O príncipe das trevas
Flávio Aguiar*

 

A pesquisa CNT/Sensus caiu como uma bomba sobre a proposta
para Lula desistir de disputar a reeleição em 2006, feita por FHC.
O ex-presidente ficou na mesma posição que ficou Lúcifer,
ao cair do céu, conforme relato do Inferno de Dante:
de pernas para o ar!

 

A certa altura de seu famoso estudo sobre o sistema literário do Ocidente, "Anatomia da Crítica", o professor canadense Northrop Frye rememora o final do Inferno de Dante. O poeta desce pelo cone subterrâneo até deparar com o próprio Lúcifer, enterrado numa montanha de gelo e rocha, a mascar seus condenados nas bocas de sua cabeça tricéfala. Para sair do Inferno, Dante deve passar pelo próprio corpo de Satã. Ao fazê-lo, chegando do outro lado da grota, Dante se dá conta que não está mais descendo, mas subindo: ou seja, adquirindo o reino do conhecimento ético, ele vê o mundo em sua posição correta, deixando para trás o mundo das aparências. Nesta altura (ou baixura?) Dante se volta e contempla Lúcifer. A cena, que era trágica, passa a ter algo de cômica, pois, na descrição rememorada por Frye, o poeta vê “...o cavalheiresco Príncipe das Trevas de pernas para o ar!”...que foi a posição em que ele desabou dos píncaros celestes.

Não querendo fazer comparações exageradas com a grandeza e a majestade trágicas de Satã, é nessa posição que podemos ver agora o “príncipe FHC” e sua proposta que Lula renuncie por antecipação à disputa pela reeleição em 2006.

Por que Lula deveria renunciar? A pesquisa da CNT trouxe dados mostrando sua popularidade como ainda inabalada; os números mostram que Lula continua derrotando qualquer adversário no primeiro turno, a não ser José Serra, que derrotaria no segundo. Mas se Serra concorrer, terá deixado seu eleitorado paulistano entregue ao vice Kassab, do PFL. Que efeitos isso pode produzir no quadro eleitoral?

Neste momento, ainda não há uma campanha eleitoral. Mas o fato é que por ora FHC ficou pendurado na brocha de sua proposta, sem escada para sustentá-lo e sustentá-la. Não só isso: o quadro para o PSDB e o PFL se complicou um tanto. As malas milionárias do deputado pefelista, apreendidas em Brasília, compartilharam o brilho e a fama das cuecas recheadas do assessor petista, neutralizando-lhe o efeito deletério, ou pelo menos repartindo problemas e o ridículo da situação. Além disso os onze seguranças (?) armados, detidos ao estarem em condição clandestina(?) na sede da Polícia Federal, deram um pequeno toque sinistro ao evento todo.

Em outra frente, as denúncias surgidas no Rio de Janeiro sobre um suposto papel da Firjan em impedir a fiscalização da Previdência sobre empresas acabaram por respingar (mais) lama, para não dizer outra coisa, (supostamente, ainda não há provas) sobre o governo anterior (de FHC), numa confusão de enleios que parece não ter mais fim. E é bom lembrar que até agora a quantidade de provas produzidas, na frente penal, é ainda muito pequena diante da quantidade e da magnitude das denúncias e da festa jornalística e parlamentar com que foram recebidas.

Na frente política também não pegou muito bem, para o PSDB, a afirmação da ex-secretária de Marcos Valério, Karina Somaggio, de que teria sido sondada (quanto uso do condicional hoje na imprensa!) pelo partido para se candidatar à deputada federal por Minas Gerais, o que cheira à recompensa política por “colaboração”.

Na frente interna da esquerda, o PT dá mostras de que, embora ainda acusando os golpes que levou no fígado, no baço, nos rins e, sobretudo, em sua memória e militância, começa a se rearticular. De quebra, há fortes indícios de que na próxima eleição para o Diretório Nacional, o partido tenderá à esquerda. Se isto se confirmar, aumentará sua articulação com os movimentos sociais, com o MST, CUT, CONTAG e outros, e, conseqüentemente, aumentará a força de pressão destes sobre o governo Lula, inclusive, é claro, no caso de uma reeleição.

Em suma, a situação ainda é fonte de muitas preocupações para PSDB e PFL e quem eles representam. Além deles ainda terem pela frente um Lula até o momento imbatível, têm na sua cola o bafo de Anthony Garotinho que, é na verdade, de imediato, a figura potencialmente mais ameaçadora para pré-candidatos como Alckmin, Aécio, Serra e inclusive o príncipe, agora sem escada, FHC.

Por outro lado, essa situação eleitoral favorável ao presidente contém a possibilidade de se reacenderem propostas como a do impeachment imediato de Lula, para o que as denúncias contra ele teriam de surgir e se avolumar dramaticamente, e que poderiam levar a uma situação de confronto com os movimentos sociais de proporções imprevisíveis.

Mas é possível que essas propostas cheguem a prosperar, uma vez que, se o lado trevoso de nossa burguesia já andava assustado com as atividades da Receita e da Polícia federais, agora sua claque devota de um consumismo brega e provinciano está escandalizada por terem chegado as atividades de ambas as forças às portas e ao interior de seu novo ícone, a Daslu. Que por ora, é bom se sublinhar, é alvo de investigação e de mandatos de busca e apreensão de documentos. E que para se condená-la, como a qualquer outro acusado ou acusada, deve-se requerer a apresentação de provas, este item que hoje em dia anda em baixa na bolsa de ações da novela política e do romance investigativo em que estamos todos mergulhados.
 

* Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.  

Fonte: Ag. Carta Maior, 14/07/2005.


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