Outras vozes
Bettina Thräenhardt*

 


PINTURA DE JOANA D'ARC de 1876:
jovem acreditava ouvir conselhos divinos.

 

Pesquisas mostram que 5% da população já teve alguma alucinação auditiva, um sintoma nem sempre  associado a transtornos psiquiátricos. Isolamento social ou eventos traumáticos podem desencadear o fenômeno.  

De repente, alguém gritou seu nome: "Isabela!". Intrigada, a mulher deu uma volta pela casa em busca da voz misteriosa. A sala estava vazia. Ninguém nos quartos, na cozinha ou no banheiro. No quintal apenas o cachorro. Ela estava realmente a sós.

Isabela sentiu um calafrio. E quem não sentiria? De fato, a
alucinação auditiva é um sintoma comum em algumas doenças

psiquiátricas, como a esquizofrenia. No entanto, nem todos que passam por essa experiência têm necessariamente um distúrbio mental. O filósofo grego Sócrates e a heroína francesa Joana d'Arc diziam ouvir vozes, assim como o psiquiatra suíço Carl Jung e o artista plástico americano Andy Warhol.

O fenômeno já foi interpretado segundo diversos costumes e culturas. No século XII, a abadessa e filósofa Hildegarda de Bigen ignorou a hierarquia eclesiástica porque acreditava que as vozes que escutava eram a palavra de Deus. Foi assim que, para perplexidade geral, ela fundou o próprio convento em 1147. Ainda hoje a alucinação auditiva é estigmatizada. Nos sistemas de classificação dos transtornos psiquiátricos, representa um critério-chave para o diagnóstico da esquizofrenia. Pesquisas indicam, porém, que o fenômeno é bem mais disseminado. 

Levantamento realizado em 1983 pelos psicólogos Thomas B. Posey e Mary E. Losch, ambos da Universidade Estadual de Murray, Estados Unidos, revelou que cerca de 70% dos universitários entrevistados recordaram pelo menos um episódio de alucinação auditiva. Alguns pensavam ouvir a voz de algum parente morto, outros acreditavam numa manifestação divina. Para a maioria tratava-se dos próprios pensamentos.  

Entre os estudantes, 40% relataram ouvir alguém chamar seu nome pouco antes de adormecer. Nesse caso, há divergências: alguns psicólogos classificam o fenômeno como alucinação, outros argumentam que quando se está prestes a dormir ou despertar há um rebaixamento da consciência e ficamos mais sujeitos às pseudo-alucinações - assim chamadas pois sabemos que não se trata de algo real.  

Pensar em voz alta

É difícil, portanto, falar em alucinações auditivas como se fossem um único tipo de manifestação. Há um continuum de manifestações auditivas que vai do falar sozinho ao pensar em voz alta. Isso explica por que os resultados das pesquisas nessa área variam tanto, dependendo da pergunta que se faz aos entrevistados e, principalmente, de como as experiências relatadas são classificadas. Segundo o psicoterapeuta Thomas Bock, diretor do ambulatório de psicoses do Centro Médico da Universidade de Hamburgo, de 3% a 5% da população européia e americana já teve alucinações auditivas, embora a prevalência mundial de esquizofrenia seja de apenas 1%. Logo, nem todas as "vozes do além" são sintomas de distúrbios psicóticos.  

Muitas das pessoas que ouvem vozes geralmente passaram por experiências de abuso ou abandono na infância. Eventos traumáticos na idade adulta, como acidente grave, estupro ou perda de um ente querido também podem desencadear o fenômeno. A maioria sofre com conflitos psíquicos e se encontra em alguma situação-limite. "As alucinações auditivas seriam um sinal de que a 'voz interior' está ocupada, cuidando das próprias necessidades", afirma Bock. Segundo ele, para alguns pacientes a voz tem origem interna e para outros, externa. A neurobiologia ajuda a entender o segundo caso: circuitos cerebrais que fornecem feedback do tipo "sou eu que estou falando" eventualmente falham. Esse parece ser o caso dos esquizofrênicos, grupo em que as alucinações auditivas foram mais investigadas.  

O psiquiatra Philip McGuire, do Instituto de Psiquiatria do King's College de Londres, realizou diversos experimentos com esquizofrênicos, nos quais testou o que chama de atribuição heterônima. Em um deles, McGuire colocou pacientes e pessoas saudáveis para falar ao microfone, ao mesmo tempo que ouviam sua própria voz, levemente modificada. Os participantes tinham de pressionar um botão quando achassem que estavam ouvindo a si mesmos. Como esperado, os esquizofrênicos tiveram mais dificuldades para identificar a própria voz; entre esses, os que costumavam ouvir sons imaginários atribuíam a fala a uma fonte externa, além de avaliá-la de forma depreciativa.  

Técnicas de imageamento cerebral fornecem explicações adicionais sobre determinados aspectos fisiológicos das alucinações auditivas. As regiões aparentemente envolvidas são as relacionadas à linguagem, principalmente a área de Wernicke, responsável pela associação entre fala e audição. Diversos estudos, entre eles os conduzidos pelo neurobiólogo Thomas Dierks, da Universidade de Frankfurt, comprovaram por meio de tomografia helicoidal que essa região cerebral está envolvida nas alucinações auditivas. Utilizando o mesmo método, a equipe de Dierks observou, em 1999, o cérebro de três esquizofrênicos no exato momento em que ouviam as vozes imaginárias. Perceberam que, além da área de Wernicke, também o córtex auditivo primário (área que elabora nossa impressão auditiva do mundo exterior) era estimulado. Não surpreende, portanto, que as alucinações pareçam reais. Outros estudos mostraram que, em pacientes com alucinações auditivas graves, a área de Wernicke parecia menor ou atrofiada. 

Circuitos neurais

A experiência de ouvir vozes não precisar estar necessariamente relacionada a uma alteração neurobiológica. Uma hipótese corrente é que o cérebro simplesmente carece de estímulos do mundo exterior, de modo que os inventa. Em 1992, o neurologista Detlef Kömpf, da Universidade Schleswig-Holstein, em Lübeck, Alemanha, observou que a ausência de estímulos sonoros pode causar alucinações musicais em idosos ou deficientes auditivos. Segundo ele, o cérebro é capaz de reter informações apreendidas nos circuitos neurais durante muito tempo. Se um dia os estímulos cessam, os sinais armazenados acabam ganhando "vida própria". Pessoas que ouvem vozes em geral são muito retraídas e o fenômeno intensifica o isolamento social.  

A tolerância do indivíduo às vozes imaginárias é o critério que determina a necessidade de intervenção clínica. Na prática, as alucinações se distinguem entre a audição eventual de vozes e as descritas por pacientes em tratamento psiquiátrico. A diferença foi estabelecida em 1998 pelo psiquiatra Marius Romme, da Universidade de Maastricht, Holanda. Embora em ambos os casos os pacientes escutem diálogos, comentários ou a reprodução sonora dos próprios pensamentos, os pacientes psiquiátricos relatam conteúdos ofensivos ou repreensões. Pessoas saudáveis costumam ouvir palavras benevolentes e motivadoras e têm a sensação de poder controlar as vozes.  

Encontro marcado

Falar com o paciente como se ele tivesse uma doença grave muitas vezes só agrava o problema, com risco de a pessoa se retrair ainda mais. Deixá-los falar livremente sobre suas vozes, por outro lado, faz com que elas percam um pouco a força. Segundo Bock, esse é o primeiro passo para controlar a situação. 

Na tentativa de libertar as pessoas das alucinações auditivas, o psiquiatra Ralph E. Hoffman, da Faculdade de Medicina da Universidade Yale, em New Haven, as submete a estimulação magnética transcraniana de baixa intensidade. A técnica começou a ser usada em esquizofrênicos em 2000. Estudo publicado em 2005 mostrou que em metade dos casos as alucinações cessam ou são reduzidas nos três meses seguintes. Os resultados em indivíduos saudáveis ainda estão em fase de avaliação.     

Se não é possível afastar as vozes para sempre, mudar a forma como a pessoa as avalia já ajuda muito. Ainda que o conteúdo da mensagem ouvida continue negativo, intenções e características que lhe são atribuídas podem ser interpretadas de outra maneira. Segundo as recomendações da organização alemã de apoio a pacientes com distúrbios psiquiátricos Netzwerk Stimmenhören, o principal objetivo é fazer o indivíduo "senhor de sua própria casa". Assim, a pessoa pode, além de continuar ouvindo as vozes, responder a elas, concentrando-se em mensagens positivas ou estabelecendo limites para sua manifestação. Isabela, por exemplo, permite que suas vozes a perturbem apenas na parte da manhã e assim consegue ter sossego o resto do dia. 

Outra possibilidade de tratamento se baseia na análise das interações sociais, pois com freqüência a relação com as vozes é semelhante às que o indivíduo constrói na vida real, segundo o psicólogo Mark Hayward, da Universidade de Leicester, Reino Unido. "É preciso encontrar a saída do isolamento", diz. Depois de alguns anos de terapia, Isabela reaproximou-se da mãe e dos amigos. As vozes não foram embora, mas ela deixou de se ver como vítima. Hoje elas já não a assustam mais.

 

* Bettina Thräenhardt – é psicóloga e jornalista científica em Bonn, Alemanha. 

 

Para conhecer mais 

  • Prevalence of hallucinations and their pathological associations in the general population. M. M. Ohayon, em Psychiatry Research, vol. 97, nos 2-3, págs. 153-164, 2000.

  • Hearing voices network - www.hearing-voices.org

  • Etiologia das alucinações. Maurício Aranha, em Ciências & Cognição, vol. 2, págs. 36-41, 2004. 

- Tradução de Saulo Krieger.

 

Fonte: Rev. Mente&Cérebro, Bettina Thräenhardt, ed. n. 170, mar/2007.


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