AS NOVAS FACES DA REFORMA UNIVERSITÁRIA DO GOVERNO LULA E OS IMPACTOS DO PDE PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR

 

Diretoria do ANDES-SN
 

INTRODUÇÃO 

O governo federal lançou, em 24 de abril de 2007, o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), dando seqüência à sua contra-reforma da Educação pública. Trata-se de um conjunto de decretos, projetos de lei, resoluções e portarias, incluindo também uma portaria interministerial (MEC/MPOG). Segundo as análises realizadas pelo Grupo de Trabalho Política Educacional (GTPE) do ANDES-SN, o PDE dá continuidade, de uma forma extremamente autoritária, à reforma universitária já em andamento, que foi iniciada com várias ações claramente favoráveis à iniciativa privada, tanto na Educação quanto na área da Tecnologia, como o PROUNI e a Lei de Inovação Tecnológica. 

Para compreender o alcance das ações do governo, a Diretoria do Andes-SN entende que é necessário situá-las no contexto mais amplo em que ocorrem. Apresenta, portanto, sua análise de dois desses Decretos, e da Portaria Interministerial 22/07 que instituiu o “Banco de Professoresequivalente”, três das medidas legais do PDE que afetam diretamente o sistema federal público de Educação Superior, precedida por uma breve avaliação da conjuntura. Tal análise é fortemente baseada em contribuições do GTPE. 

1. OS FUNDAMENTOS DO PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO DO GOVERNO LULA

1.1) A reforma do estado brasileiro 

Existe uma variedade de documentos de organismos internacionais (Organizações das Nações Unidas, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio) os quais, confrontados com ocorrências posteriores, em especial, nos países “em desenvolvimento”, marcam a influência danosa de “recomendações” de tais organismos sobre o desenvolvimento soberano destes países. Uma agenda de reformas estruturais foi, na prática, imposta aos países denominados de ‘mercados emergentes’, com o objetivo de atender às demandas do capital no que concerne ao fornecimento de energia, à exploração dos recursos naturais, renováveis e não renováveis, e, antes de tudo de instaurar uma lógica de propriedade intelectual que possibilitasse o controle sobre todas as formas de produção humana, sempre a favor dos países hegemônicos, em especial, os do chamado G7. O “Consenso de Washington”, estabelecido em 1989, é instrumento importante para a implementação deste objetivo.  

No caso brasileiro, no período seguinte à promulgação da Constituição de 1988, surgiram as primeiras articulações em torno das exigências dos organismos internacionais que, para serem atendidas, demandavam mudanças na carta magna. O processo retardou um pouco devido à incapacidade de Collor de Mello em liderar a aglutinação de forças políticas que foi aguçada pela crise que paralisou seu governo até a cassação. É com o Plano Real que se torna possível, já sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, na época ministro de Itamar Franco, uma coesão das forças conservadoras em torno da agenda neoliberal. Em agosto de 1995, o Congresso Nacional aprova a Emenda Constitucional nº 6, proposta por Fernando Henrique Cardoso, que introduz modificações no capítulo da ordem econômica, substituindo o conceito de empresa nacional por empresa constituída sob as leis brasileiras e com sede no território nacional e a estas concede o direito de serem concessionárias dos monopólios estatais, desde a exploração mineral até a produção de serviços. Com isso, empresas multinacionais passaram a ter acesso à exploração do subsolo e á participação em todo o processo de privatizações de empresas estatais que se seguiu.

Na seqüência da liberalização do Estado, o governo Fernando Henrique Cardoso aprova uma lei de propriedade intelectual que representa um freio às possibilidades de desenvolvimento autônomo do país, sob o ponto de vista científico e tecnológico. Em 1998, ainda sob FHC, o então Ministério da Administração e Reforma do Estado, na gestão de Bresser Pereira, executa uma reforma na qual praticamente todos os setores de infra-estrutura, que davam sustentação à máquina do Estado brasileiro, são privatizados ou terceirizados. As vagas deixadas pelos servidores públicos aposentados, falecidos ou afastados não foram mais preenchidas e um exemplo do resultado desta política pode ser visto na categoria dos docentes das universidades federais que acumula um déficit de 8.000 vagas. 

Houve a “delimitação das funções típicas do Estado”, reduzindo seu tamanho, em termos principalmente de pessoal, por meio de programas de privatização, terceirização, mas, especialmente, por meio daquilo que se pode chamar de 'publicização' (este último processo implicando na transferência de atividades e recursos para o setor público não-estatal – tomado como sendo as “organizações sociais de interesse público”) - dos serviços sociais e científicos que o Estado ainda presta. (Cadernos MARE da reforma do Estado – no 1 – Brasília/DF, 1997, p.18). De acordo com a doutrina aplicada, que se convencionou chamar de ‘neoliberal’, substitui-se o conceito de direito social – Artigo 6° da C.F./1988, que o define como direito de todos e dever do Estado – pelo de “serviço sociais e científicos”, com o entendimento de que os investimentos na infra-estrutura e na execução desses serviços não seriam mais, a rigor, obrigações exclusivas do Estado. 

Dentre esses chamados “serviços sociais e científicos” estão: escolas, universidades, centros de pesquisa científica e tecnológica, creches, ambulatórios, hospitais, etc., atividades essas que dizem respeito aos direitos sociais, mas que passam a ser concebidos como atividades sujeitas à “constituição de quase mercados”, segundo argumentação nos documentos do MARE. 

As reformas, promovidas ao longo dos dezessete anos que se seguiram às primeiras investidas efetivadas pelo governo Collor, reconfiguraram, de fato, a estrutura da organização do Estado brasileiro em três grandes blocos. O primeiro ficou caracterizado como o bloco das ‘funções típicas de Estado’, que se resumem à segurança nacional e interna (forças armadas e de repressão), à emissão de moeda (Banco Central, Casa da Moeda), ao corpo diplomático (Itamarati) e à fiscalização (Receita Federal, Ibama). 

Em um segundo bloco foram agregadas as instituições das áreas de Saúde, Cultura, Ciência e Tecnologia e Educação. O objetivo era, e ainda é, transformar todos os órgãos públicos desse bloco, como hospitais, museus, universidades e centros de pesquisa em organizações sociais ou em fundações públicas de direito privado, abrindo as portas para o processo de privatização dos recursos humanos e patrimoniais destas autarquias e das fundações que, por enquanto, ainda são de direito público. Muitos desses órgãos públicos já foram, ao longo do tempo, total ou parcialmente ‘publicizados’, ou seja, gerenciados, na prática, por fundações privadas ditas de apoio. 

No terceiro bloco do Estado brasileiro estão as Empresas Estatais dos setores de energia, mineração, telecomunicações, recursos hídricos, saneamento entre outras. Neste bloco da infra-estrutura do Estado, os governos neoliberais, incluindo o atual, aprofundaram a dependência econômica do país em relação às potências hegemônicas, por meio das privatizações, licitações fraudulentas e venda do patrimônio nacional em troca, muitas vezes, de “moeda podre”. 

Vale lembrar que, quanto à pesquisa, antes da implantação da reforma do Estado, algumas Empresas Estatais, como a Petrobrás, Eletrobrás e Embratel mantinham centros próprios de pesquisa de altíssimo nível. Algo sem equivalência no setor privado, mesmo nas empresas com acesso a subsídios constitucionais para essa finalidade. Esses centros de pesquisa das Estatais mantinham estreitas relações com as universidades e institutos de pesquisa públicos, sem maiores arranhões à autonomia universitária. 

Com a privatização das Estatais, foi estabelecida, como um dos braços principais da atual política de Ciência e Tecnologia do país, a criação dos Fundos Setoriais das áreas de energia, telefonia, mineração, transporte, petróleo etc. As agências reguladoras –, ANEEL, Anatel, ANA, ANT, ANP e outras -, criadas pelo governo para intermediar as relações entre os interesses da sociedade e a atuação das empresas privatizadas, passaram a definir os rumos das pesquisas a serem financiadas por estes fundos. Como as agências reguladoras, na verdade, atendem aos interesses do mercado, as pesquisas universitárias financiadas com recursos desses Fundos passaram atender às demandas das empresas. E, no lugar do antigo fomento e suporte direto às universidades e institutos de pesquisa, patrocinado pelos centros de pesquisa das Estatais, foi criado o Fundo de Infra-Estrutura (CT-INFRA), com o objetivo de viabilizar a modernização e ampliação da infra-estrutura e dos serviços de apoio à pesquisa nas instituições públicas de ensino superior e nas instituições públicas de pesquisa, devendo ter como fonte de financiamento 20% dos recursos destinados aos demais fundos. 

Destaque-se que os valores repassados pelos Fundos Setoriais, ao contrário do que é propagandeado por muitas reitorias, não adicionaram, percentualmente, nada – e em muitos casos até chegaram a reduzir – ao que era repassado pelas Estatais, na relação que mantinham entre seus centros de pesquisa e as universidades. A legislação, inclusive, já previa que as Estatais deveriam destinar parte de seus recursos para a formação de profissionais e para a pesquisa no país. Note-se que, para ter acesso aos recursos dos Fundos Setoriais, as universidades passaram a depender das fundações privadas, ditas “de apoio” para concorrer aos editais de fomento e manutenção. 

Ainda com respeito às fundações de direito privado, a Emenda Constitucional 20/98, do governo Fernando Henrique que criou o regime de emprego público para contratação de novos servidores, com base nas regras da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), facultou-lhes contratar pessoal para atuar nos projetos oriundos das universidades. Neste contexto, são criadas nas universidades novas fundações de direito privado e, no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, as redes nacionais de pesquisa são integradas por entidades majoritariamente constituídas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), uma nova modalidade de organização não governamental (ONG). As Oscips operam nas universidades em convênios ou associações com as fundações de direito privado, utilizando professores, técnicos e estudantes de pós-graduação, além de contratar servidores por tempo determinado ou no regime celetista, nos moldes previstos pelo regime de emprego público.  

1.2) A reforma do Estado na reforma da Educação Superior 

Em todos os três blocos do atual organograma do Estado, fica evidente a decisão governamental de privatizar ou conceder para o setor privado a execução de funções e serviços públicos.  

Neste contexto, a Educação Superior pública, que no Brasil, ainda que tardiamente, estruturou-se sobretudo na forma de universidade, com base na indissociabilidade entre as funções de ensino, pesquisa e extensão, passou a ser questionada com veemência crescente. 

Em realidade, já em meados dos anos 80, ainda durante o governo Sarney, havia sido criado um Grupo Executivo para a reformulação da Educação Superior (GERES), encarregado de elaborar relatório e anteprojeto de lei, visando a reestruturação deste nível de ensino; este, porém, na época, foi engavetado diante da reação dos segmentos sociais organizados, em especial das entidades ligadas à comunidade universitária, com destaque para o ANDES-SN (então, a ANDES). A partir desse período, contudo, ganha força a alegação de que o “modelo único” adotado para a Educação Superior – o da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão -, que, diga-se de passagem, não foi totalmente implementado, nem sequer nas universidades então melhor constituídas (“centros de excelência”), é muito caro, anacrônico e obsoleto. 

No governo Collor, alçado à condição de ministro da Educação, José Goldemberg constrói com sua equipe, constituída por integrantes da comunidade universitária de destacado respaldo acadêmico, argumentação de ataque ao “modelo único” de universidade, defendendo a necessidade de sua diversificação, explicitada sobretudo na idéia da criação de “Universidade de Ensino”, idéia essa que carrega no bojo a perspectiva de elitização da Educação Superior para alguns, promovendo ainda mais a desigualdade social. 

Mas, é apenas no governo de FHC que esta idéia é operacionalizada na forma de “linhas de atuação do MEC”, dentre as quais, “expandir o sistema de ensino superior público através da otimização dos recursos disponíveis e da diversificação do atendimento, valorizando alternativas institucionais aos modelos existentes”. (Planejamento Político – Estratégico 1995/1998; MEC, 1995 p. 26). Tal iniciativa governamental tem referência em uma das diretrizes do Banco Mundial para a Reforma do Ensino Superior nos países em desenvolvimento: “proporcionar incentivos para que as instituições públicas diversifiquem as fontes de financiamentos, por exemplo, a participação dos estudantes nos gastos e a estreita vinculação entre financiamento fiscal e resultados”. (Banco Mundial, La enseñanza superior – Las Lecciones derivadas de la experiencia, Washington, D.C., 1995, p. 4). 

A partir dessa época, a propaganda governamental, auxiliada pela mídia impressa, falada e televisiva, faz com que ganhe força a idéia da flexibilização do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Prova concreta disto são a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n°9.394/96 – LDB), com a previsão de diversas modalidades de instituições de ensino superior, e a formatação deste ensino diversificado, feita por meio dos Decretos n°2.207/97 e n°2.306/97. Estas iniciativas, entretanto, num primeiro momento pouco afetaram as instituições públicas, servindo primordialmente para facilitar ações da iniciativa privada, na direção de maior lucratividade para seus negócios. 

Uma explicitação bastante contundente dessa flexibilização é a defesa feita por Cláudio de Moura Castro (economista do BID, colunista da Revista Veja), que propõe quatro funções para o ensino superior: 1) formar elites – lideranças e críticos às lideranças -, que precisam de ensino, pesquisa e extensão; 2) formar profissionais – dentistas, médicos, advogados, engenheiros, etc. -, função que envolve um longo período de aprendizagem específica; 3) formar técnicos – contadores, técnicos em eletrônica, fisioterapeutas, etc. -, função que demanda cursos de mais curta duração e que devem ter “laços com o mercado”; 4) formar pessoas com educação geral (generalistas), não voltadas para uma única profissão, em áreas que exigem menos investigação. Segundo tal concepção, conforme se pode inferir dos documentos que a explicitam com maior grau de detalhamento, a formação de professores dar-se-ia nessa última função. 

Como se pode ver, por esse breve histórico, foi sendo construído um “lastro” conceitual que “fundamenta” propostas/projetos do tipo: Cursos Seqüenciais; Ensino a Distância (sobretudo para a pretensa formação de professores); e diferentes nuances de “Ciclos Básicos”. Estas propostas têm sido, mais recentemente, contempladas em iniciativas tais como: Universidade Aberta do Brasil (UaB), “Universidade Nova”, proposta surgida como se fosse oriunda da própria academia, etc. 

A contra-reforma da Educação Superior em andamento nutre-se desse processo de banalização dos conceitos e o atual governo incorporou uma nova etapa desta ao seu Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de cunho francamente neoliberal, sob a denominação de Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). 

Dentre outras propostas, constam do PDE dois Decretos, a serem analisados no presente texto em algum detalhe, referindo-se a Planos de Reorganização e Expansão, tanto das Universidades Federais (REUNI), como da Rede Federal de Educação Tecnológica (Rede de IFETs). É de se salientar que, nesta “reorganização” foi atribuído a esta Rede, o importante papel de formação de professores da Educação Básica - sobretudo os de Ciências e Matemática - por fora da Universidade, portanto. 

Na verdade, o PAC precisa ser visualizado como a versão contemporânea, adequada ao atual estágio da circulação capitalista internacional de riquezas e mercadorias, da reforma do Estado brasileiro. Tal como os demais projetos incluídos no PAC, o plano de educação de Lula da Silva também será desenvolvido seguindo os pressupostos da legislação que regula as parcerias público-privadas (PPP). E, como denunciado pelos setores do capital – federações de indústria, agricultura, dentre outras – quanto à falta de recursos previstos para a implementação do PAC, também para o PDE não haverá verbas suficientes e, freqüentemente, nenhuma verba nova para sua execução. 

Caso não ocorra uma mobilização forte, agregando à comunidade universitária os segmentos da população desfavorecidos, que serão atingidos pela elitização adicional diagnosticada nos planos do governo, este novo pacote educacional, consolidará o processo de destruição, em parte, pela privatização interna do ensino, da pesquisa e da extensão nas universidades públicas. 

2. CONCEPÇÕES DE UNIVERSIDADE NO CONTEXTO DO PDE: UNIVERSIDADES DE ENSINO x UNIVERSIDADES DE PESQUISA 

A divisão internacional do trabalho, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, determina, na lógica neoliberal, para o Brasil, como país periférico, a reforma de seu sistema educacional, no sentido de adequá-lo ao seu papel nessa nova ordem

Nesta lógica, as universidades de pesquisa, que demandam alto investimento, corpo docente qualificado e com dedicação exclusiva, só deveriam ser mantidas em pequeno número (os centros de excelência), entre outros motivos, para atender aos interesses do mercado por meio da Lei de Inovação tecnológica. 

Por outro lado, está sendo atribuído um outro papel para a universidade, que não lhe corresponde em outras partes do mundo, qual seja, ser instrumento de profissionalização aligeirada, em cursos de mais curta duração, sem ambiente de pesquisa verdadeiramente acadêmico, constituindo-se na universidade(?!) de ensino

Tal “instituição” já existe largamente no setor privado, ao lado da entidade especialmente criada para este fim específico, que são os “centros universitários”. 

Contudo, está cada vez mais evidente que o governo quer caminhar na direção de, sem lhes tirar o pomposo título, transformar, na prática, muitas das atuais universidades federais também em instituições voltadas apenas ao ensino. Apela, para tanto, à inegável necessidade de democratizar o acesso e promover a inclusão das camadas desfavorecidas da população, mas promove um ensino “pobre para os pobres”, cuja ênfase recai na formação do cidadão trabalhador para a sociedade do desemprego, instituída pelo capital. 

Sociedade esta que se caracteriza pela aceitação do discurso que o emprego como um direito social não existe mais, é uma coisa do passado e que cada um deve ser responsável por garantir sua própria sobrevivência, tornando-se um empreendedor de si mesmo, ou seja, retirando a responsabilidade do Estado, da sociedade e das empresas. A idéia do trabalhador empreendedor assenta-se nos princípios do liberalismo econômico, do vínculo direto da educação com o mercado, numa perspectiva utilitária, pragmática e imediatista. As universidades, neste sentido, devem formar indivíduos polivalentes, flexíveis e adaptáveis. 

Nessa sociedade do desemprego, os indivíduos devem ser convencidos que a educação é um capital humano virtual. A educação, vista exclusivamente como aquisição de conhecimento/informação e de competências claramente mensuráveis, passa a ser um investimento individual que possibilitaria a competição pelos reduzidos postos de trabalho existentes, ao qualificar a força de trabalho que o indivíduo pode disponibilizar para venda no mercado, ou para colocar em prática sua formação empreendedora. 

Como contrapartida à formação apequenada, acena-se com a necessidade de formação permanente, no sentido da capacitação sempre renovada, do desenvolvimento de novas competências, que se constitui num processo de retro-alimentação das formas de ensino reducionistas e aligeiradas, próprias de um mercado flexível e consumista, também na área da Educação, tornando os sujeitos reféns dos cursos da moda. 

Nesse cenário, a crítica à universidade de pesquisa é reforçada apresentando-a como baseada num modelo obsoleto, arcaico, seletivo, excludente e fruto do regime militar, portanto algo que precisa ser rejeitado.  

Esta perspectiva, defendida pelos atuais protagonistas favoráveis aos projetos de reestruturação das universidades brasileiras, omite o papel fundamental das universidades públicas em diversos países do mundo, em especial nos periféricos, como espaço privilegiado para a produção do conhecimento, para o desenvolvimento científico e tecnológico, como instância crítica da sociedade, para o amadurecimento do sujeito político, com formação sólida que o capacite para entender as complexas relações do mundo atual e para influir como propositor na elaboração de políticas públicas e, em alguns casos, tornar-se ele próprio dirigente do processo. 

A dificuldade com o processo em curso no país é que, ao construir a adequação ao novo modelo exigido pelos organismos internacionais – ver, por exemplo, Banco Mundial, “Brazil: Equitable, Competitive, Sustainable – Contributions for Debate (2003) e “Country Assistance Strategy, Brazil, 2004-2007” -, as várias gestões do Executivo Federal, em especial, o governo Lula da Silva, procedem de maneira gradual e com forte apoio propagandístico, dificultando que boa parte dos setores que serão atingidos se apoderem do real conteúdo dos projetos em andamento. Acrescente-se a isto as várias iniciativas de cooptação dos movimentos sociais, em que o governo Lula da Silva é especializado, e temos um quadro de dificuldades, que só mais recentemente começa a se aclarar. 

Assim, houve a tentativa de cooptar largos setores dos movimentos estudantil e docente durante o longo processo de parto do PL 7200/06. Fracassada parcialmente essa investida, em parte devido a contingenciamentos importantes impostos pela área financeira ao longo das várias versões do Projeto de Lei, o Executivo partiu para a efetivação de uma fração das metas originais por meio de Decretos, parte dos quais estão reunidos no PDE, tema principal das análises a serem feitas neste texto. 

Deste modo, o governo, por meio do PDE, busca implantar, para a maioria desfavorecida da população, uma pseudo-educação de nível superior, que poderia ser caracterizada como um pós-médio ou ensino compensatório decorrente da baixa qualidade da educação básica, reforçando e ampliando o mercado para as instituições privadas que vendem cursos rápidos e baratos. A universidade pública de pesquisa, da qual o país e sua população precisam para seu verdadeiro desenvolvimento como nação soberana, será, a partir de tais ações, muito provavelmente, forçada a tentar buscar seus próprios recursos. 

Destaque-se que, se as universidades públicas, em especial as IFES, sucumbirem à cooptação e à coerção, por meio das quais o governo pretende implantar as ações contidas nos Decretos de Reestruturação e Expansão, estas terão um modelo de qualidade de formação igualada àquilo que as instituições privadas produzem, possibilitando, assim, que seja justificado o financiamento público para estas instituições. Estaria atendido o pleito principal de uma luta histórica dos empresários da educação e cuja implementação parece ter avançado nos governos FHC e Lula da Silva. 

3. REUNI, UNIVERSIDADE NOVA e PROFESSOR EQUIVALENTE – FACES DA REFORMA UNIVERSITÁRIA 

Fortes indícios, extraídos da análise geral feita até aqui, embasam a conclusão de que, há pelo menos uma década, prevalece nas esferas decisórias da política nacional a idéia de que à universidade brasileira cabe apenas o papel de difundir e aplicar conhecimentos e tecnologias produzidos alhures. Para atender a essa lógica, a universidade estruturada no tripé ensino-pesquisa-extensão com regime de tempo integral e dedicação exclusiva, além de ser considerada cara, torna-se desnecessária. 

Na urgência da consolidação de novo modelo, o presidente da república instituiu, por meio do Decreto n° 6.096 de 24 de maio de 2007, o “Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)”, que objetiva “criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior, no nível de graduação”, utilizando-se do “melhor aproveitamento da estrutura física e dos recursos humanos atualmente existentes” nestas instituições. 

O objetivo traçado neste Decreto é, definitivamente, incompatível com a qualidade da Educação Superior, pois as precárias condições em que hoje se encontram praticamente todas as universidades públicas brasileiras, tanto em termos de sua infraestrutura quanto de insuficiências em seus quadros docente e técnico-administrativo, não permitem a ampliação do acesso e permanência na educação superior – ainda que esta seja uma luta histórica do Movimento Docente. 

Atualmente, existem salas superlotadas em muitas IFES e IEES, em vista da falta de reposição das vagas docentes, conforme já historiado; há, também, ausência de condições condizentes com a envergadura e importância do trabalho a ser realizado, quer do ponto de vista do apoio técnico, quer das condições físicas das instituições. Esta realidade impede em grande parte o trabalho pedagógico adicional, que seria necessário para recuperar, nem que seja parcialmente, as muitas lacunas que o insuficiente ensino básico tem deixado na maioria dos estudantes que ingressam no ensino superior. 

Tal situação é especialmente deplorável nas condições brasileiras, onde uma expansão da Educação Superior pública, de qualidade, seria essencial para a melhoria qualitativa geral do ensino superior em seu todo, o que, mediante políticas adequadas, poderia propagar-se aos demais níveis. Entretanto, esta meta é impraticável sem que se demonstre, efetivamente, a prioridade conferida à expansão, por meio do aumento substancial do financiamento, conforme será explicitado na Seção 6 do presente texto. 

3.1) O desenvolvimento histórico da proposta 

O histórico do Decreto n°6.096/07 é revelador. Tem início no segundo semestre de 2006, com forte e continuada campanha contra o atual formato do ensino na maioria das universidades, apresentando, para isto, dados estatísticos que não expressam uma análise qualitativa dos aspectos e problemas de que tratam, tais como, por exemplo, os dados sobre a evasão do ensino superior. Dos 40% tidos como evasão, desconsideram-se as transferências, mudanças de curso e/ou conclusão de um mesmo curso com um segundo vestibular, que implica numa nova matrícula, dando a primeira com evadida. 

Nesse caldo de cultura é posta a público a proposta Universidade Nova, tida como originária de uma grande universidade federal e amplamente veiculada como solução contra a obsolescência “diagnosticada” para as universidades do modelo tradicional. Houve um périplo, especialmente do reitor da UFBA, pelas demais IFES, explicando, preferencialmente em Aulas Inaugurais, que a “formação” generalista de um grande contingente de jovens em Ciclos Básicos de 2 a 3 anos, para posterior guindada de uns poucos, peneirados como “os mais capacitados”, até a profissionalização propriamente dita seria a panacéia para todos os problemas diagnosticados. O ânimo propagandístico arrefeceu um pouco quando conseguiu ser difundida a contraargumentação de que, numa situação de contingenciamento de recursos permanente e escassez de vagas na etapa profissionalizante, o Ciclo Básico ranqueador instalado se tornaria, indubitavelmente, um mecanismo adicional de exclusão social. 

Em fins de 2006, começo de 2007, circulou em ambiente restrito, o documento não oficial do MEC com o nome de “Plano Universidade Nova de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras” – projeto de decreto. Já constavam desta versão as “metas” que viriam a caracterizar as exigências do Decerto n° 6.096/07 (REUNI) para as universidades federais: o aumento, em cinco anos, da relação estudantes por professor para 18/1; e da taxa média de conclusão para 90%. Tais metas parecem, pois, elementos pétreos da proposta

Neste documento, o Art. 1º especificava os objetivos do Plano, em sete itens, dos quais a absoluta maioria tentava detalhar como se daria a revisão profunda da estrutura acadêmica, que evitasse uma “profissionalização precoce e fechada”, por meio da “introdução dos ciclos ou níveis de formação”. No sexto destes itens, afirmava-se querer “produzir, por meio de novas arquiteturas curriculares, uma substancial redução das taxas de evasão e aumento de vagas...” No Art. 2º, esta primeira versão (daquilo que se tornaria o REUNI) detalhava, em nove outros itens, as diretrizes específicas para as IFES, a serem apresentadas num edital. Estas diretrizes reafirmavam a indução a ciclos de ensino, à expansão, tanto dos cursos de formação de professores, como daqueles “associados à política industrial e de inovação tecnológica”, em particular. A utilização dos recursos e ferramentas da modalidade educação à distância, inclusive nos cursos presenciais é recomendada. A adesão ao plano se daria por “manifestação de seu representante legal, apoiada em deliberação de seus órgãos superiores de gestão”. 

O Art. 6º deste projeto de decreto referia-se à Universidade Aberta do Brasil – consórcio, cujos cursos são oferecidos, dentro da modalidade de ensino à distância, a partir de editais públicos – ainda como proposta não concretizada e denunciava, pois, que esta versão do documento fora elaborada antes da publicação do Decreto que instituiu a UAB, em junho de 2006. Como verba adicional para pessoal, estariam previstos, conforme constava do Anexo ao projeto de decreto, até 2012, apenas 860 milhões de reais, para professores, e 153 milhões de reais, para servidores, caracterizando a expansão sem qualidade, já que tais recursos seriam amplamente insuficientes para garantir atendimento à expansão de matrículas de quase 200% prevista a partir das metas colocadas. Ao todo, segundo o Anexo, estaria previsto, entre investimentos e custeio projetados, o irrisório valor de R$ 3,75 bilhões em 5 anos, número que vinha sendo divulgado pelos meios de comunicação. 

Dando reforço ao que tem sido denunciado em muitas áreas de atuação social do governo, mesmo a versão posteriormente “consensuada” entre MEC e Andifes do Decreto n° 6.096/07 sofreu modificações importantes, introduzidas no caminho entre MEC e Casa Civil: mudou-se, entre outros, a formulação dos incisos I e II do Art. 3°, que trata da utilização dos recursos financeiros, todos estritamente vinculados aos objetivos do programa. A menção no item II, quanto à “compra de bens e serviços necessários ao funcionamento dos novos regimes acadêmicos” abre uma enorme brecha para que parte dos, extremamente parcos, recursos seja desviada para a compra de “pacotes educacionais”, produzidos inclusive no exterior, com vistas a acelerar a corrida para implantação do programa, gerando conseqüências imprevisíveis à médio e longo prazos. Finalmente, tornando a aceitação por parte da Andifes mais problemática, não foram acatadas duas de suas principais reivindicações, quais sejam, incluir estudantes de pós-graduação na contagem da meta 18/1 e estender o prazo de implantação das metas para 10 anos. 

Ao todo, as mudanças na redação do projeto, em seu percurso até a publicação como Decreto, conferiram-lhe características mais gerais, que contribuem muito para mascarar seus fundamentos e finalidades, a médio e longo prazo, para o público que não acompanhou a sua gênese. 

3.2) Análise de alguns dos dispositivos do Decreto n° 6.096/07 

O governo, por meio do Plano REUNI, pretende impor uma elevação da ordem de 100% no número de ingressantes, o que significa que o número de alunos em salas de aula dobrará, no mínimo, sem que haja ampliação da estrutura física e de recursos humanos, ratificando a lógica da expansão com precarização. 

A possibilidade deste incremento no ingresso está fortemente acoplada à razão de 18 estudantes de graduação, em cursos presenciais por professor, colocada como uma das metas, logo no Art. 1º (§ 1º).  Historicamente, o número médio de estudantes de graduação por professor situa-se próximo a 9 em IFES e IEES. Nos últimos dois a três anos, este número já vem aumentando significativamente, sendo citado na última compilação de dados do INEP, correspondente ao ano de 2005, como sendo de 10,9. 

É necessário não confundir a razão estudante/professor com o atendimento de estudantes pelos professores, ou seja, com o tamanho das classes de aula, que é muito maior em função de cada estudante cursar várias disciplinas simultaneamente por semestre. É necessário também considerar que o mesmo professor atende estudantes de pós-graduação – que NÃO entram na conta -, faz pesquisas, executa tarefas administrativas e supervisiona tarefas de extensão. 

Os valores da relação estudante/professor atualmente praticados no Brasil são muito próximos às razões que se verificam em vários outros países que têm organização acadêmica semelhante à brasileira, como, por exemplo, os países nórdicos da Europa, a Alemanha e também o Japão.

A UNESCO publica, periodicamente, dados entre outros, sobre estas razões (www.uis.unesco.org/Exceltables, 2005, Tabela 5.c). Na avaliação de tais dados é, entretanto, necessário exercer certa cautela; por exemplo, há diferenciações importantes na classificação da figura do ‘professor’: nos Estados Unidos (razão próxima a 16) não são considerados na conta os TAs (Teaching Assistants), que são responsáveis por boa parte do contato com os estudantes, e na França (razão de 17,8), a pesquisa é majoritariamente deslocada para Centros de Pesquisa (subordinados ao CNRS,ao INSERN, etc.) e não em universidades. 

Além do dobro de ingressantes, o programa, ao estabelecer como outra meta, no mesmo Art. 1º, a taxa de conclusão média dos cursos presenciais em 90%, pretende uma ampliação adicional no total de estudantes matriculados. Atualmente, esta taxa é de 60% nas IFES, segundo os últimos dados do Inep (2005 para concluintes e 2002 para ingressantes), valor também veiculado pela Sesu/MEC. Destaque-se que, nos países componentes da OCDE, a taxa média de conclusão é de 70%, situando-se abaixo deste valor em vários países, como, em ordem decrescente, Estados Unidos, Bélgica, França, Suécia e, finalmente, Itália, onde tal taxa está em 42% (dados da OCDE, Education at a Glance, 2005, Tabela A3.4). 

Impor meta tão desproporcionalmente alta demonstra uma nítida intenção de forçar uma aprovação em massa, nos moldes da aprovação automática experimentada no ensino fundamental. Note-se que, em conjunto com a meta que amplia o ingresso, a meta enfocada aqui iria resultar num aumento de quase 200% nas matrículas. Com quase nenhum financiamento adicional, num passe de mágica malévola, seriam triplicados os estudantes das universidades federais e melhorados, em muito, os dados a serem fornecidos às estatísticas internacionais. As duas metas, citadas no Art. 1º do Decreto nº 6.096/07, se revelam, deste modo, como metas pétrias do projeto governamental. 

Para uma real ampliação do acesso, nas dimensões propostas, mas com qualidade, faz-se necessário, além da renúncia a índices irreais, um rápido aumento no financiamento público para a Educação, como um todo, até alcançar da ordem de 10% do PIB, conforme previsto no PNE da Sociedade Brasileira. 

Na contramão desta necessidade, o Plano REUNI acena com um mero reordenamento de verbas e uma ampliação, que não ultrapassa os 20% do que atualmente é destinado às IFES, condicionado ainda, à adesão das universidades às suas metas e à mudança na estrutura curricular dos cursos de graduação e nos critérios de conferência de titulação, conforme se depreende dos seus Arts. 3°, 4° e 7°. Nestes está explícito que “o atendimento dos planos é condicionado à capacidade orçamentária e operacional” do MEC (parágrafo 3°, Art.3°), que o plano, por outro lado, “deverá indicar a estratégia e as etapas” para alcançar as duas metas definidas (Art. 4°), certamente para tornar-se periodicamente avaliável, e que “as despesas decorrentes deste decreto correrão à conta das dotações orçamentárias anualmente consignadas” ao MEC (Art. 7°). Nesses anos todos, não se verificou um real incremento nas verbas para a Educação, como será mostrado, novamente, na Seção 6 deste texto. 

Em resumo, pode ser dito que o governo anuncia um congelamento do financiamento das IFES no atual patamar, com um aceno à possível disputa por parcas verbas adicionais, altamente condicionadas à adesão (voluntária?) a um rígido controle externo. 

A reestruturação, segundo o Art. 2°, está condicionada às seguintes diretrizes: I) redução das taxas de evasão; II) ampliação da mobilidade estudantil; III) revisão da estrutura acadêmica, com atualização de metodologias de ensino-aprendizagem (leia-se ensino a distância?); IV) diversificação das modalidades de graduação, preferencialmente não voltadas à profissionalização precoce e especializada; V) ampliação de políticas de inclusão e assistência estudantil; e VI) articulação entre os três níveis de ensino (básico, graduação e pós-graduação). Os incisos de I a IV deste artigo revelam que os pontos norteadores da Universidade Nova se mantêm presentes. 

De fato, será praticamente impossível contemplar as metas pétreas, que guiam a expansão sem financiamento adicional correspondente, que se pretende impor, sem uma reestruturação acadêmica importante, lançando mão, eventualmente, da redução da duração dos cursos de graduação para apenas 2400 horas, conforme permitido, recentemente, pelo Conselho Nacional de Educação. Confirmando a opção de ensino pobre para os pobres, há notícias de que algumas IFES, dentre elas a UFMG, pensam nesta opção, acoplando-a a cursos inovadores para seus campi mais distantes. 

Muito embora no discurso propagandista do modelo Universidade Nova, modelo que provavelmente orientará a reestruturação, defenda-se a idéia de um Ciclo Básico em que se busca a universalização do saber, na essência a mudança pretende oferecer um aligeiramento da formação, sem profissionalização. Trata-se, portanto, de um projeto que visa atender a uma forte demanda social por formação superior, sem a qualidade requerida para tal e, especialmente, com poucas possibilidades de inclusão dos jovens oriundos da classe trabalhadora na real profissionalização de nível universitário, uma vez que o acesso a esse nível apenas se dará mediante aprovação em uma dupla seleção: uma para o acesso ao Bacharelado Interdisciplinar (BI), pretensa graduação correspondente ao Ciclo Básico, e outra para o ingresso no próximo ciclo. 

Vale lembrar que o desenho que é apresentado, pretensamente pondo fim ao vestibular, é tomado, por alguns, como parte da nossa luta em defesa da ampliação do acesso, se fosse plenamente articulado à ampliação das condições para este acesso. Entretanto, nem isso é fato: já que não haverá vagas para todos em todas as universidades federais, a seleção pelas notas no ENEM configura-se como mecanismo mais provável de ingresso. 

As análises demonstram, pois, que qualquer tentativa de atingir as duas metas pétreas, que parecem constituir a coluna vertebral da proposta, sem recorrer a cursos aligeirados e docentes “polivalentes” dedicados quase exclusivamente ao ensino, se mostrará inviável. Ademais, a formação universitária dessa proposta será, fundamentalmente, elitista, pois apenas uma minoria alcançará os demais ciclos necessários à completa formação profissional, tão almejada pelos nossos jovens. 

3.3) A relação do Banco de Professores-equivalente com o Plano REUNI 

A Portaria Interministerial MEC/MPOG nº22/07 é uma instrução normativa com base na qual deve se dar a expansão da oferta de ensino superior prevista no REUNI. 

Para alcançar sua meta global de “elevação gradual da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para 90% e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para 18, ao final de 5 anos”, o Decreto apresenta uma lógica produtivista e empresarial, cuja racionalidade se expressa, dentre outras, através das seguintes estratégias compensatórias dos limites impostos aos recursos financeiros:

   a. precarização do trabalho docente;
   b. precarização dos processos de formação;
   c. aumento das classes a serem atendidas por cada docente, quebra do tripé  universitário a favor do ensino;
   d. exigência do cumprimento de metas propostas pelo REUNI, verificadas de perto e amiúde, por meio de parâmetros quantitativos, como condição para recebimento de recursos públicos; refere-se às instituições, e, provavelmente, também aos próprios docentes. 

Diante dos limites financeiros apontados, a Portaria Normativa Interministerial n°22/07 representa a primeira medida efetiva de implementação do decreto presidencial, constituindo, em cada Universidade, um “instrumento de gestão administrativa de pessoal”: o banco de professores-equivalente (Art. 1o). Em síntese, o banco de professores-equivalente corresponde ao total de professores de 3o. grau efetivos e substitutos em exercício na Universidade, no dia 31/12/2006, expresso na “unidade professor-equivalente”. 

Para chegar a esta unidade, o governo, tomando como referência a equivalência salarial entre um professor efetivo e um professor substituto (Lei nº 11.344, de 08/09/2006, que dispõe sobre a reestruturação e a remuneração das carreiras de Magistério de Ensino superior e outras), atribuiu um fator (peso) diferenciado a cada docente, segundo sua condição de trabalho. 

Na versão publicada da referida Portaria foi definido como referência, 1,0 de cálculo, o professor Adjunto I com 40 horas, ou seja, o professor Adjunto 40h-DE vale 1,55; o professor doutor 20 h vale 0,5; o professor doutor substituto 40 h vale 0,8; e o professor doutor substituto 20 h vale 0,4. 

Nesta lógica, um docente em dedicação exclusiva vale um pouco mais (1,55) que 3 professores efetivos em regime de 20 h (0,5) e um pouco menos do que 4 professores substitutos com 20 h (0,4). 

Como origem para a aplicação deste fator, tem-se a seguinte equivalência salarial atual:

   - salário-base de um prof. Adjunto I-DE = R$ 1.209,45
   - salário-base de um prof. Efetivo(Dr.) 40hs = R$ 780,29
   - salário-base de um prof. Efetivo(Dr.) 20hs = R$ 390,15. 

Acima destes valores os docentes recebem uma série de gratificações, elevando os valores do salário bruto real, gratificações estas que NÃO são estendidas aos substitutos. 

Considerando a necessidade do cumprimento das metas de expansão propostas no Decreto e os limites orçamentários já explicitados, a dinâmica de contratação de professores nas Universidades, pautando-se pelo ‘banco de professores-equivalentes’, e forçando um aumento de produtividade em detrimento da qualidade, vai, necessariamente, resultar na precarização das condições de trabalho. 

Ao considerar que 4 professores substitutos em regime de 20 h, praticamente, equivalem a 1 professor 40 h DE, a universidade será induzida a preterir este em favor daqueles, dos quais obterá uma carga horária de ensino maior do que a de um único docente efetivo que também teria as atribuições de pesquisa e extensão, além das burocrático-administrativas. 

Como a meta global do Decreto é expansão do número de matrículas nos cursos de graduação, a contratação de professores substitutos para a função exclusiva de ensino, como já ocorre atualmente (em média, um professor substituto 20hs ministra 3 disciplinas por semestre), seria a maneira mais “racional”, sem custos adicionais, de atender as demandas de crescimento do ensino superior, uma vez que 4 professores substitutos 20hs (equivalentes a um professor adjunto I-DE) atenderiam, em média, doze (12) turmas-disciplinas. 

No que diz respeito às relações de trabalho no âmbito das universidades, a adoção da estratégia de contratação de substitutos, com base no banco de professores-equivalente, vai aprofundar, além do processo de precarização, o fosso entre o trabalho realizado pelo professor efetivo, com dedicação exclusiva, e o trabalho do professor substituto, cujo contrato de trabalho o limita a dar aulas. 

Como possui vinculo transitório com a IFES, o professor substituto, não pode assumir cargos administrativos, desenvolver e/ou orientar pesquisas, submeter e coordenar projetos. Tudo isto leva a um comprometimento do trabalho institucional-acadêmico como um todo, pois um número cada vez menor de professores efetivos terá que acumular essas tarefas. Além disso, é o professor substituto que, a despeito de sua precarização salarial e de trabalho, deverá assumir a responsabilidade com sua aposentadoria, pois não fará parte do quadro dos inativos, “liberando” gastos e responsabilidades futuras, por parte do governo, no que diz respeito à previdência social. 

Em vários eventos públicos, representantes do MEC, pressionados por argumentos que ressaltam a alta taxa de substitutos atualmente em atividade nas IFES (da ordem de 30% do total de docentes, em média) e pela constatação que praticamente todos estes foram contratados em substituição a professores em DE, andaram fazendo declarações, manifestando que a Portaria sofreria uma revisão no sentido de proporcionar o índice 1,0 a qualquer professor substituto, independentemente deste estar em regime de 20 ou de 40 horas. Afirmaram, ainda, que o ‘momento da fotografia’ de cada IFES, que define a quantidade total em seu “banco”, seria transferido para uma data posterior à definida na Resolução 22/07. Não se tem notícia, por enquanto, de ação efetiva a este respeito, no âmbito da legislação. Tais alterações diminuiriam, mas não neutralizariam, a influência deletéria da Resolução, a médio prazo. 

Uma consideração a ser feita é que existem limites legais para a contratação de substitutos. A prevalecer o propósito do ‘banco’, o mecanismo  mais provável de precarização, tanto do trabalho do professor quanto da atuação da instituição, será, portanto, a paulatina extinção do regime de dedicação exclusiva e, possivelmente, até da figura do professor efetivo, constituindo uma nova categoria de profissionais “flutuantes” que, limitados pelas relações de trabalho, não podem dar conta de todas as dimensões que o trabalho pedagógico e institucional-acadêmico exige. Tais providências se darão, quase naturalmente, naquelas IFES, que, ao se sujeitarem às imposições do REUNI, em troca de parcas verbas adicionais, acabarem por se transformando, de maneira irreversível, em universidades de ensino e, saliente-se, prestando ensino de baixa qualidade, devido à ausência da pesquisa e da extensão. 

         Conforme comentado anteriormente, o atendimento às metas do REUNI implicará na flexibilização dos processos de avaliação do ensino-aprendizagem e no desprezo pelas especificidades de determinadas áreas/disciplinas acadêmicas (ex.: saúde, música, artes, física etc). Todo este processo resultará, necessária- e diretamente na precarização dos processos de formação, pois, ao exigir do professor o trabalho com um número de alunos por turma incompatível com um atendimento individualizado , além de flexibilizar os processos de avaliação, induzindo uma “promoção automática”, o resultado final do seu trabalho não será o da efetiva promoção do conhecimento e da formação integral do Homem. Ao contrário, representará uma qualificação aligeirada, superficial, desvinculada da pesquisa, com perspectivas polivalentes, conformada às demandas de curto prazo do mercado. 

A implementação deste processo resultará numa universidade desfigurada, descaracterizada enquanto tal, transformada em ‘escola de 3º grau’, subtraída de suas funções sociais de produção e socialização do conhecimento científico, tecnológico e cultural. 

4. PDE E REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL – ANÁLISE DO DECRETO 6.095/07 

O Decreto 6095/07, de 24 de abril, é parte do mesmo conjunto de medidas normativas que visa a concretização do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) o qual, por sua vez, é caracterizado pelo governo Lula como o componente educacional do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Este Decreto, tendo em vista o destaque atribuído pelo atual governo ao campo da Educação Tecnológica, caracteriza-se como uma das principais medidas desse conjunto. 

Esse instrumento legal institui diretrizes para o processo de integração de instituições federais de educação tecnológica, para fins de constituição de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia - IFET -, no âmbito da Rede Federal. Consubstancia-se, dessa forma, uma reengenharia e/ou reformatação das instituições integrantes da Rede Federal de Educação Tecnológica, bem como da própria rede em si. 

A reengenharia/reformatação proposta pelo Decreto trabalha numa perspectiva de atuação integrada regionalmente, por intermédio de uma instituição de natureza jurídica autárquica e dotada de autonomia administrativa, patrimonial, didático-pedagógica e disciplinar (Art. 1º). Tal instituição será de educação superior, básica, profissional, pluricurricular e multicampus, especializada na oferta de educação profissional e tecnológica nas várias modalidades, com base na conjugação dos conhecimentos técnicos e tecnológicos às suas práticas pedagógicas. 

Uma lei específica dará o passo final na criação do IFET, sendo o coroamento do processo de integração das instituições que o compuseram (Art. 2º). Esse processo tem início com a celebração do acordo que formalizará a agregação voluntária das instituições de origem, que poderão ser CEFET, ETF, EAF e Escolas Técnicas vinculadas a Universidades Federais, desde que todas no mesmo estado. O processo terá a supervisão da SETEC/MEC e o termo deverá ser aprovado pelos órgãos superiores de gestão de cada uma das instituições envolvidas. Essa formulação, bastante ambígua, pode colocar poder de decisão na mão dos dirigentes. Afinal, gestão pode, quando convém, ser pensada como tarefa da instância executiva. 

A instituição terá, ainda definida, na lei de sua criação, sua abrangência territorial, que poderá ser de um estado (ou do DF) ou de uma ou mais mesoregiões de um estado que detenham.identidades próprias em termos históricos, culturais, sociais e econômicos. Nessa perspectiva, podemos visualizar uma identificação dessas mesoregiões com os pólos de desenvolvimento previsto no PAC, o que revela mais uma vez a intenção do governo de subordinar a política educacional às demandas do mercado. Tal percepção intensifica-se na análise dos pontos subseqüentes. 

O PDI integrado, a ser elaborado após a celebração do acordo de integração, prioriza dois grandes eixos: ações orientadoras da vocação institucional e objetivos orientadores do perfil acadêmico. Sem a pretensão de substituir a leitura do Decreto, alguns aspectos nele previstos, em cada um desses dois eixos, merecem destaques. 

No primeiro eixo, a educação profissional e tecnológica apresenta-se em estreita articulação com os setores produtivos e como geração e adaptação de soluções técnicas e tecnológicas; oferta formativa em benefício dos arranjos produtivos locais; atuação como centro de excelência/referência na oferta e no apoio à oferta por outros do ensino de ciências; oferta de programas de extensão centrados na divulgação científica; estimulo à pesquisa aplicada, empreendedorismo e desenvolvimento científico-tecnológico. 

No segundo eixo, oferta de educação profissional técnica de nível médio, em articulação com o ensino regular; de cursos de formação inicial e continuada, em todos os níveis, para trabalhadores nas áreas de educação profissional e tecnológica; articulação com o PROEJA na oferta de formação inicial e continuada de trabalhadores e de educação profissional e técnica de nível médio; realização de pesquisas aplicadas, estimulando o desenvolvimento de soluções; atividades de extensão em acordo com os princípios e finalidades da educação profissional e tecnológica e em articulação com o setor produtivo; estímulo e apoio a processos educativos que levem à geração de trabalho e renda; oferta de educação superior – graduação em bacharelados tecnológicos e outros cursos superiores de tecnologia voltados aos diferentes setores da economia,- pós lato para formar especialistas para a educação profissional e tecnológica,- pós stricto, mestrado e doutorado, preferencialmente profissionais, para promover o aumento da competitividade nacional visando geração e inovação tecnológica,- licenciaturas/formação pedagógica para professores da educação básica, sobretudo de ciências e matemática.

Para implementação desses eixos orientadores, há a determinação legal para a aplicação dos recursos, condicionados a determinados objetivos: no mínimo 50% do orçamento no conjunto dos cursos de formação inicial e continuada para os trabalhadores da área da educação profissional e tecnológica, da articulação com o PROEJA e da realização de pesquisas aplicadas e 20% nas licenciaturas e formação pedagógica para professores da educação básica. 

Há, ainda, em princípio, a possibilidade de complementação de quadro de pessoal na instalação do IFET, adicional ao resultante da agregação dos quadros das instituições originárias, desde que justificada no PDI e que a justificativa seja acatada pelo MEC e incluída a complementação no PL de criação do IFET. 

O que se vislumbra na estrutura formal dos IFETs é que este é mais um modelo alternativo à universidade produtora de conhecimento crítico e inovador, que ANDES-SN defende. Se no REUNI a perspectiva é a transformação e desqualificação da universidade por dentro, o modelo dos IFETs busca a consolidação de um sistema institucional paralelo. 

Dentre as características desse modelo, alguns aspectos são dignos de registro. Em primeiro lugar, os projetos de lei de instituição dos IFETs definirãoestruturas multicampi, na qual cada campus é uma unidade descentralizada, com dotação orçamentária especificada, exceto no caso de pessoal e despesas relacionadas, para permitir, ao que parece, uma certa flexibilidade na lotação dos recursos humanos. 

Outro aspecto a ser destacado é que os IFETs serão equiparados às universidades, na área territorial de abrangência de sua atuação, do ponto de vista da autonomia acadêmica. Esse ganho aparente na autonomia acadêmica fica limitado pela questão financeira (Art. 5º e 8º). Se tudo está devidamente regulamentado, a autonomia não assusta e torna-se um ornamento com alto potencial de capitalização pelo governo. 

Nessa lógica, a figura do dirigente máximo, denominada de REITOR, não passará de um mero gerente fiscalizador do cumprimento das determinações do MEC. Isso posto, é possível ver os IFETs como uma versão aperfeiçoada, do sentido de ser portadora de um teor mais coeso e, portanto, menos contraditório, das universidades especializadas por campo do saber da LDB, na área da C&T. 

Ou seja, os IFETs serão certamente muito mais eficazes na subordinação da educação profissional e tecnológica aos interesses do mercado do que as universidades tecnológicas existentes ou em processo de formulação, que deverão ter, respectivamente, seu funcionamento e sua criação fortemente desestimulados. Fica claro que o futuro de expansão das atuais instituições e da própria Rede Federal de Educação Tecnológica será pela via do modelo IFET. 

Por fim, é importantíssimo, mencionar, ainda em relação ao modelo, a atuação dessas instituições na área do ensino de ciências. O deslocamento da formação de professores das universidades para os IFETs – em princípio, não está descartada a possibilidade de atuação nos vários ramos do conhecimento -, separando-a da prática da pesquisa básica, trará sem dúvida um aligeiramento e uma mudança de foco para essa formação. 

Além disso, as demais vertentes dessa atuação, nos vários níveis de ensino, terão um papel significativo, para reforçar, ainda mais, a inculcação da lógica do mercado. Vamos lembrar os PCN da Educação Básica, principalmente os do Ensino Médio - a contribuição para transformar contextualização do conhecimento em presentismo dócil às demandas do capital na área das ciências naturais e suas tecnologias que poderá ser prestada por um professor formado nos moldes previstos nesse decreto é, sem dúvida, inestimável. 

Os IFETs serão mais um espaço, mantido com o dinheiro público, para que as empresas que atuam em nosso país, produtoras e/ou compradoras de pacotes tecnológicos em negócios transfronteiriços, possam agilizar, a custo reduzido, a tradução dos mesmos via a formatação de recursos humanos adequados esse fim. 

A proposta dos IFETs, uma vez que se pauta pela subordinação dos interesses das camadas populares brasileiras aos ditames do grande capital globalizado, expressos por suas representações-sócias nacional e internacional, é, portanto, parte do processo de desmonte de uma educação que, a despeito das condições em que se desenvolve e ainda que portadora de contradições, apresenta elementos relevantes de qualidade – como é o caso dos CEFET e das Universidades Públicas - que a tornam detentora de virtualidades para tornar-se construtora da identidade e autonomia do povo brasileiro. 

5. FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO: DESFAZENDO EQUÍVOCOS E ILUSÕES. 

Financiamento público que possa garantir, na prática, o atendimento aos direitos da população nas áreas sociais, em particular na Educação, é questão central e condição necessária, se bem que não suficiente, para a efetivação destes direitos. 

Já foi salientado que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e, dentro dele, o subprograma Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), não prevêem, de fato, recursos novos, mas ambos pretendem alcançar seus objetivos por uma redistribuição de ênfases e pelo incentivo a ações dentro de uma perspectiva de parcerias público-privadas (PPP). 

Se tal intento dificilmente alcança a verdadeira dimensão dos direitos sociais em países socialmente mais organizados, no Brasil, com sua tradição paternalista e escravista, transforma-se logo em ações de caráter assistencialista, focadas em necessidades mais imediatas e, frequentemente, em oportunidade adicional de desvio de recursos públicos para fins privados.  

De qualquer modo, em lugar algum do mundo, ações baseadas em PPP constituem a fonte principal do financiamento da Educação. Assim, do investimento global em Educação dos países do bloco da OCDE, que correspondeu, em 2005, à média de 5,9% dos respectivos Produtos Internos Brutos (PIB), menos da oitava parte deste percentual correspondeu a investimentos privados; mesmo o país considerado campeão do neoliberalismo econômico, os Estados Unidos, que destinou, no mesmo ano, 7,5% do seu avantajado PIB à Educação, obteve apenas 2,1% do mesmo PIB, ou seja, menos de um terço, de fontes privadas. 

Referenciar o investimento ao PIB é uma maneira universal de avaliar a prioridade que o país confere a determinadas áreas, no caso à Educação. O Brasil informou, em 2002, à UNESCO que destinava 4,4% do PIB em verbas públicas à Educação, como um todo, somando todos os níveis de governo. Com a recente revisão dos valores do PIB brasileiro, situando-o da ordem de 10% acima dos valores anteriormente publicados, tal montante sofreu um decréscimo para 4,0%, como é evidenciado na tabela a seguir: 

TABELA 1
Despesa pública total com Educação e relação com o
PIB – Brasil, 2000 a 2005

Observando-se os dados apresentados na quarta coluna da Tabela 1, referentes aos valores com o PIB revisto, verifica-se que no primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2006), o investimento brasileiro em Educação vem decrescendo e manteve-se, de fato, abaixo dos 4%, valendo destacar que, no ano de 2005, correspondeu a meros 3,5% do PIB. 

Esta proporção de financiamento está muito abaixo das possibilidades do país e, certamente, do necessário, levando em consideração o fato de que, em especial nos níveis médio e superior, o sistema educacional público precisaria ser consideravelmente expandido e, principalmente na Educação Básica, ter sua qualidade resgatada. Um importante aporte adicional de verbas públicas será imperioso, elevando o montante para níveis mais próximos aos internacionais, em particular de países que estão despontando como desenvolvimentistas. Isto significaria triplicar, inicialmente, os recursos para a área (para, depois, atingir entre 7% e 8% do PIB, quando o sistema educacional chegar a uma situação estabilizada), investindo da ordem de 10% durante o regime de transição. 

A pouca prioridade conferida no Brasil à área da Educação também pode ser demonstrada por outra comparação. Em relação ao total de recursos públicos disponíveis, o país investiu, em 2002, 12,2% em Educação como um todo e, 2,5% em Educação Superior2. Tais percentuais situam-se bastante abaixo dos praticados internacionalmente, salientando-se, por exemplo, a Malásia, em processo de desenvolvimento, que destinou 28% e 9,8% à Educação, como um todo, e ao Ensino Superior, respectivamente. Mesmo o México investe mais na área e na sub-área, sendo os volumes respectivamente de 23,8% para o total e 4% no Ensino Superior. No caso dos Estados Unidos, o investimento em 2003, foi de 15,2% para a Educação em geral, e 4% para o Ensino Superior.

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   1. “Financiamento da educação pública: elementos para reflexão”, Revista Universidade e Sociedade, n.39, p. 29-33. fev. 2007.
    2. Carta ANDES ao MEC (dados UNESCO).

 

Desconstrói-se, assim, a partir de qualquer comparação com patamares internacionais de investimento, o mito, muito propagado na imprensa brasileira e, em boa parte, baseado em “análises” do Banco Mundial, de que, no Brasil, investe-se muito em Educação Superior (e na Educação como um todo) e que o problema seria a aplicação incorreta dos recursos. 

Analisando o financiamento da União, efetuado no primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva (período de 2003 a 2006), na área de políticas sociais confirma-se que, diferentemente do discurso presidencial acerca do aumento de recursos para a Educação, houve, de fato, redução dos gastos públicos. Ao examinar a execução orçamentária da União sob a ótica da classificação das despesas por função (Tabela 2), pode-se ter um quadro mais detalhado do comportamento do governo em relação às diferentes políticas sociais. 

Observa-se que a função ‘educação’ manteve, no período, um volume constante de despesas na ordem de 17 bilhões ao ano e que a função ‘saúde’, que cresceu em recursos, obteve um investimento de 40 bilhões em 2006. É necessário ter em conta, para efeitos de comparação, que, no mesmo ano de 2006, foi destinada a vultosa soma de R$ 275 bilhões para o pagamento dos serviços das dívidas interna e externa e, mesmo assim, a dívida cresceu substancialmente. A dívida externa brasileira, no final de 2006, era de 199 bilhões de dólares e a dívida interna passou a ser de 1,2 trilhão de reais. Para o ano de 2007, está previsto no Projeto de Lei do Orçamento da União, o comprometimento de 59,5% dos recursos da União para o refinanciamento, amortização ou pagamento dos juros da dívida pública. 

Ressalte-se, portanto, que a prioridade do governo tem sido o pagamento dos encargos da dívida pública, externa e interna, comprometendo em média 40% das despesas da União, no período de 2003 a 20063. A cada ano o percentual do orçamento da União destinado ao pagamento dos serviços da dívida cresce em detrimento dos investimentos nas políticas sociais. O governo federal gastou, com todas as políticas sociais, no período de quatro anos, R$ 403 bilhões o que indica claramente a opção do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em garantir o ajuste fiscal.
 

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3. Auditoria Cidadã da Dívida. ABC da dívida: sabe quanto você está pagando? Disponível em: http://www.divida-auditoriacidada.org.br/ Acesso em: 10/4/2007.

 

TABELA 2
DESPESAS DA UNIÃO POR FUNÇÃO ORÇAMENTOS FISCAL E
DA SEGURIDADE SOCIAL EXERCÍCIOS DE 2003 A 2006
(em milhões de reais)

• Excetuados os valores referentes ao refinanciamento da Dívida Pública.
Nota: Excluídas as operações intra-orçamentárias. Ref: (1) Valor atualizado com base no IGP-DI de 2003 de 1,2123; (2) Valor atualizado com base no IGP-DI de 2004 de 1,1081; (3) Valor atualizado com base no IGP-DI de 2005 de 1,0457; (4) Valor atualizado com base no IGP-DI de 2006 de 1,0280.

 

Além disso, é importante registrar que, ao longo de cada ano, o governo vem adotando uma política de contingenciamento de recursos, concentrando a execução dos programas e ações no final do ano, com a finalidade de garantir o superávit primário, fazendo reserva para assegurar o pagamento de parcela dos serviços da dívida pública, sinalizando aos credores as boas intenções do governo em economizar. 

Desde o primeiro ano de mandato, em 2003, o índice previsto de 3,75% de superávit primário em relação ao PIB foi aumentado para 4,25%. As Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) da União dos anos subseqüentes previam esse mesmo patamar, no entanto, o governo superou a cada ano essa meta. Em 2004, a taxa foi de 4,59%; em 2005 passou para 4,83% e, em 2006, ficou um pouco mais baixa, 4,32%, mas, ainda, superior ao previsto na LDO.(INESC, 2007). 

Considerando, agora, as despesas liquidadas da União especificamente com manutenção e desenvolvimento do ensino superior, observa-se na Tabela 3 um aumento no valor nominal dos recursos no período de 2003 a 2006, com destaque para o ano de 2006 (ano eleitoral), que teve um acréscimo de 1,2 bilhões em relação ao ano anterior. Esse aumento, no entanto, não acompanhou a evolução da arrecadação tributária da União, como pode ser visto na Tabela 3, onde se verifica uma queda da proporção de 5,6% em relação ao total, em 2003, para 5,3% em 2006. O discurso do governo, reforçado pelos reitores e dirigentes, de que as IFES teriam recebido mais recursos nos últimos anos, desconsidera o aumento da receita da União bem como a expansão das matrículas ocorrida nesse período e a criação de novas Universidades e campi.

 

TABELA 3
Execução orçamentária da União com Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino Superior (MDES) – 2003 a 2006
(em milhares de reais)

 

Com a revisão do PIB pelo IBGE, os recursos públicos destinados à Educação Superior, em 2002, situaram-se em apenas 0,7% do PIB. Este percentual confirma a situação de desvantagem também nessa sub-área, reconhecidamente de importância crucial para o desenvolvimento nacional.  

A média dos países da OCDE situa-se quase 40% acima deste valor e os países nórdicos (Suécia, Noruega, Finlândia) investem em seu sistema público do Ensino Superior mais do dobro (em relação ao seu PIB), valendo salientar a Finlândia, que muito cresceu nas últimas décadas, onde o montante correspondeu, em 2003, a 1,7% do PIB. 

Note-se que, nas contas internacionais, a alínea ‘pesquisa’ é apresentada separadamente, enquanto, no caso brasileiro, parte deste tipo de investimento deve estar abrigado na alínea da Educação Superior. 

Desfaz-se, assim, um outro mito, corolário do anteriormente mencionado, muito cultivado pelos meios de comunicação e, até mesmo, pelo MEC de que, no país, há recursos públicos suficientes para a Educação, especialmente para o Ensino Superior, mas que eles, nessa lógica, seriam mal investidos pelas instituições públicas brasileiras. 

6. CONCLUSÕES 

A partir das análises apresentadas, é possível perceber a intenção do Governo de promover uma colossal reestruturação da Educação Superior brasileira, tanto em termos de seus objetivos quanto de sua arquitetura institucional, implicando numa deterioração importante das condições de estudo e de trabalho para a comunidade que lhe dá vida. Ironicamente, se não houver uma conscientização rápida da comunidade universitária, evitando que direções, cooptadas ou inconseqüentes, adiram ao REUNI ou ao sistema IFET, esta evolução deletéria se dará, aparentemente, nos marcos de uma pretensa decisão autônoma da IES. 

É possível, ainda, perceber que essa reestruturação caminha no sentido de dificultar, ainda mais, a participação da classe trabalhadora no processo de construção e apropriação do conhecimento inovador e crítico, chegando mesmo a postular a inadequação ou inutilidade da ocorrência desse processo em nosso país. 

A análise do financiamento da Educação, considerando também comparações internacionais, situou-o em proporções vergonhosamente baixas, apontando que a manutenção, ao longo de décadas, da baixa prioridade efetiva revelada por estes índices é determinante para a problemática vivenciada pelo sistema educacional como um todo. Os projetos REUNI e IFET são exemplos de tentativas para manter o congelamento de verbas com ampliação de atribuições. 

A lógica de não enfrentar os interesses do capital, causa do financiamento insuficiente, mas, mesmo assim, promover a expansão das matrículas no Ensino Superior público (que é, sem dúvida, uma aspiração justa da população) precisa ser denunciada e enfrentada, pois resultará no desmonte de um sistema que ainda consegue manter-se com certa qualidade e que foi construído pelo esforço conjunto da comunidade acadêmica, apoiada por recursos oriundos de impostos pagos por toda população. 

Nesta hora é necessário frisar que um sistema complexo, como é o do ensino e pesquisa no conjunto de universidades públicas, leva décadas para ser construído, mas sua destruição é questão de poucos anos, por depender, essencialmente, da sinergia das capacidades intelectuais, de liderança e de cooperação das pessoas que o constituem, que se desmantela quando a deterioração das condições objetivas de estudo e trabalho ultrapassa um certo limite. 

Reverter as tendências apontadas neste texto exige, como condição necessária, ainda que não suficiente, nosso empenho e disposição de luta.  

Não é tarefa simples nem rápida, mas, neste momento, é indispensável que respondamos positivamente ao chamamento para esse embate, sob pena de, ao não aceitá-lo, estarmos contribuindo, por omissão ou cumplicidade, para um alijamento adicional dos estudantes provenientes das classes menos favorecidas das oportunidades de profissionalização, na já extremamente excludente sociedade brasileira. Além disso, tal omissão reforçaria o abandono da possibilidade de, no contexto internacional, o país exercer o papel de dispor autonomamente sobre o seu imenso potencial de riquezas humanas e materiais, por falta de densidade crítica na atuação de seus profissionais e ainda maior escassez de pesquisas autóctones. 

O recente reagrupamento das forças sociais vivas, ao redor de ações de resistência às investidas governamentais, reacende a esperança de que, num futuro não longínquo, o país volte a viver condições para que estas mesmas forças se ampliem e reivindiquem o que lhes é devido em termos de direitos sociais, aí incluída, com destaque, uma educação pública de qualidade socialmente referenciada.

 

São Luís, 24 de julho de 2007.

  

Ensino Público e Gratuito: Direito de Todos, Dever do Estado.

  

Fonte: Andes-SN.

 


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