CARTA DE BERLIM
O povo, o povão e o povinho

 

Mais difícil do que explicar aqui na Alemanha que no Brasil há cidades onde faz frio,
gea e até pode nevar no inverno, é explicar o sentido da palavra “povão”.
O impasse se deu numa aula na universidade.
 

Começa que a palavra “Volk”, em alemão tem um sentido muito diferente da nossa palavra “povo” no Brasil. Aquela está muito mais próxima de conotar algo referente ao conceito romântico de “caráter nacional” do que a nossa, que tem uma aproximação maior com uma idéia de “todo mundo”. “Povão” então nem se fala. 

Conversa daqui, conversa dali, chegou-se à palavra alemã “Pöbel”, que quer dizer “plebe”. Daí a discussão ganhou um novo rumo: “plebe” tem uma conotação pejorativa muito forte, tanto em alemão quanto em português, palavra que remonta a um mundo controlado ou pelo visto por uma aristocracia, seja de linhagem, grana ou espírito. “Povão” não, nem sempre é pejorativo, aliás, na maioria das vezes não é, conota força, presença, independência, pressão. Daí a dificuldade é explicar que a palavra “povinho” é que em geral é pejorativa, pois o diminutivo “inho”, para o estrangeiro, assim como para nós, é quase sempre associada a carinho e afeto. 

Num outro plano, a mesma dificuldade existe quanto a palavras como “nação” e sobretudo “nacionalismo”. Na Europa inteira o “nacionalismo” é uma palavra de ordem e um sentimento associado a ideologias de direita e de extrema-direita. É muito difícil explicar como que historicamente o “nacionalismo” na América Latina foi mais associado às esquerdas do que as direitas, embora tenha havido sim um nacionalismo de direita. Mas o mundo de nossas classes dirigentes liberais sempre se pautou pela subordinação à ordem econômica e à hegemonia das potências dominantes, sobretudo ao tempo da Guerra Fria, mas antes e depois também. 

Os “nacionalismos” europeus são voltados contra os imigrantes e seus descendentes, notadamente aqueles que têm vindo ultimamente da África, da América Latina e de algumas regiões da Ásia. “A Europa para os europeus” seria uma consigna marcante para esses nacionalismos, que são sempre excludentes. “Nacionalista” era a pregação de Ronald Koch, primeiro ministro do estado de Hesse, no oeste alemão, derrotado politicamente na última eleição de domingo passado, que associava “criminalidade” a “filhos de imigrantes”. 

Já na América Latina nossas “élites” com freqüência deixam escapar a vergonha ou o verdadeiro horror que sentem diante do nosso “povão”. Como escreveu Luis Fernando Veríssimo numa de suas inspiradas crônicas, para elas seria melhor terceirizar o nosso povo, substituindo-o por algo, digamos, de aparência mais nórdica. Liberais subalternos, querem por força integrar-se (elas, não todo mundo) ao “primeiro mundo”. Quem sabe até se poderia anexar os elegantes bairros dos Jardins em S. Paulo, mais alguns outros parecidos em algumas (poucas) outras cidades brasileiras, à União Européia, ou direto aos Estados Unidos. 

Neste contexto, os “nacionalismos” latino-americanos, mesmo os mais conservadores, como o de Vargas, trazem a marca da inclusão ao invés da exclusão. São voltados para a “construção nacional” que, em países como os nossos, parece sempre “inacabada”. Como no tempo da independência: no Brasil, a bem da verdade, sem entrar na discussão da dependência econômica, a independência política só se completou em 1888 com a abolição da escravidão, o que custou o trono a D. Pedro e à Princesa um ano e meio depois. A partir daí as classes dominantes de então deixaram os soberanos entregues a seus próprios destinos diante do Exército positivista e revoltado pela Questão Militar em torno do Marechal Deodoro, removido do Rio Grande do Sul. 

Mas ainda há outra questão que acompanha essas diferenças semânticas. É muito difícil, para as pessoas de um continente cujos intelectuais e movimentos sociais e políticos, sejam de direita, centro ou esquerda, sempre foram secularmente modelares para os outros, aceitar que possa haver um outro universo semântico que não o seu. Por isso, muitas dessas pessoas, não todas, se surpreendem ao ver como posso eu (por exemplo) declarar-me um “nacionalista”, ainda que com a qualificação “latino-americano, não europeu”. Ou com a idéia de que possamos eu e meus amigos e correligionários apoiar, ainda que com maiores ou menores críticas, um “populista” como Hugo Chávez. “Populista” tem sempre um sentido pejorativo para a nossa direita, não pelo que tenha eventualmente de demagogia, mas porque agrada ao “povão”, e isso para ela é insuportável. “Populista” aqui nas europas é pejorativíssimo, tanto à direita como à esquerda. 

Mas entre palavras, semânticas e diferenças vamos nos entendendo. O que é bom, pois nem queremos que nossas réguas e nossos compassos sejam os únicos do mundo, nem queremos que eles sejam banidos do pensamento universal. 

Carta Maior Recomenda

A cena da mídia européia está hoje invadida pelos novos sucessos da campanha de Barak Obama entre os democratas nos Estados Unidos. Há um artigo muito interessante de Gabor Steingart, correspondente da Der Spiegel em Washington, sobre “The Three Myths of the US Election Campaign”, sobre as convergências semânticas de todos os candidatos, democratas e republicanos, em torno de eixos centrais do atual discurso político dominante nos Estados Unidos (www.spiegel.de/international/) . E há um outro no The Guardian (www.guardian.co.uk) de Suzanne Goldenberg, “The Coronation: Ted Kennedy passes JFK Mantle on to Obama”, sobre o apoio do senador por Massachussets, ferrenho opositor da Guerra no Iraque, ao senador por Illinois. Outros membros da família Kennedy, como a filha do ex-presidente, Caroline, e Patrick, sobrinho dele, O lado curioso deste apoio é que ele transforma o “opositor” ou “alternativo” Obama num também candidato do “establishment” democrata.

 

Fonte: Ag. Carta Maior, Flávio Aguiar, 29/01/2008.

 


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