Economia
Nem na ditadura foi assim

 

Afastamento de técnicos instala clima de caça às bruxas no Ipea

 


Reis Velloso (à esq.) presidiu o Ipea no regime militar, quando não houve atitudes como a de Pochmann (no alto, à dir.) contra Giambiagi (á dir.)

 

Desde a sua fundação, em 1964, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) se notabilizou por ser um espaço de livre circulação de idéias. Criado no primeiro ano do regime militar para subsidiar a formulação de políticas de longo prazo, sempre abrigou pesquisadores das mais diversas tendências de pensamento. A única exigência era a alta capacitação intelectual. Ao longo dos últimos 43 anos, publicou trabalhos críticos à condução de programas de governo, sem que seus autores sofressem algum tipo de represália. Na semana passada, o novo presidente do Ipea, Marcio Pochmann, tomou uma atitude contra o pluralismo, marca de excelência da instituição. Foram afastados quatro pesquisadores. Em comum eles têm, além de reconhecida competência, uma visão econômica liberal não coincidente com a linha de pensamento da atual direção do Ipea. "Nem a ditadura teve coragem de fazer no instituto o que o governo Lula está fazendo agora", diz a cientista política Lucia Hippolito. 

Os afastados são os economistas Regis Bonelli, Fabio Giambiagi, Otávio Tourinho e Gervásio Rezende. Todos defendem a redução do papel do estado na economia e se manifestaram contra o excesso de gastos do governo. Giambiagi é autor de estudos que esmiúçam a crise da Previdência Social e deixam clara a necessidade da conclusão da reforma previdenciária. Trata-se de posição diametralmente oposta à defendida por Pochmann e, principalmente, pelo diretor do departamento de macroeconomia do instituto, João Sicsú. Este, por sinal, um defensor do aumento do número de funcionários públicos no Brasil – em artigos recentes, ele sustentou que o estado brasileiro é "nanico". 

Pochmann e Sicsú chegaram à cúpula do Ipea pela mão do ministro extraordinário de Ações de Longo Prazo, Mangabeira Unger. Fazia alguns meses que já se especulava sobre uma caça às bruxas no Ipea. Pochmann disse a VEJA que as dispensas não tiveram motivação ideológica: "Foram medidas meramente administrativas". O argumento é curioso. Giambiagi e Tourinho, por exemplo, estavam cedidos ao Ipea pelo BNDES, que continuava a pagar seus salários. Num país que tem carência de cérebros, não é crível a justificativa burocrática. O ex-ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso, que presidiu o Ipea desde sua criação até 1979, orgulha-se da liberdade ali exercitada. "Até aqui sempre se manteve o objetivo de preservar o Ipea de influências políticas. O instituto trabalhou com liberdade de opinião e de criação. Muitos dos principais economistas da oposição trabalhavam lá", lembra. 

A notícia do afastamento dos quatro economistas revive a inclinação autoritária do governo do PT. Durante o primeiro mandato de Lula, foi extinto de supetão o departamento econômico do BNDES, setor responsável pela elaboração de estudos que serviram de base para programas fundamentais na modernização da economia brasileira, como as privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso. Tanto naquele episódio quanto agora, o que está em jogo é a oposição entre o pensamento econômico liberal e o desenvolvimentista. São visões excludentes em ações de governo, mas não em instituições que têm como função produzir análises que ajudem a compreender a realidade brasileira. Nestas, as diferenças só enriquecem o debate. No Ministério das Relações Exteriores, ocorreu algo semelhante. O embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Roberto Abdenur, foi removido do cargo e empurrado para a aposentadoria por manifestar, durante uma palestra, opinião divergente da de Celso Amorim sobre as relações com a China. O secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, instalou um clima de perseguição no ministério e promoveu absurdos como a doutrinação dos novos diplomatas, tornando obrigatórias leituras de viés ideológico afinado com seu pensamento. 

Ao longo de sua história, o Ipea sempre exerceu o papel de consciência crítica dos governos. Aparelhá-lo é matar uma instituição respeitada internacionalmente. Um episódio protagonizado pelo próprio Regis Bonelli ilustra a saudável tradição de liberdade de expressão. Em 1974, ele e o ex-ministro Pedro Malan (então um técnico do Ipea) publicaram um artigo em que criticavam diretamente o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, editado pelo governo Geisel. Afirmaram que os efeitos da crise do petróleo de 1973 estavam subestimados. Nada sofreram. A história lhes deu razão.

 


UM ESPAÇO PLURAL

Fundado em 1964, o Ipea sempre se caracterizou pela independência de pensamento em relação ao governo. Ao lado, alguns exemplos

Nos anos 70, quando o governo Médici tinha no milagre econômico sua principal peça de propaganda, o Ipea levantava a discussão sobre distribuição de renda, a partir de um artigo do economista americano Albert Fishlow, que trabalhou no instituto.

 
 

Em 1974, os economistas Pedro Malan e Regis Bonelli alertaram para uma falha fundamental no 2º Programa Nacional de Desenvolvimento (PND), grande aposta do governo Geisel: a subestimação dos efeitos da crise do petróleo de 1973.

O Ipea coordenou os estudos que resultaram na descoberta dos cerrados como nova fronteira agrícola brasileira. Tanto o Ministério da Agricultura quanto o do Interior subestimavam esse potencial.

 

O Bolsa Família, principal programa do governo Lula, teve a contribuição decisiva do economista Ricardo Paes de Barros. Foi ele quem sugeriu a unificação de todos os programas sociais do governo.
 

 

Fonte: Rev. Veja, Ronaldo França e Ronaldo Soares, ed. 2035, 21/11/2007.

 


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