"Perdemos o sentido da civilização"

 

O jurista Célio Borja tem 78 anos e quase sessenta de atuação na vida política. Ao longo desse tempo, testemunhou ou participou de momentos de grave crise institucional, como o golpe militar de 1964 (quando era deputado pela UDN) e o impeachment de Fernando Collor de Mello (quando era ministro da Justiça). Sobre a crise atual, Borja deu a seguinte entrevista à editora Lucila Soares.

TRAIÇÃO INTELECTUAL
"Nossas indiscutíveis inteligências se sentem constrangidas porque tiveram compromisso com algumas idéias no passado. Acham que, se criticarem o presidente hoje, estarão ajudando os reacionários"

 

O QUE A CRISE ATUAL TEM DE DIFERENTE DAS ANTERIORES?
O presidente da República, que está no olho do furacão, tem grande apoio popular. Isso faz uma enorme diferença. Possivelmente, num primeiro momento, quando ele podia ter sido trazido à responsabilidade por atos de subordinados imediatos seus, a oposição se deteve, mais com receio da reação popular do que da eventual fragilidade da acusação ao presidente. Do ponto de vista estritamente político, é a diferença mais relevante.  

E DO PONTO DE VISTA ÉTICO?
Perdemos o sentido da civilização. E a mais importante prova disso é que uma parte considerável das pessoas que receberam o voto popular, que representam o povo brasileiro, tem uma conduta incompatível com um padrão mínimo de decência.  

NO SENSO COMUM, A POLÍTICA SEMPRE FOI VISTA ASSIM, NÃO?
Pecadilhos veniais, como nomear o filho, cavar um emprego para o tio, isso aí são os pequenos pecados de sempre, de qualquer sociedade humana. São desvios que antes não se condenavam e hoje se condenam, a meu ver muito bem. Mas o fato é que estamos diante de um quadro que nos aterroriza, porque esse desapreço pelos grandes valores do espírito deixou de ser pontual para ser quase generalizado.  

QUAL A ORIGEM DA CRISE ATUAL?
A tolerância com pecadilhos no passado. Como não houve reação, a coisa foi se propagando, foi se tornando a regra. A inexistência de repressão – vamos usar a palavra que é antipática mas exprime exatamente a idéia – a esses abusos gerou certa conivência geral com os abusos.  

E QUAL É SUA CARACTERÍSTICA MAIS MARCANTE?
Essa crise tem duas vertentes. Uma é a perda do sentido da civilização, a que já me referi. A outra é uma certa inerência dessas condutas ao que se supõe ser a maneira própria de funcionar do sistema político. Tem-se a idéia de que ele não funciona se não for azeitado com caixa dois, compra de votos, troca de favores entre Executivo, senadores e deputados para poder votar alguma matéria.  

QUE RESPONSABILIDADE SE PODE ATRIBUIR AO PRESIDENTE LULA E A SEU PARTIDO?
Quando fui magistrado, aprendi que não temos o direito de transformar nossa indignação em insulto. Estamos discutindo e avaliando condutas à luz da Constituição e das leis. Por isso não quero falar do presidente. Sua responsabilidade ainda será apurada. Mas, em relação ao partido que está no governo, minha opinião é que não existe mais nenhum limite aos meios, desde que os fins que se propõem sejam alcançados. Ainda que esses meios incluam corrupção e aliança com o que existe de mais corrupto e atrasado na política brasileira. Isso é um desrespeito à democracia.  

MUITOS ANALISTAS ATRIBUEM A APARENTE APATIA DO ELEITORADO DIANTE DAS DENÚNCIAS DE CORRUPÇÃO A PROGRAMAS SOCIAIS, COMO O BOLSA FAMÍLIA. O SENHOR CONCORDA?
Há certamente uma parte da população, e não é pequena, que se sente beneficiada pela ação social do governo federal, muito identificada com a figura do presidente. São as famílias mais pobres. Mas não é justo cobrar dessa parcela da população que não leve a sua satisfação material em conta na hora de escolher candidato. O eleitor se move de acordo com alguns valores, algumas idéias. Mas principalmente se move em função de muitos interesses, que são legitimíssimos, de comer, de estudar, de ter acesso a serviços públicos básicos. Como eleitores, nós não optamos entre sistemas filosóficos. Isso se faz na academia.  

A APATIA ESTÁ RESTRITA À POPULAÇÃO MAIS POBRE?
No restante do eleitorado, da baixa classe média aos mais ricos, o que existe é uma visão cínica. Há um descompromisso com a escolha do candidato nesta eleição, um certo conformismo diante de uma situação que parece sem saída. Isso é grave. O resultado dessa atitude põe em risco a democracia, porque desacredita os políticos e as instituições democráticas.  

ESSA ATITUDE É RESULTADO APENAS DE DECEPÇÃO TRANSFORMADA EM CINISMO OU TAMBÉM DA AUSÊNCIA DE DEBATE?
Estamos vivendo uma situação de traição dos intelectuais, tomando emprestado o título do livro do escritor francês Julien Benda, morto em 1956. A maior parte dos nossos intelectuais tem um passado de esquerda. Agora se calam, pois temem ser cobrados. É uma pena, porque as inteligências indiscutíveis que nós temos se sentem constrangidas pelo fato de terem tido compromisso com algumas idéias no passado. Acham que, se falarem mal do presidente hoje, estarão ajudando a corrente oposta, os reacionários de sempre, os ricos em detrimento dos pobres. Isso é uma simplificação absurda, inaceitável.  

A LÓGICA DE FUNCIONAMENTO DO SISTEMA POLÍTICO NÃO CONTRIBUI PARA OS DESVIOS A QUE ASSISTIMOS?
Alguns traços estruturais do sistema fornecem elementos para entendermos o que se passa. Um deles é a Constituição de 1988, que constitucionalizou praticamente tudo e obrigou os governos a fazer emendas para poder governar. Estamos na emenda 52. Para aprovar essas emendas, não basta a maioria simples, pela qual se votam as leis. É preciso ter maioria de três quintos, com a qual se modifica a Constituição. É uma maioria cavalar. Então o presidente tem de "engenheirar", arranjar essa maioria. Isso transformou a arte de governar na arte de simplesmente captar votos.  

COMO SE MUDA ESSA SITUAÇÃO?
Minha sugestão é tão simples que alguns dirão que é simplória. Mediante uma única emenda, tira-se da Constituição e transforma-se em leis complementares o que é excessivo nela. Há muitas questões que caberiam bem em leis, em decretos, até em atos normativos. Por que estão no texto constitucional? Porque os constituintes tinham medo de que suas aspirações viessem a ser negligenciadas pelo legislador ordinário e pelos governos seguintes. Então quiseram vê-las garantidas na Constituição, que só pode ser mudada com maioria de três quintos. Hoje começamos a entender que não é bem assim. Até sacrossantos direitos como a aposentadoria foram tocados por emendas à Constituição. E os governos, bem ou mal, de forma lícita ou ilícita, acabam conseguindo mudar o que querem. Então a constitucionalização é uma garantia ilusória. E maléfica, porque tornou muito difícil governar por processos decentes.  

O QUE MAIS É PRECISO MUDAR?
É preciso modificar o sistema eleitoral, que acabou com a responsabilidade dos eleitos. Ninguém pode se candidatar se não estiver inscrito num partido. Quando eu voto, não estou escolhendo um candidato. Porque o voto que eu dei a A pode ser transferido para B, em quem eu não votaria jamais. Eu não quero votar em candidato que recebeu alguma vantagem na venda de ambulâncias ou tenha conduta incompatível com meus valores. Mas voto no companheiro de chapa, que não se elege e transfere seus votos para o candidato acima dele na lista do partido. O eleitor precisa identificar seu voto no candidato para poder cobrar.  

EXISTE UM MOVIMENTO DE RESGATE DA ÉTICA NO CONGRESSO NACIONAL. O SENHOR ACREDITA QUE INICIATIVAS DESSE TIPO PODEM TER SUCESSO?
Sim, sem dúvida. Nesse particular, não há fissuras. Quem está indignado está indignado mesmo e quer que isso tenha conseqüência. E o número de indignados é cada vez maior. O Congresso nunca age contra o que ele acha que é a opinião geral.  

O QUE SE PODE ESPERAR DO FUTURO?
Acredito que estamos aprendendo com os nossos desencantos e precisamos apenas refletir melhor, ser ajudados por homens de pensamento, corajosos, que encontrem as categorias para racionalizar, entender o que está acontecendo e formular propostas de mudança. Não podemos dispensar a ajuda da inteligência brasileira.

 

Fonte: Rev. Veja, ed. 1975, 27/09/2006.


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