Pequenos tiranos
Michele Roman Faria*

 

Muitas crianças têm seus desejos atendidos pelos pais como se fossem ordens que devem ser cumpridas sem questionamento. A conseqüência é o exercício do poder marcado pela arbitrariedade; sem limites, também não há possibilidade de satisfação
 

Como nos tornamos aquilo que somos? Essa pergunta, para a qual se buscaram (e ainda se buscam) respostas nas mais variadas áreas do conhecimento, conduziu Freud à descoberta do inconsciente. O homem não é senhor em sua própria casa, suas ações são determinadas por desejos e motivações que ele mesmo desconhece. A psicanálise surge como uma forma de tratamento que visa tais determinações, revelando paradoxos do desejo que evidenciam a existência da divisão entre a consciência e o inconsciente. 

Essa subjetividade não é, entretanto, um dado a priori, é efeito de um árduo trabalho psíquico, por meio do qual é possível encontrar os instrumentos necessários para a entrada na cultura, pagando o preço do recalque e de uma divisão subjetiva sem a qual não haveria inscrição na ordem simbólica que orienta os caminhos do desejo. A família encontra aí seu papel fundamental, pois é nela que se recolhe, peça por peça, cada um dos instrumentos necessários para que se 

 

Foto: CARCAMO

encontre lugar na cultura. A família adquire, nesse contexto, seu caráter e sua função de transmissão.

Podemos pensar em um caso particular dessa transmissão de recursos para a entrada na ordem social: o dos pequenos tiranos. Um trecho de conto infantil auxiliará a reflexão acerca de como essa transmissão regula a relação com o desejo, a lei, os valores morais, o narcisismo, e de como o sujeito se apropria dela. Como situar a posição dessas crianças, tanto de sua própria posição subjetiva como do ponto de vista dos vínculos familiares e daquilo que, desse laço, se transmite? 

[conto abaixo]

No início da história, somos apresentados ao desejo do casal de ter um filho. Como em todo desejo, há a marca de uma função simbólica: caberá ao príncipe ocupar seu lugar na linhagem paterna, herdando o reino de um pai que, por sua vez, herdou-o de seu próprio pai, numa ordem de gerações que conduz ao primeiro pai sobre a terra. 

A família é, em essência, esse lugar de transmissão psíquica, que conta com o desejo dos pais e o lugar simbólico destinado à criança: “serás rei como eu”. A criança encontrará nesse espaço simbólico o ponto de sustentação de seu narcisismo e a organização psíquica que lhe permitirá situar-se como eu – unidade ilusória, mas estruturante, que assegura ao sujeito a consciência de si mesmo como um todo. Temos aí a função alienante do desejo do Outro que, ao mesmo tempo, sustenta o narcisismo e serve de suporte para a eleição dos ideais a serem alcançados: “serei rei”. É na exigência de responder a esse ideal narcísico que o super-ego exerce sua função. 

Ocorre que, entre o que se é e o que se realiza desse ideal, há sempre um hiato, uma distância. Essa distância situa o sujeito, em sua essência, marcado por uma falta. Trata-se do que a psicanálise denominou castração, o sentimento de que falta algo, quando se tem no horizonte a referência a um ideal. 

Entretanto, é justamente porque há falta que há algo a buscar – e é nessa busca que nos situamos como desejantes. O desejo é sempre condicionado pela falta, própria do ser humano. É uma condição que ao mesmo tempo nos aliena na busca do narcisismo perdido e nos lança em direção à vida, orientados pela aposta na realização de nossos desejos. 

Como o principezinho do conto se conduz em relação ao que lhe falta e como isso o faz funcionar psiquicamente? A tirania do príncipe é a tirania do desejo. Seu desejo adquire o estatuto de ordem e a conseqüência é o exercício de um poder marcado pela arbitrariedade de sua vontade: “Mandou cortar todas as árvores, porque um dia lhe caiu uma ameixa na cabeça; mandou estrangular os pássaros, um a um, porque cantavam de manhã muito cedo e isso atrapalhava seu sono; ordenou que sua mãe fosse presa no 749o andar da mais alta das suas torres, porque ela tinha se atrevido a mandá-lo fazer os seus deveres reais”. Quanto maior a arbitrariedade de suas determinações, guiadas não pela lei, mas por seus caprichos, tanto maior a demonstração do peso de seu poder. Um poder tirânico que é exercido à revelia do desejo dos pais, impotentes diante do filho.

Que os pais sofram com o comportamento da criança não quer dizer, entretanto, que não estejam diretamente implicados nele. Como nos ensinou Freud, temos sempre nossa parcela de contribuição naquilo de que padecemos. Não é a própria rainha que diz ao filho “tu és o meu reizinho, o meu único rei, e os teus desejos são ordens”? Não é em resposta a esse desejo da mãe que o principezinho orienta suas ações? Não é como rei, como único rei, que ele se apresenta assim que o tiram de sua redoma de vidro? 

Isso não significa, porém, que a resposta que o principezinho oferece não seja sua própria resposta. Afinal, coube a ele, e a ninguém mais, posicionar-se diante do desejo do Outro. É ele quem escolhe afirmar, diante do rei pai: “Passa para cá a sua coroa!”. Nesse sentido, não podemos considerá-lo uma vítima passiva diante do desejo do Outro. Ele produz sua resposta e é justamente ela que faz dele o que ele é: tirano. 

Não nos esqueçamos, porém, de que ao formular sua resposta o principezinho encontra eco na postura do pai, que lhe entrega a coroa sem dizer uma palavra, “porque nunca havia dito não a ele, nem quando tinha 1 dia, nem quando tinha 3 meses. Como proibi-lo então de alguma coisa aos 7 anos?”. Tal é o dilema desse pai real, que escolhe ceder seu lugar porque lhe parece demasiado pesada a tarefa de ferir o narcisismo do filho para quem nunca fora possível dizer não. É assim que algo se transmite nessa família real, que testemunha, prematura e irresponsavelmente, a transformação do principezinho em rei. O narcisismo intocável do príncipe, a quem não se pode negar nada, é também o narcisismo intocável dos pais, que o criam como criança amada e infinitamente preciosa, numa redoma, servido por uma dúzia de criadas com o que havia de melhor e mais precioso. Protegido de tudo e sem conhecer proibições, não há, para o príncipe-rei de nosso conto, distância entre o ideal a realizar e aquilo que é – delineia-se então uma situação sem lugar para um desejo legítimo, ordenado e orientado simbolicamente pela lei compartilhada socialmente. 

“...e viveram felizes para sempre” não parece ser o final que se descortina no horizonte quando o preço pago pela felicidade é a sustentação de um narcisismo que leva a crer num mundo onde não há limites. É justamente isso que nos revela a queixa final do principezinho que, tendo realizado todos os seus caprichos, permanece infeliz, assolado por sentimentos de solidão, tristeza e falta de amor.

 


Eis o conto:

Num reino longínquo, uma rainha desesperava-se por não ter filhos.

– Temos de ter um! Temos de ter um!, gemia o rei. Para quem ficará este soberbo reino que me deixou o meu pai, que o recebeu do seu pai, e assim sucessivamente, desde a criação do primeiro pai sobre a Terra? A quem entregarei a minha coroa quando os meus ossos se tornarem velhos e quebradiços, quando estiver cheio de cabelos brancos e tolhido de reumatismo?

– Que quadro tão terrível da velhice! Mas não deixa de ter razão: precisamos ter uma criança.

A rainha consultou todos os manuais e os médicos mais poderosos e mais sábios. Por fim, graças aos tratamentos, finalmente engravidou.

– Cuidado, este principezinho será seu tesouro, mas não lhe dêem mimo demais. Não tenham pressa em fazer dele um pequeno rei, preveniu o médico, assim que o bebê nasceu.

Mas mal ele virou as costas, a rainha pegou logo o pequeno príncipe e começou a enchê-lo de mimos.

– Tu és o meu reizinho, o meu único rei, e os teus desejos são ordens.

Os pais meteram o menino numa redoma infinitamente preciosa e, todas as manhãs, uma criada diplomada levava-lhe mamadeiras de cristal com leite da melhor qualidade e mel de abelhas raras. Dormia num colchão de pétalas de rosa colhidas na Abissínia exatamente às 5 horas da manhã -– quando estavam mais frescas -– e em lençóis bordados a ouro. Para servir o menino, uma dúzia de criadas corriam de um lado para o outro durante o dia e, à noite, dormiam a seus pés. Estava protegido de tudo: da mais leve brisa, do menor sopro… Para o aquecer, os pais mandaram construir um sol artificial, que não queimava a pele, mas fornecia vitamina D. Foi assim que o garotinho cresceu, tranqüilamente, em silêncio. Seus desejos eram ordens, sempre atendidas prontamente.

No dia em que completou 7 anos, pareceu conveniente aos pais tirar a criança adorada da sua redoma de vidro.

– Meu pequerruchinho, agora já és grande!, disse a mãe, aproximando-se para lhe fazer um carinho.

– Não sou pequerruchinho coisa nenhuma, disse o príncipe com desdém. E se quer me beijar, autorizo que me beije os pés. É o quanto basta.

Depois, dirigiu-se ao pai:

– Ei, velhote, passa para cá a sua coroa!

O rei entregou-lhe a coroa sem dizer uma palavra, porque nunca havia dito “não” ao principezinho, nem quando ele tinha 1 dia, nem quando ele tinha 3 meses. Como proibi-lo então de alguma coisa aos 7 anos? E foi assim que o principezinho se transformou em rei. Um rei tirano de 7 anos e alguns dias. Mandou cortar todas as árvores, porque um dia lhe caiu uma ameixa na cabeça; ordenou que todos os pássaros fossem estrangulados, um a um, porque cantavam de manhã muito cedo e isso atrapalhava seu sono; determinou que sua mãe fosse presa no 749o andar da mais alta das suas torres, porque ela tinha se atrevido a mandá-lo fazer os seus deveres reais. É o que por vezes acontece quando se é criado numa redoma.

O pior é que, apesar dos seus caprichos, ele tinha sempre um rosto infeliz e gritava:

– Sinto-me sozinho! Estou triste! Ninguém gosta de mim!
 

Trecho de O principezinho tirano, extraído do blog http://geracoesdialogo.wordpress.com
 

 

PARA CONHECER MAIS:

  • Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In Obras completas. S. Freud. Imago, 1979. 

  • Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938). In Outros escritos. J. Lacan. Jorge Zahar, 2004.

  • Nota sobre a criança (1969). In Outros escritos. J. Lacan. Jorge Zahar, 2004.

  

* Michele Roman Faria é psicanalista, doutora em psicologia clínica pela USP e atualmente desenvolve pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. É autora de Constituição do sujeito e estrutura familiar (Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003) e Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais (Hacker Editores, 1998).

 

Fonte: Rev. Mente e Cérebro, ed. 179, dezembro 2007.

 


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