"Lost"  —  'um estudo psicanalítico' ...
Perdidos na ilha 

Soraia Bento Gorgati* 

 

Lembranças, culpas e desejos movem os sobreviventes no seriado Lost - espécie de
"nau dos loucos" contemporânea, a ilha parece desempenhar o papel principal

Em tempos de consumo alienante, o estrondoso sucesso do seriado de TV Lost sugere algo fácil, que não comportaria complexidades, como repetitivas telenovelas. No entanto, em pouco tempo somos fisgados por essa trama não-linear na qual a percepção nem sempre objetiva da realidade alinha personagens isolados para depois entrelaçá-los não apenas no presente, mas principalmente no passado  como se estivessem predestinados ao encontro.

Breve sinopse: um avião que ia de Sydney para Los Angeles cai numa ilha do Pacífico sul. A aeronave se parte em três: uma delas explode, outra despenca no meio da selva e a terceira cai no litoral da ilha, onde 48 sobreviventes passam a viver. O seriado está na segunda temporada, com terceira já prevista.

Desejos e Memórias

O espaço onde se assiste à televisão é familiar e repleto de estímulos paralelos, diferente da ambientação e do anonimato do cinema, que favorece a entrega absoluta do espectador. De frente para a telinha, o que prende a atenção das pessoas é a tensão que a história propõe. Como numa sessão de análise, o encontro se encerra quando o tempo simplesmente acaba, sem conclusões nem clímax, deixando apenas um vestígio do que está por vir. Nesse sentido, a sala de casa pode não ser propícia ao estado onírico, mas nem por isso deixamos de nos envolver no sonho. Esse seriado nos coloca em constante interrogação sobre o estado de consciência dos personagens. Sonho, delírio e sintoma são formações do inconsciente, retornos do que se tentou sepultar fora da consciência, a qual se mantém no entanto carregada de intensa carga afetiva,  pulsando sem cessar. Ponto em comum entre os personagens: todos são movidos por um imperioso desejo de mudança. Na tentativa de deixar para trás o passado carregado de culpas e buscar novos caminhos, eles têm a vida interrompida por um acidente que os impede de enterrar seus mortos, fugir da teia familiar e escapar de destinos malditos.

Aos poucos os náufragos começam a aceitar a perenidade da situação. O que parecia uma passagem efêmera vai se afirmando de forma cada vez mais definitiva, como a nova condição de vida do grupo. Embora novos habitantes possam chegar, ninguém vai embora. Todas as tentativas de fuga são frustradas  o isolamento parece perpétuo. Às vezes o protagonista parece ser não o líder do grupo,o médico Jack, mas a própria ilha, que se apresenta como uma entidade com vida própria, desejos e apetites. Ninguém sabe ao certo que ela quer, além de retê-los. Apesar do risco de morte, essa parada obrigatória permite a reconstrução do passado, uma chance de elaboração. Cada um é portador de uma história. O que a ilha lhes vai revelando,  além de seus pertences resgatados (cartas, fotos, roupas), cria novas possibilidades de seguir vivendo como sujeitos, não apenas como sobreviventes. Lembranças e desejos ocupam lugar de destaque na trama de Lost.

Para a psicanálise, percepção e memória deixam de ser funções objetivas porque são atravessadas por processos inconscientes. Lapsos e esquecimentos não são gratuitos; sonhos e sintomas são dotados de sentido; lembranças são mediadas pela fantasia. As cenas em tempo presente são entremeadas por reminiscências que nos guiam para a origem dos conflitos. Cabe ao telespectador desvendar seu significado oculto e distorcido. Em cada desafio, lá está o sujeito absorto no passado, revendo seus objetivos e principalmente suas faltas. Reunidos ali pelo "acaso", os sobreviventes aos poucos criam elos, movidos inicialmente pela autoconservação e deixando entrever, mais tarde, a formação de pares ou triângulos afetivos. Primeiro a satisfação das necessidades básicas; depois os romances emergentes. Para não estragar a incipiente unidade, as rivalidades precisam ser contidas.

Como observou Freud, o homem não é um animal de rebanho, mas de horda. Com isso ele quis dizer que não há instinto gregário e a tendência à desordem e ao conflito é parte da natureza humana. No seriado, o principal desafio dos personagens é a transição da horda para a comunidade. A figura de Jack, o líder, ganha importância: sua promessa messiânica de salvar a todos garante a coesão do grupo. Como ele assumiu essa liderança? A onipotência geralmente creditada aos médicos e levada ao extremo nesse caso, pode ter sido um fator decisivo. Ao líder nunca poderá faltar fé: as situações de pânico surgem nos momentos em que sua credibilidade é abalada ou quando ele sucumbe ao cansaço. Mas Jack nunca desanima nem abandona o propósito de manter todos vivos, mesmo que por vezes seja necessário adotar posturas radicais e pouco diplomáticas. Ele é o herói, e por isso quase nos esquecemos de seus excessos.

Os laços que vão construindo o tecido do grupo se dão não só por fidelidade e amor ao líder, mas por alianças com outros membros, baseadas em identificação. A condição afetiva impõe restrições à liberdade individual em nome do bem comum. Quando falta esse tipo de investimento interno no grupo, impulsos agressivos afloram e o risco de perda da coesão torna-se uma ameaça. Logo, uma boa saída é encontrar inimigos externos. Um momento exemplar é o encontro com uma habitante estranha que vive sozinha na ilha há muito tempo e lhes diz algo como: "o inimigo são os outros!". Enquanto assim for, o grupo pode se manter afinado em seu propósito de se proteger.

Nau dos loucos

O isolamento dos personagens de Lost lembra as práticas asilares adotadas pela psiquiatria, a partir do século XVIII, que visavam o confinamento dos "loucos". Antes disso, na Idade Média, os insanos, possuídos e degradados eram recolhidos a bordo da Stultifera Navis, a nau dos insensatos de que nos fala Michel Foucault. Esse era o método para proteger a sociedade dos insanos.

Não importa como a loucura é concebida, sua história é sempre marcada pela perda da lucidez. E devemos à psicanálise a reaproximação, pelos meandros do inconsciente, entre razão e desrazão. A diferença entre psiquismo normal e patológico, segundo Freud, é meramente quantitativa  somos todos guiados pelo inconsciente, com impulsos caóticos, desejos proibidos e mecanismos que nos defendem do conflito gerado por instâncias internas. Também lei moral e culpa são temas fundamentais nesse contexto. A internalização das proibições, com a travessia do sujeito pelo complexo de Édipo, faz com que as sanções auto-impostas sejam as mais severas, sobrepondo-se às punições externas.

Seria a ilha de Lost uma espécie de nau dos loucos e seus sobreviventes os excluídos? A realização de desejos inconscientes traz a culpa e, observando a biografia de cada personagem, a impressão é que todos são castigados com a morte de um ente querido. O cenário paradisíaco encerra assassinatos, traições, incestos, deserção; e a figura mais emblemática dessa tragédia humana é o médico-líder que, para superar o pai (moral e profissionalmente), impôs-lhe uma derrota que o exterminou. Como em Hamlet, o fantasma da figura paterna o assombra e o transforma num mártir para expiar a culpa na tentativa de salvar o mundo, ou pelos menos aquele pequeno mundo rodeado de água por todos os lados.

O mundo contemporâneo sobrevaloriza os interesses individuais em detrimento dos coletivos. O processo de auto-reflexão é negado e cede lugar a uma busca cada vez mais frenética pelo prazer fugaz. Assim, Lost recria uma atmosfera que nos lembra que o paraíso não existe e o inferno está em todos nós. 

 

* Soraia Bento Gorgati é psicóloga, psicanalista e professora do curso Conflito e sintoma: clínica psicanalítica, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, onde também participa do projeto Anorexia e Bulimia. Participou das coletâneas O sintoma e suas  faces (Escuta, 2006), Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta, 2002) e Desafios da clínica psicanalítica na atualidade (Dimensão, 2006).

 

Fonte: Rev. Mente e Cérebro, edição nº 166 - novembro de 2006.


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