendo apenas um deles. Portanto, além do nosso horizonte, podem existir outros Universos.

O conjunto desses Universos, o metauniverso, é o que chamamos de multiverso. É possível que as constantes fundamentais tenham valores diferentes em cada um deles.

O nosso seria um exemplo em que os valores "deram certo", quer dizer, que permite que a vida seja possível. E em outros universos? O nosso é um caso especial?

Ainda não sabemos. A metateoria que explica as propriedades do multiverso está nos seus primórdios. Seria bom se pudéssemos ter algum modo de testá-la. Só então metafísica poderia virar física.

 

* Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo".

 

Fonte: Folha de S. Paulo, 21/1/2007.


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